A Percepção

O chão era de cor negra. O céu vivia constantemente coberto de nuvens. O sol simplesmente não existia, ou melhor, não brilhava... O menino olhava o seu reflexo numa poça d'água, a chuva da noite anterior fora terrível. O menino lembra que sua mãe não dormiu e o pai não aparecera. Mamãe virou a noite chorando, suas lágrimas ensoparam seu vestido cor creme.

O menino se perguntava por que o seu mundo era daquele jeito. Era tão inóspito, uma eloqüência do abandono.Tudo era escuro, um mundo que beirava um precipício. Havia um penhasco perto da casa do menino onde o mar quebrava. Um dia, o velho da venda se jogou ali depois que a mulher foi embora, ninguém sabe para onde. A venda ainda existe, ninguém tirou-a dali. As pessoas passavam longe do penhasco, muitas vezes a mãe do menino gritou para que ele saísse dali. Era perigoso e ele podia cair. Mas uma curiosidade insistente movia o menino para mais perto da beirada daquele terrível penhasco.

Sentado vendo o seu reflexo, o menino dava um olhadela para o penhasco. Sua mãe havia entrado em casa e então ele se levantou e foi andando, andando, andando, andando... Ele apenas ouviu o grito desesperado da sua mãe: "Não!" E o chão sumiu... O menino caiu para o quebra-mar eterno. Caiu no ventre das ondas que mataram o velho da venda. Caiu para não subir de novo... O vento cortava o rosto do menino e ele via as pedras negras e molhadas chegarem mais perto, mais perto, mais perto... A escuridão tomou de conta de tudo. Caiu para o escuro.

Sentado sobre as pedras e de olhos fechados, o menino sentia o vento bater-lhe o rosto. Sentia os pingos d'água umedecerem seus cabelos, sua boca, suas bochechas. A água do mar batia-lhe repetidamente em seus pés e tudo parecia meramente familiar. Mas algo lhe parecia estranho, o calor. Que calor era aquele que o menino sentia em todo seu corpo. Calor que secava suas roupas insistentemente molhadas pelos respingos d'água? Calor que o abraçava o corpo e deixava sua pálpebra de uma cor alaranjado. Era como se ele estivesse sem dormir mas de olhos fechados e sua mãe passasse com o candeeiro na sua frente. Era mamãe? O garoto abriu os olhos e viu o sol... Era lindo.

A areia branquinha da praia se acumulava entre seus dedos, o menino andava descalço e via o céu de cor azul. Os pássaros. O mar azul. Ele via os paredões de pedra que lembravam fortificações de uma castelo à beira-mar. Árvores em todo o lugar. O paredão de pedra dava medo ao menino... Ele andou quase toda a orla, poderia jurar que ficou quase meio-dia andando, mas o sol não saía da posição, ele ficava na posição que parecia ser a de oito horas. Ele andou até chegar ao outro quebra-mar. Nada viu de novo além daquele sol e daquela praia. O menino olhou para cima e viu as nuvens baixas tocarem o topo do penhasco. Será que sua casa estava ali acima? Uma voz grave diz: "Ei, menino!". Quem era?

Um velho de aspecto ranzinza estava sentado na praia onde, minutos antes, o menino passara e não vira ninguém. O menino o obedeceu e foi ao seu encontro. O vento batia com violência no seu rosto. O velho parecia ímpar àquela reviravolta do tempo. O sol ainda brilhava, o dia estava quente, mas o vento mudou e ficou forte. O menino sentou ao lado do velho. Ambos ficaram calados até que uma voz chamou o menino. Era a voz de sua mãe... "Você pode ouvir, mas não pode voltar para lá", disse o velho sem olhar para o garoto. Ele começou a chorar. O velho se comoveu e se levantou puxando o menino pelo braço. Parecia ser um gesto rude, então o velho resolveu ser menos agressivo... "Vamos garoto, preciso de te levar para um lugar que só nos saberemos onde fica, ninguém pode saber...", o menino virou para o velho e perguntou num tom lastimoso: "Estamos mortos?"... "Pior", disse o velho.

Viver. Era isso que as inscrições na grande pedra queriam dizer. Elas mostravam um boi, um homem, uma planta e um ser de duas cabeças que pairava sobre o homem. Segundo o que o velho disse, as duas cabeças eram a vida e a morte. Sendo que, abaixo da criatura, havia coisas vivas regidas por ela. Viver! Era o que dizia aquela arte rupestre na pedra grande. "Não estamos mortos", disse o velho, "estamos vivos... Quem quebra as correntes de dor e resolve pairar além daquele tempo cinza, nunca estará morto. Lá em cima", continuou o velho, "vivem os mortos."

O menino viu o pai sentado na areia. O velho notou o olhar espantado e disse "seu pai veio logo depois de mim". O menino chorou... Ele caiu do penhasco e agora fazia parte daquele mundo tão ínfero e tal desconhecido... "Somos iguais aqui" disse o pai enquanto beijava a nuca do menino. "Somos um sonho de várias noites mal-dormidas". Em seu colo o menino fechou os olhos e dormiu... Cansou-se daquelas revelações tão abruptas, tão inesperadas e tão fortes para sua idade. Sonhou com sua mãe. Ela chorava na beira do penhasco

A mulher ficava dias e dias e dias à beira do penhasco. Uma cadeirinha de madeira e uma camisa do seu filho. Chorava todos do dias. Sentia-se só, sentia-se com medo do mundo que agora parecia tão desconhecido... Sentia-se definitivamente só. A mulher se levantou da cadeira e chegou mais próximo da beira do penhasco. Olhou as ondas em meio a forte névoa sobre o quebra-mar. Não! Ela não iria pular... Deixou a cadeira ali à beira do precipício, foi-se embora deixando tudo na sua casa: móveis, roupas... lembranças. Os outros moradores viram aquele gestos e se perguntavam: "Por quê?"

Logo eles imitariam... abriam as portas das casas e saíam sem se despedir do vizinho. Não choravam, não tinham motivo. Apenas seguiam... Seguiam aquela mulher.

O mundo ínfero agora era o lar do garoto, ele crescera e se tornara homem. Quando um dia estava no quebra-mar deu-lhe um vontade de escalar e ver como estava o mundo que deixara. Mas o velho da venda havia lhe alertado que, uma vez lá, não se pode voltar uma segunda vez... Lá era o mundo dos mortos, e não se pode ressuscitá-los. Mas o ímpeto aventureiro falou mais alto e o garoto, agora homem, começou a escalar. Subiu, subiu, subiu e subiu... Dois dias e uma noite subindo. O vento frio soprava dando a sensação de solidão. O quebra-mar ia desaparecendo na névoa... Lá embaixo o velho e o pai do garoto o olhavam silencioso. O velho então sussurrou: "Adeus"

Era tudo uma solidão sem fim. As casas estavam abandonadas. Lá à frente havia agora uma cidade toda iluminada. Uma cidade de violência, uma cidade de medo... Uma cidade. Mas aquele vilarejo não existia mais, as casas estavam vazias. Estavam mais negras, mais tristes. O garoto viu sua casa aberta, como todas as outras. "Será que foram para a cidade?", pensou. Ele andou até a sua antiga casa e um rapaz de jaqueta de couro e brinco no nariz saiu com mais dois logo atrás dele. "O que foi, mané?", perguntou ele. "Essa é a minha casa!", disse o garoto meio gago. "Aqui, não mora mais ninguém..." . O garoto ficou cabisbaixo, olhou seus pés e viu a gotas de chuva começarem a molhar o chão negro daquele lugar. "Eu fui pro penhasco, lá tem outro mundo, um mundo mais bonito", disse o garotinho que agora era homem. "Aé?", retrucou o cara de brinco no nariz, "Tu é doido, é? Pois 'tá parecendo. Não existe mundo mais massa que o nosso... Mas me mostra onde é o seu..." falou e logo sorriu para os amigos. O homem, inocentemente, os guiou até a beira do penhasco... "É lá embaixo..." disse ele... "Então vai!", empurrou o líder daquela ganguezinha...

Dessa vez o garoto não acordou. Caiu sobre as pedras negras e banhadas pela água do mar. Morrera e os bandidos saíram correndo para a cidade toda iluminada... O velho da venda estava sentado á beira mar onde tudo é sol. Onde tudo é lindo... O velho olhava para o mar e pensava: " Um mundo que tem sua percepção tão próxima, um mundo que deixa tudo pra trás... É o nosso mundo, é o nosso mundo..." e fechou os olhos pra sempre.

Valdemar Neto
Enviado por Valdemar Neto em 02/11/2008
Reeditado em 21/03/2009
Código do texto: T1262364
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