Contos de Tormenta - Dogmas - Parte I

Esse conto é baseado no mundo de RPG Tormenta e se passa pouco depois do romance O Terceiro Deus, tendo spoilers desse romance.

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- Eu avisei que ela era uma puta – disse o elfo, passando as mãos pelos cabelos sebosos e emaranhados. Os longos dias sendo puxado a ferros cobraram um preço alto sobre a vaidade dele.

Os outros encaravam com expressões mistas. Havia alguns fartos de ouvir ofensas a uma deusa que tanto sofrera e finalmente lhes arranjara proteção. Havia quem se incomodasse com a freqüência exagerada em que aquele prisioneiro falava. Dahlis não se surpreendia ou se assustava com nenhum. O que mais lhe incomodava era a falta de outros que pudessem concordar. A maioria dos desgraçados de orelha pontuda parecia satisfeita demais com aquela situação... situação de escravos.

- É uma puta que nos traiu – disse de novo, aproveitando que os minotauros estavam ocupados em negociação. Aqueles monstros escravistas estavam felizes por terem encontrado tantos elfos. Foram vinte deles de uma vez, todos reunidos apenas esperando para serem pegos. Fora praticamente uma armadilha, uma armadilha tecida pela deusa covarde que havia os criado.

- Fique calado ou os minotauros vão perder a paciência... de novo – falou um elfo magro cujas roupas, face e cabelos não estavam nem de perto tão imundos quanto os de Dahlis.

- Você é um resignado... um resignado. Foi você quem ajudou a convocar a reunião e é um dos motivos de estarmos aqui agora. Pouca coisa me dá mais raiva do que você falando como se fosse uma pessoa ainda. Se considera a si mesmo um escravo, então fique calado e deixe quem não se rebaixa protestar.

O outro elfo abriu a boca para deixar escapar palavras que eram ganidos de um cão chutado e posto em seu lugar. Eram ruídos desesperados de uma ovelhinha perdida no pasto, esperando o pastor levá-la de volta para a cerca onde se sentia segura, onde não precisava lutar para sobreviver. Quanto mais emitia aqueles sons de piedade e de desculpas imbecis, mais Dahlis sentia o estômago revirar com a raiva arranhando o coração e pedindo para sair.

Saltou sobre o resignado. Os dedos eram quase garras prontas para furar a garganta do maldito. O outro se assustou, saltando para trás e ali ficou de olhos esbugalhados quando Dahlis foi impedido pelas correntes. O ferro frio arranhou a pele do elfo enfurecido e o chamou de volta para o mundo.

Sentou-se assim como todos os outros elfos. Olhou o recinto de teto alto; uma criança ria para os desenhos nas pedras do chão. Os minotauros observavam. Alguns pareciam rir, observando o modo como cada vez mais os filhos de Glórienn, criadora dos elfos, se entregavam e apreciavam a proteção dos novos mestres, os filhos de Tauron, divindade da força.

- Minha alma não tem preço – soltou Dahlis, com palavras fracas.

- Ela não está sendo vendida, Dahlis. Sua alma sempre pertenceu à Deusa Mãe e tudo o que ela fez foi encontrar alguém para protegê-lo.

Olhos afiados feito adagas apontaram para o elfo.

- É isso o que os pais fazem. Eles protegem os filhos e usam os recursos que podem, mesmo quando os filhos ingratos não conseguem entender qual o melhor caminho.

Dahlis olhou para os grilhões. Aquele nunca seria o melhor caminho e, não importava o que lhe dissessem, a alma que carregava dentro de seu corpo há mais de sessenta anos, tão pouco para um elfo, era sua e de mais ninguém. Se um dia quisesse usá-la para esfregar o chão de uma favela goblin, ele o faria, mas seria por vontade própria, não por causa de uma porcaria de deusa que desistia dos filhos e da vida por covardia. Não porque estava cercado de gente de coração e fé falida.

“Eu vou fugir”.

O pensamento cortou a mente de Dahlis acompanhado de sangue de minotauros e elfos. Só enxergou o vermelho, independente de qual raça fosse. Ninguém que representasse ou quisesse sua escravidão continuaria vivo.

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O dever deles era seguir Glórienn. Eram os paladinos de sua fé, a máxima graça em questões de morte e guerra. A grande benção em matéria de espada e arco. Carregavam o peso de proteger uma raça sem pátria e sem orgulho, depois de terem falhado em proteger um povo com terras demais e humildade de menos. Conviviam com um peso que enxergavam mais como uma penitência do que como benção divina.

- Precisamos decidir – afirmou Remeneh, um elfo alto que tinha cabelos pontiagudos como pequenos punhais azuis apontando para o céu. Seus olhos anis esperavam a decisão do restante dos guerreiros.

- Ainda não estão todos aqui – avisou Aetis, de braços cruzados. Encostado na árvore, era o único que não tomara lugar no centro da clareira. Observava o restante dos Espadas de Glórienn.

Não havia muitos por quem esperar. A elite de guerreiros da deusa dos elfos era pequena naqueles dias. Ali na clareira, debaixo do sol, estavam vinte e três deles e não sabiam onde estavam os outros. Nos dias conturbados da Queda do Orgulho, quando a deusa havia se entregado à proteção do deus dos minotauros, muitos dos Nitfahglorienn haviam desaparecido. A confusão tomara boa parte deles e nem de seu grande comandante havia sinal.

- Precisamos decidir e faremos isso agora. Sabemos bem que não existem muitos de nós. Quem não foi morto na Guerra, pereceu caçando os shimay. A tarefa de proteger nossos irmãos recai sobre o ombro de poucos e isso só aumenta nossa glória...

- Pare com o discurso, Remeneh.

A voz de Aetis era machado cortando a árvore que crescia frondosa. Antes que os frutos da inspiração tocassem os corações dos outros, ele adiantou-se. Não queria ouvir a proposta indecente que estava preste a soar. Não passara anos derramando o próprio sangue e cumprindo votos para agora se tornar escravo. Chorara, matara e assassinara em nome de um povo que amava e ver essas pessoas se entregando era o mesmo que pedir para morrer.

Os outros guerreiros olharam-no e abriram espaço, convidando mais uma vez para que tomasse seu lugar no círculo. Não quis. Aquilo era deixar que o tecido de seda da proposta começasse a amarrar seus punhos e a água imunda da escravidão enferrujasse sua espada.

- Tome seu lugar no círculo. Todos os Nitfahglorienn têm direito de falar, mas devem estar no círculo.

- Não. Sei o que pretende falar e é uma proposta que nem deveria entrar em discussão.

O vento foi o único falante, conversando com as árvores e tendo folhas farfalhantes em resposta. Nenhum dos elfos disse nada enquanto dois de seus guerreiros mais importantes se olhavam.

Aetis sacou a espada e ficou no chão. Que a terra fosse testemunha de seu posicionamento. Daquela lâmina não passaria, mas não falou nada. Foi Remeneh quem continuou.

- Não é uma proposta. É o desejo da Deusa Mãe e não há desejo dela que não cumpramos. A deusa respira e respiramos junto. Falta-lhe ar e nós esvaziamos nossos peitos para que ela respire.

Aetis riu. Riu sem graça. Riu mortificado. Riu como se anzóis puxassem seus lábios e Hyninn lhe pintasse uma máscara de palhaço.

- Tudo isso é uma poesia para você, não é, Remeneh? Você é um guerreiro poeta. Passa os dias tecendo palavras sobre a espada e as batalhas. Falta-lhe apenas escrever com sangue os pergaminhos.

- Não é poesia que eu digo. É oração que a deusa dos ensina. Há um novo modo de proteger nosso povo.

- Não há modo que não seja o suor e o sangue! – gritou o elfo. A cicatriz que tinha na bochecha ficou aparente. O vento levou os cabelos avermelhados. O sol fez os olhos dourados brilharem.

- Não existe nenhum caminho que não seja a deusa, Aetis. Se quiser tomar modos de proteger nosso povo sem que ela tenha lhe indicado, é melhor que se junte aos shimay... Ou... faça o que realmente deve ser feito.

Todos os elfos olharam para a adaga na cintura de Aetis. Os Espadas de Glórienn tinham três armas principais em seu artefato. A primeira era a espada, cheia de honra. A segunda era o arco, coberto de glória. A terceira era a adaga, para se certificar que honra e glória sempre seriam mantidas. Só se deixava de ser um Nitfahglorienn morrendo, pelas próprias mãos ou pelas dos outros. Pelo menos metade dos elfos ali haviam caminhado para a clareira e tomado seu lugar no círculo pensando na adaga que tinham na cintura, mas ninguém ainda havia falado sobre a arma. Era um assunto que circulava no ar que respiravam, mas não tomava forma na língua.

Aetis baixou os olhos, mas não em direção à adaga. Observava a espada. Seus suspiros eram cortados pela lâmina e pelas histórias de batalha em que a banhara tantas vezes com sangue em prol de seu povo. Nunca falhara com nenhum voto, nenhuma palavra. Nunca duvidara de Glórienn.

- Esse é o maior sacrifício que podemos fazer para nosso povo, Aetis. Todos nos tornamos Nitfahglorienn para servir e assim provamos como serviremos.

- Esse não é o caminho certo.

- Se não o considera o caminho correto, então use a adaga – apontou Remeneh. Os elfos colocaram as mãos nas costas e olharam para Aetis. Vagarosamente, deixaram a posição do círculo e formaram filas, tomando posição militar para assistirem ao suicídio ritual.

- Minha eternidade se resume a amar aquela que me agraciou com um único motivo nobre para morrer. Que um suspiro de amor seja minha última prece à Única Senhora dos Elfos – recitou Remeneh e os outros repetiram.

- Minha morte é doce perante a eterna vida dos meus irmãos. Que eles vivam para perpetuarem a fé por quem amo e prezo acima de tudo. Que eles vivam para que eu seja lembrado como filho da maior das graças entre tudo o que é considerado divino – falou um outro elfo, citando o segundo lema dos Espadas de Glórienn.

- A verdade está nas palavras desse servo da Deusa Mãe assim como graça divina abençoa meu sangue através da minha fé – falou um terceiro.

Recitaram os lemas de suas vidas e repetiram várias vezes, continuando a ladainha. As palavras entravam na mente de Aetis fazendo as memórias arderem. A vergonha agitava-se, mostrando que negava cada um dos conceitos pelos quais lutara e estivera disposto a morrer. Pegou a adaga e olhou a lâmina prateada. Passou os dedos pelo punho trabalhado, em especial pelos nomes de seus parentes talhados. Suspirou e apertou a arma, levando-a ao peito. Os lemas continuavam a ser repetidos.

O elfo fechou os olhos e passou os dedos pelo fio frio da lâmina. Sentiu o sangue escorrer. Passou-o pelo rosto, sentindo o vermelho que vinha de dentro de si e que era fruto de uma deusa que se escravizara. Tomou então uma atitude que só poderia ser reconhecida entre seus irmãos como loucura. Cortou as pontas das próprias orelhas e ali, sangrando, apontou a adaga para Remeneh.

- Não morro por isso. Não morro! Morra você por uma deusa que há anos exige de você e agora te toma tudo.

Arremessou o objeto. Remeneh olhou boquiaberto e esperou a morte, mas naqueles breves segundos, algo brilhou dentro dele, algo que não brilhava há décadas. Era a retribuição da fé e dali veio a rapidez que lhe permitiu sacar a espada e defender um golpe certeiro de um dos melhores guerreiros que Glórienn ainda tinha. A adaga caiu aos pés de outro elfo. Um pouco do sangue espirrou nas botas.

Shaftiel
Enviado por Shaftiel em 06/01/2009
Reeditado em 17/01/2009
Código do texto: T1371303
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