Contos de Tormenta - Sobre as Bençãos e as Blasfêmias III

Na terceira parte do conto, Drumius sofre pelo orgulho e pelo desejo de querer mudar a guerra.

=====

Acordou com o corpo doendo. A princípio, pensou que houvesse dormido mal ou estivesse de resseca, mas a verdade lhe veio à tona quando o primeiro soco passou pelo queixo. O sangue escorria pelo canto da boca quando começava a se lembrar de como fora arrastado da cama a força, sem ninguém para ajudá-lo. Os outros oficiais mais colaboraram do que tentaram deter as agressões enquanto os soldados socavam e chutavam, levando o herege para o julgamento.

Não haveria juiz, nem um júri. Nada ali era sério. O tribunal obscuro ao qual estava sujeito era formado por um bando de conspiradores juntado às pressas para acabar com um apressado que ultrapassava a ordem natural das coisas e tentava se colocar em uma posição privilegiada antes de outros. Esquecia que a meritocracia não estava apenas no mérito de quem faz, mas também no mérito do dedo que indica e apóia, ou no sangue.

Dobrou os joelhos após dois socos no estômago. Olhou em volta, tentando encontrar algum apoio. Os olhos vermelhos não enxergavam aliados, mas continuaram pesquisando enquanto a chuva de perguntas e de pancadas insistia em cair sobre sua figura muda. Quase muda, pois era difícil abafar os gemidos de dor. Observava a sala escura e sentia o chão de pedras sob os joelhos.

- Foi Keenn quem lhe deu esses olhos, guerreiro?

Não respondeu. Queriam que se incriminasse para que fosse jogado em um tribunal verdadeiro e ali banido. Não faria isso. Lutara demais para subir de posto na ordem. Matara e esquartejara e o sangue em suas mãos teria que valer alguma coisa.

- Você afirma que pretendia trocar os símbolos de nossa ordem por armas heréticas, criadas por povos de fora do nosso reino, por mãos gentias?

Continuou calado, respondendo somente com gritos de dor e sangue. Assim ficou, até perceber Dencar parado em um canto. Os olhos vermelhos caíram sobre o amigo, apesar de agora estarem meio fechados devido aos ferimentos. O olhar de ódio, escondido sob o inchaço roxo, se fixou no amigo.

- Você? Traidor – disse, fervendo de raiva.

Dencar se aproximou e chutou-lhe com tanta força que a bota cravou-se entre as costelas e rompeu pelo menos duas. Drumius caiu, sentindo o gosto da pedra fria.

- Confesse sua heresia – ordenou.

- Porco traidor – respondeu ainda deitado, esforçando-se para se levantar. Dencar deixou que tentasse se por de pé e foi no momento em que Drumius mais usava suas forças que o outro lhe acertou as costas, forçando-o a um beijo violento com o chão.

Dencar agachou-se de cócoras e esperou que o amigo se levantasse de novo. Parou a boca perto dos ouvidos de Drumius.

- Confesse. Tenha bom senso e confesse. Por mim e por Lenius, pela boa relação que tivemos com você e que pode nos prejudicar agora... Pelo passado – disse, quase sussurrando as últimas palavras. – Pelo passado.

A última frase fez Drumius erguer a cabeça e fitar o quarto escuro com os olhos vermelhos. As pupilas rubras refletiram intensamente. Veio a mente o teste que o tornou cavaleiro sacrossanto, saltando entre as lembranças como uma ponta de lança que atravessa as entranhas e brota na pele. Era sangue, era fúria, uma batalha pela sobrevivência e por um título insignificante para aos olhos do mundo, vital para os guerreiros que cortavam e batiam com as espadas. O Campo dos Escolhidos fervilhava com os candidatos, alguns já ditos como pré-selecionados devido a influência dos pais ou irmãos. Outros, como Drumius, precisavam sangrar ou fazer outros sangrarem muito antes de serem chamados de santos.

Ele se lembrava nitidamente da dor nos músculos que só não era maior do que a fúria que o possuía. Todos, sem exceções eram alvo do toque de Keenn, uma energia inigualável que tornava os instintos guerreiros irresistíveis. As batalhas só deveriam parar em um único momento, um apenas, quando a aposta e a promessa deveriam ser cumpridas. Em todo teste dos guerreiros sacrossantos, os sacerdotes de Marah, Deusa da Paz, tinham o direito de intervir com as forças pacificadoras. Uma clériga entrava no campo de batalha e liberava sua aura que faria qualquer pessoa se ajoelhar diante da pureza e da calma. Muitos de fato faziam, as ovelhas repelidas na fase final do teste. Alguns até abandonavam o desejo de lutar para sempre. Outros cuspiam e negavam aquela sacerdotisa. Mas nenhum correu na direção dela feito um cão rábico como Drumius. Disparou de mãos vazias sob olhares assustados até parar com os dedos em volta da garganta da mulher. Jogou-a no chão e socou, blasfemou, quebrou dentes e partiu ossos. Teria feito mais, se a mente de guerreiro não houvesse avisado da oportunidade de eliminar os concorrentes. E assim, pela primeira vez, somente um guerreiro sacrossanto passou no teste. Da arquibancada, pelo menos um pai lamentava internamente a perda de um filho, sem poder expressar o lamento de vê-lo morrer sob a espada.

- Keenn me deu uma nova visão! A Morte é rubra e eu mostrarei a todos a importância disso.

Uma risada irônica veio de um canto, uma blasfêmia do outro. Xingaram os pais do guerreiro, pessoas de quem ele se orgulhava e defendia com punhos e aço. Chutaram-lhe para tirar a insolência do espírito. Humilharam-no para arrancar o orgulho da carne.

Shaftiel
Enviado por Shaftiel em 20/09/2008
Reeditado em 14/11/2008
Código do texto: T1187355
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.