OSSOS DO OFÍCIO

São nove horas da manhã, quinta-feira, dia muito nublado, mas sem chuva. Dr. Enoque chega ao consultório, aqui mesmo em Bezerros. Bezerros é uma cidade aqui do Agreste de Pernambuco. Enoque é um de seus seletos habitantes.

Odontólogo famoso em toda região, fez curso até em São Paulo. Solteiro, mais de dez namoradas e ainda tem rapariga. Rico, seus pais têm fazenda de cavalos em Gravatá, gosta de uma farra; só bebe Whisk, daquele que tem um cavalo. Sua atendente é Maria, coroa enxuta! Parece que o doutor tem até um chamego com ela. Sei não viu? Se falar de Enoque, Maria vira uma fera. Outro dia um cliente reclamou porque ele tava atrasado – o carro quebrou, por pouco ela não foi às tapas com ele. Mas o doutor Enoque, mesmo bonachão é trabalhador, é paciente, e na hora do trabalho não tem brincadeira; chega na hora certa. Cliente dele não fica esperando como no SUS.

Já no consultório, vestido com a bata nova que Maria lhe deu de presente. Bata branquinha, nem parece que vai se sujar de sangue. Mas se sujar Maria lava.

Enoque abre a porta de atendimento se depara logo com o cliente da vez.
- Ele se antecipa. Bom dia dotor.
- Bom dia seu Julho, veio arrancar o dente?
- Não senhor, seu eu soubesse arrancar, arrancava em casa mermo.

Pela ordem do atendimento Enoque já tinha visto o nome.

Quanto o senhor vai cobrar para arrancar meu dente?
- Trinta reais.
- Quero não. Ta caro. Ou o senhor ta pensando que quero arrancar os dentes todo? Faça um menos.
- Converse com Maria, ela vai fazer um abatimento.
- E quem manda aqui é ela ou o senhor? Num faço negoço com muler.

Mas Enoque paciente, diz a seu Julho que fará o serviço por vinte reais, ele aceita, mas pela cara ainda achando caro. Enoque cumprimenta os outros clientes e conduz seu Julho até o gabinete.

- Esse negócio vai cair não?
- Não seu Julho. Isso é seguro, pode com muito peso.
- To gostando não. Num vou ter menino pra precisar ficar deitado.

Com muito jeito Enoque consegue fazer com que seu cliente se acomode na cadeira.

Seu Julho escovou os dentes? Pergunta Enoque.
- Não senhor, passei folha de Juá. É a merma coisa.
- É não seu Julho, a pasta dental além de limpar os dentes higieniza a boca.
- O senhor ta com muita frescura. Meu dente num ta pode, ta só furado.
- Tudo bem seu Julho, vamos arrancar então.

Enoque lava as mãos novamente. Já tava meio nervoso e até com razão, coloca as luvas – seu Julho ta aí de boca arreganhada – pega a pastinha de Xilocaína, passa na gengiva, pega a seringa, coloca o vidrinho do anestésico dentro e se dirige para junto da cadeira. Quando seu Julho vê a agulha fecha os olhos – quase se borra de medo. E quando Enoque espetá-lhe o buraco do dente – só tava um caco – o velho fez uma careta tão feia que Maria correu com medo. Mas voltou depois do susto.

Enoque respirou fundo e deu um tempo para o anestésico fazer efeito.

A boca de seu Julho já estava “dormente”. Ele tava pálido de tanto medo, parecia que ia ter menino mesmo. Enoque bate com fóssepe no dente. Ta doendo seu Julho?

- Não. Mas num é pra quebrar. É pra arrancar.

E, finalmente, Enoque puxa o “caco” de dente de seu Julho, com uma raiz que dava quase um palmo.

Deu uns pontinhos para fechar o buraco, colocou uma gaze, mandou ele morder e seu Julho foi embora satisfeito. Graças a Deus.

Esse conto é em homenagem ao meu amigo Enok, grande cirurgião dentista da Cidade dos Bezerros.

José de Lima / março/2006
limavitoria
Enviado por limavitoria em 27/03/2006
Reeditado em 23/07/2006
Código do texto: T129073