Cor da meia-noite

E lá estava Marcela à beira do mar. Já era de tardezinha e a garota de cabelos acastanhados esperava pelo anoitecer para realizar o seu feito. Havia estudado nos livros de rituais que a auto-iniciação deveria ocorrer entre a hora do pôr-do-sol até a noite completa, sem ninguém por perto para interromper, então escolheu fazer na beira da praia, já que era lá que estava morando com sua avó.

Levou consigo apenas uma mochila e um agasalho. Dentro da mochila estavam os apetrechos para o ritual solitário. Ela havia estudado a liturgia por dias e com muito cuidado até conseguir aprender e memorizá-la por inteiro.

A futura bruxa sabia que sua avó era uma sacerdotisa, assim como sua mãe e outras pessoas em sua família. A avó materna a criara desde criança, pois seus pais haviam morrido em um acidente de carro, e desde então ela havia virado sua guardiã. E agora, aos 16 anos, Marcela havia decidido que se iniciaria na bruxaria. Sentia que isso corria em suas veias. Agora ela estava pronta, sabia que a hora certa havia chegado para ela, assim como chegou para cada descendente de sua família.

Na casa grande onde ela morava com a avó, recorda-se de uma sala com muitos livros antigos que falavam sobre diversos assuntos, mas principalmente sobre bruxaria. Alguns contavam a história das bruxas, outros citavam a inquisição, mas um, muito especial, contava a história da família: a tradição das bruxas e sacerdotisas; dos magos e bruxos; dos feiticeiros e feiticeiras. Realmente isso tudo corria por suas artérias e veias, pulsando toda a tradição e os segredos da magia. No teto dessa sala foram pintadas nuvens brancas em um fundo azul que representava o céu em dia claro, parecia um céu real, o qual ajudava não somente na concentração para a leitura como também a meditar e relaxar. Em um canto, perto da grande janela de vidro, diversas almofadas de vários tamanhos e cores se amontoavam e era ali onde Marcela se acomodava para ler e meditar. Ela olhava para o teto e podia ver as nuvens se movendo, como se algum vento existisse que as fizessem trocar de formas e lugares e assim ela passava muitas de suas tardes. Um dia entrou na sala durante a noite e simplesmente vislumbrou algo inacreditável, o teto estava escuro como se ele acompanhasse realmente as horas do dia e tivesse vida própria, e assim todos os dias ela entrava naquela saleta para poder apreciar essa magia que acontecer, secretamente para ela, pois quando comentara esse fato com sua avó, esta dissera desconhecer a movimentação das nuvens.

À beira da praia Marcela desenhou seu pentagrama na areia, colocou as velas nos locais certos para cada portal correspondente (terra = norte; ar = leste; fogo = sul; água = oeste) sempre caminhando deosil pelo círculo traçado, ou seja, sempre em sentido horário, acendeu-as uma a uma com calma. Consagrou a água adicionando sal, seu pentagrama de prata, o qual usaria no pescoço, e também seu atame de prata, o qual possuía um cabo em forma de um dragão. Junto a cada elemento, o portal correspondente, estava presente algo que o representasse, no norte um punhado de terra e o óleo onde o seu pingente e o atame deveriam ser mergulhados, no leste um incenso, no sul duas velas representando a dualidade uma branca e outra preta, e no oeste a água consagrada e uma taça de vinho. Ela havia escolhido o nome Morgana para ser seu nome de sacerdotisa, invocou os portais.

- Grande guardião da Terra, eu vos chamo, estou diante de vós para minha iniciação, reconhecei-me, pois sou Morgana, Sacerdotisa e Bruxa; grande guardião do Ar, eu vos chamo, estou diante de vós para minha iniciação, reconhecei-me, pois sou Morgana, Sacerdotisa e bruxa; grande guardião do Fogo, eu vos chamo, estou diante de vós para minha iniciação, reconhecei-me, pois sou Morgana, Sacerdotisa e Bruxa; grande guardião da Água, eu vos chamo, estou diante de vós para minha iniciação, reconhecei-me, pois sou Morgana, Sacerdotisa e Bruxa.

Ela se banhou com o óleo, o incenso de laranja a envolveu, o fogo passou por suas delicadas mãos e, por fim, bebeu da taça que continha o vinho tinto.

- Que o meu poder e paixão sejam os caminhos da minha arte, que o meu sangue e o vinho se unam em minha proteção corporal, que meu amuleto e meu atame sejam minhas armas de proteção unidos pelo meu desejo e que abençoados sejam meus pés para que eu possa andar no caminho dos duas vezes nascidos, que eu possa me ajoelhar no altar de todas as coisas, que toda a vida criada me abençoe com sua pureza de sentimentos e pensamentos, que meus lábios sejam abençoados com o dom da verdade pelo Deus e pela Deusa. Que eu seja abençoada, que abençoada eu seja! Sou grata pela aceitação da magia em minha vida, assim como aceito que as palavras divinas toquem meus lábios para que eu diga a verdade. Que os portais iluminem minha alma e minha vida a partir de hoje e para sempre!

Com o atame em mãos ela andou deosil pelo círculo e uma a uma as velas foram sendo apagadas. Descarregou seu atame à terra. Pronto! Seu ritual de iniciação estava completo, agora era preciso aguardar a aceitação dos quatro portais, do Deus e da Deusa, era preciso saber se ela poderia andar pelo mundo da magia, se teria seus poderes abençoados e aceitos. Ela não sabia como isso seria demonstrado, mas tinha certeza de que poderia reconhecer o momento quando ele acontecesse. Caminhou pela praia para chegar à sua casa, um pouco antes de sair completamente da beira mar, sentiu um forte vento lhe embaraçar os longos cabelos e lhe gelar o corpo, virou-se em direção ao escuro oceano e olhou o céu. A cor da meia-noite havia desaparecido com sua luminosidade, dando lugar a nuvens carregadas de cor enegrecida, como se uma tempestade estivesse se anunciando. Marcela pensou nas estrelas mais brilhantes que iluminavam aquele manto negro, queria vê-las, olhou para as feias nuvens e assoprou, fechou seus olhos e como mágica as nuvens fizeram reverência a ela, a Sacerdotisa, e afastaram-se, apresentando o enegrecido céu coberto pelo manto brilhante das estrelas, o seu céu particular. Então ela soube que havia sido aceita em sua jornada de Bruxa e Sacerdotisa até que a vida se esgotasse de seu corpo e que o ar se esvaísse de seu ser em seu último respirar, ela finalmente havia se transformado em uma Feiticeira. Seu sangue ferveu, seu coração palpitou e uma farta lágrima por sua face escorreu, sabia que naquele momento sua mãe lhe sorria e ela de volta sorriu. Quando chegou em casa naquela noite, entrou na saleta com teto pintado e descobriu que lá estrelas surgiram no céu encantado para reverenciar e acolher a mais nova Bruxa da família. Marcela brevemente sentiu que possuía um coração mais calmo agora e que sua alma fora levemente enegrecida pelo céu da meia-noite e este seria o seu paraíso até seu último dia e, assim, ali embaixo daquele teto mágico, ela adormeceu sorrindo.

Lilith Góthica
Enviado por Lilith Góthica em 27/11/2008
Código do texto: T1305370
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