Contos de Tormenta - Sobre as Bençãos e as Blasfêmias IV

Na quarta parte do conto, Drumius vai a julgamento com a possibilidade de morrer na vergonha, sem uma espada na mão, mas com uma corda em volta do pescoço. Keenn, Deus da Guerra, não aceita mortes vergonhosas.

======

Colocaram-no limpo e sem ferimentos no banco dos réus. A magia do mesmo deus que louvava havia curado os ferimentos da tortura para que um homem com aparência intocada aparecesse diante do povo. Era um julgamento aberto, com os habitantes do feudo convocados para observarem um lobo ser cheirado e desprezado pela alcatéia.

Os guerreiros sacrossantos cercavam o palanque em que os juízes se sentavam. Mestres haviam chegado de outras comendas como era previsto diante do julgamento de um membro importante, ainda que pouco amado. Sentavam-se atrás dos juízes, cada um vestindo sua pele de lobo branco e portando uma das espadas sagradas. O povo ficava mais atrás, atulhado no campo aberto de fora do castelo. Cabeças se erguiam para tentar enxergar Drumius, o blasfemador que ousara se julgar maior que todos os guerreiros sacrossantos. Diziam que ele tinha olhos vermelhos, abençoados por Keenn, mas corria o boato de que os mesmos lhe foram dados por magia negra ou, pior, pela Tormenta.

Sentado naquele banco de aço, forjado com espadas de criminosos, Drumius sentia-se ultrajado. Enxergava em volta guerreiros que comandara ou sob cujas ordens haviam combatido ferozmente. Notou a expressão decepcionada de Barka, Mestre de Guerra do Sul, a quem servia durante as batalhas contra os bárbaros. Fora a primeira vez que tivera um pelotão sob seu comando. Vibrara com o combate e lamentara as mortes enquanto escrevia as cartas para algumas das mães que agora observavam seu julgamento. Queria imaginar se elas estavam felizes por verem morrer enforcado quem levara seus filhos para a morte.

A palavra enforcamento rondava seu espírito desde que recobrara a consciência. Não teria a dignidade nem de morrer com uma espada na mão ou sob o ferimento do aço lhe cortando músculos e entranhas enquanto chamava por Keenn. Era uma tristeza severa que se abatia sobre ele e o fazia entender o que outros já haviam sentido quando ele mesmo os julgara durante as campanhas como juiz máximo do batalhão e os enviara para dançar com o laço mortal no pescoço. “A morte vai dar o laço em sua gravata”, dizia para a vergonha dos condenados.

- Que o réu se levante – disse Dencar, um dos juízes.

Drumius se colocou de pé sob a visão de todos, principalmente dos cinco juízes. Lenius olhou para o amigo com pesar. Quinto na fila, ao lado do Barão de Tarh, também o questionaria antes de dar-lhe a sentença.

- Rejeita as acusações? – perguntou o Barão de Tarh, iniciando os procedimentos.

- Não – respondeu, gerando murmúrios.

- Pretende usar as tais armas de fogo se continuar junto à ordem?

- Pretendo.

- Reconhece que elas são armas de covardes que fogem à guerra que pregamos e por qual lutamos?

- Não – respondeu, certo do que pensava, tão certo que esqueceu-se da forca e da morte sem honra. Os murmúrios aumentaram, com aquelas conversas de soslaio que lembravam a Drumius de sua infância, aquelas fofocas de mulheres entediadas e de homens velhos e famintos pelo poder.

O barão, sempre severo sob as sobrancelhas grossas e prateadas, levantou a mão para que houvesse silêncio.

- Não aceitarei menos do que silêncio aqui – gritou.

O julgamento continuou. Drumius respondeu às perguntas sob sua conduta e até mesmo sob o ritual de iniciação.

- Você reagiu como um assassino durante a iniciação – acusou um dos juízes, o Conde de Akron. Era um dos aliados de Drumius, uma das pessoas a quem declarara fidelidade.

- Reagi como Keenn quis que eu reagisse. Vi apenas o que ele me indicou e o que estava diante de mim era uma sacerdotisa inimiga e almas fracas que poluiriam os guerreiros sacrossantos.

- Drumius, nossa ordem não louva Keenn como um bando de bárbaros sanguinários, mas como yudenianos cientes de seu dever guerreiro e da honra e da violência da espada.

- Mas eu fiz um teste para me tornar um líder sacrossanto e nenhum desses deve ser fraco. Eles passaram por um teste de violência e era isso que deveriam esperar.

O Barão de Tarh interrompeu com um brado.

- Deveriam saber quando parar! Era uma das lições do nosso teste! Mesmo um guerreiro sabe quando parar! Aquilo foi perverso!

- A hora de parar era a hora de vencer. Ser bom é um estado de vigilância, mas há sempre um momento para ser perverso. A guerra é um deles. A luta pela sobrevivência é outro.

Ocorreram mais murmúrios que o Barão de Tarh não se preocupou em cessar. Manteve-se calado, com o rosto avermelhado e os punhos fechados, encarando os olhos vermelhos de Drumius. O Conde de Okran passou a vez para Lenius e Drumius sentiu que teria a chance de sobreviver. A chance estava ali. Havia conquistado Okran, que percebera tantas vezes a necessidade de ser violento durante as batalhas e perdera dois de seus filhos por tréguas mal feitas durante combates importantes.

As perguntas daquele amigo de infância foram curtas e breves. Não comprometiam nem a ele nem a Drumius, mas deram a brecha para que o acusado colocasse em prática o plano para se livrar do enforcamento.

- Eu tenho minha confissão, mas os juízes sabem muito bem que um lobo confessa diante de uma matilha que não mais lhe aceita. Você, Lenius, sabe da minha lealdade a essa ordem, da minha fé em Keenn. E é de amigos assim que eu espero a mesma lealdade, as mesmas juras que fiz. Digo confie em mim e peço essa confiança para nos livrar do mal que agora se direciona a mim.

Travaram olhares por um minuto tenso, ao fim do qual Lenius virou-se primeiro para o Conde de Akron, que assentiu, e depois para Dencar que baixou serenamente a cabeça. Drumius sorriu e levantou-se.

- Eu juro pela Companhia do Sangue e do Fogo, que esteve junto de mim e reconhece minha causa, e que usou e usa as armas que trouxe. Vocês temem as armas, mas nós massacramos nossos inimigos com elas e continuaremos massacrando. Jurem por mim e eu continuarei lutando por Keenn.

Os olhos do Barão de Tarh e do juiz a seu lado, Lorde Mon, se estreitaram. Aquilo significava perder toda a companhia, formada por guerreiros sacrossantos, sargentos e soldados jurados. Sem contar os planos de aliança que cada um trazia, inclusive Drumius. Todos os juízes se olharam.

- Antes cem guerreiros a menos do que mil soldados sem honra – falou o Barão aos ouvidos do Lorde. Drumius observou os juízes, tentando notar a expressão de cada um. Mal mediu as expressões deles, mas sabia que a perda da companhia os faria considerar.

Lenius levantou-se devagar, fitando Okran e Dencar de soslaio. Apoiou as mãos da mesa, como se o corpo perdesse as forças enquanto o espírito juntava todas as energias para aquele juramento que decidiria sua vida.

- Juro minha posição santa em nome de Drumius – disse.

Ninguém precisou de explicações quanto ao significado daquilo. Era mais do que um voto a favor do réu. Era a promessa que pela vida do réu, perderia o manto e rejeitaria seus juramentos. Assim, quando se sentou, a votação já estava iniciada. O Barão de Tarh gargalhou e votou um “culpado” sonoro seguido pela mesma reposta do Lorde Mon.

O Conde de Akron olhou para Lenius e suspirou. O suor na testa do amigo de Drumius brilhava e o lábio tremia com um nervosismo nítido. Quando o voto soou pela inocência, o guerreiro não escondeu o suspiro de alívio. Olhou para Drumius e sorriu e então se voltou para Dencar. O julgamento estava decidido.

- Culpado – disse Dencar, arrancando um olhar tão atônito de Lenius que todo o sangue desapareceu do rosto do guerreiro. Empalidecido e com o corpo fraco, o homem baixou a cabeça e postou as mãos abertas na mesa. Foi o único juiz que permaneceu sentado enquanto os outros se levantavam. O próprio Lorde Mon retirou o manto branco de seus ombros, sem notar nenhuma reação. Pediu por uma tocha e jogou aos pés de Drumius a pele já flamejante.

- Sua vida e a de sua companhia foram trocadas pela honra e santidade de um guerreiro valoroso, Drumius de Dänikhen. Viva em vergonha – anunciou Dencar, erguendo Lenius e o abraçando antes de se retirar.

Drumius continuou sentado no banco dos réus até que a noite caísse e a escuridão tomasse o local. Lenius estava de pé de olho no manto queimado. Respirava devagar e Drumius imaginou que o amigo repassava todos os esforços para conseguir aquela posição e que agora não valiam nada. Nem seu amor valeria mais nada. Evitando pensar no sofrimento do amigo, o réu se aproximou e o abraçou.

- Eu agradeço, meu irmão. Vamos partir daqui, como é esperado, mas seremos a glória e a guerra enquanto em exílio.

- Minha noiva, Drumius!

O guerreiro, que se considerava mais sacrossanto do que todos os outros que o julgaram, olhou em volta. Viu os soldados e pessoas que limpavam a sujeira do dia e observavam os dois exilados.

- Nós vamos roubá-la. É pela força que você vai manter esse amor e ninguém vai nos impedir. Você será meu braço direito nessa companhia, Lenius, e vai matar e amar sob minhas ordens, até que alguém mais forte prove seu valor sobre nós diante dos olhos de Keenn.

Abraçaram-se como amigos, um desanimado com o futuro e o outro com o coração fervendo para a vingança, ambos humilhados e derrotados.

Shaftiel
Enviado por Shaftiel em 27/09/2008
Reeditado em 14/11/2008
Código do texto: T1199174
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.