A Senhora Regina

Não sei há quanto tempo foi, parece que foi ontem, às vezes parece que foi antes de Cristo, mas nas noites insones quando me parece que o teto do quarto vai ruir, lembro-me de tudo. Na época eu morava em uma pequena cidade do interior, era muito jovem, e agora, das brumas da memória, entre as imagens dos meus pais sempre bem vestidos e os doces e manjares na mesa da cozinha, eu a vejo.

A chamavam de dona Regina, não sei se era esse seu verdadeiro nome, pois ninguém que eu soubesse conhecia sua família. Às vezes minha mãe a cumprimentava quando ela passava em frente à casa..."Como vai , dona Regina ...". Ela morava no fim da rua principal, numa casa talvez herança dos pais, talvez emprestada por algum parente ou alma caridosa. Uma tarde, passeando de bicicleta (esse era meu maior prazer), com uma colega da escola, entrei por uma viela , e ao passar por uma casa antiga, sem prestar muita atenção no lugar, escutei minha companheira dizer que era ali que dona Regina morava.

Todas as manhãs eu a via passar em direção à padaria, e da janela, me ajeitando com os apetrechos escolares e o uniforme, espiava curioso sua caminhada, como se um anjo bom me desse um tempo de graça na vida. Ela estava sempre com um meio sorriso, sua figura apesar de frágil e miúda tinha aquela altivez própria das pessoas especiais, em seus cabelos crespos e alvos desabrochava uma mecha mais clara , em um degradê impossível. Alguma coisa naquela pequena mulher sugeria alguma imensa tristeza de amor, não necessariamente de algum romance, mas de um amor, qualquer amor, o que sempre traz consigo alegrias e tristezas, e que nem sempre conduz a um final feliz, mas o que quer dizer feliz ao final das contas?

Às vezes, de volta da escola, brincando na rua, minha mãe sempre espreitando por aquela janela alta e estreita, às vezes eu cumprimentava a senhora Regina. Era um impulso irresistível e não tanto por reverência, que ela inspirava mais que isso, e quando ela falava comigo, ela de passagem, e eu na rua sem ter o que fazer, era como se eu fosse a pessoa mais importante do mundo. Por incontáveis vezes ela me trazia algum doce de leite, algumas balas, e eu sempre que a via passar com sua sacola surrada já cobiçava a guloseima esperada. "Estudou hoje já? Vá ser doutor pra cuidar de mim..."; Ela falava, e me lembrava minha tia, que Deus a tenha, que nunca mais viveu depois que foi, ainda cedo, abalada por um amor que desapareceu.

A senhora Regina adotara uma criança abandonada, que então já era um adolescente, e de vez em quando os dois caminhavam sempre juntos pelas ruas da pequena cidade. O que se sabia era que a família da criança mais tarde arrependeu-se do abandono, e eles tentaram tira-la de dona Regina, mas sem sucesso, pois até o juiz da cidade conhecia a velha senhora e tinha muito apreço por ela.

E assim a vida foi passando, e eu, feliz de um jeito que nunca mais fui, moleque ainda, já flertava com gosto minha companheira de passeios. E eu brincava, estudava, e adorava meus pais. Naquela pequena cidade, naquela época que parecia eterna, não havia pessoa mais querida que a senhora Regina. Acho que algumas pessoas a ajudavam, mas não parecia que precisasse, na sua minguada vida era a pessoa mais feliz do lugar. Chegou a ir à nossa casa algumas vezes. Um dia meu pai lá estava quando ela trouxe-me uns brinquedos, já meio gastos, disse que Carlinhos, seu filho adotivo, não ligava pra eles, e como ela gostava muito de mim... Meus pais aceitaram, constrangidos, e eu que já passara daquela fase infantil, agradeci e abracei-a. Ela saiu de casa com aquele sorriso meio surpreso, meio triste, e me disse "você é muito bom, vai arrumar uma boa namorada e ser feliz...".

Carlinhos parece que tinha algum problema congênito, pois nunca o vi brincar desembaraçado, estava sempre com o ar meio sorumbático, e muitas vezes ao passar na frente de casa com sua protetora, o via tropeçar sem motivos. Ele freqüentava a escola pública, e soube que alguns meninos certa vez tentaram agredi-lo, como não é difícil nessa idade ocorrer. Algum tempo depois, em um dia de verão espalhou-se a notícia de que Carlinhos morrera. Lembro que foi um choque para mim. Talvez se bem me lembre, a primeira vez que alguém meu conhecido morrera. As pessoas comentavam de passagem que fora de fraqueza, talvez anemia. De fome não podia ser, dona Regina sempre teve o suficiente em casa, nunca se soube de sua renda, mas o que ela ganhava era o bastante até para distribuir para os mais pobres.

Não quis ir ao velório do menino. Sempre tive medo de assombração, houve uma época que em casa morou uma agregada, (hoje tenho saudades dela), que me impregnou para o resto da vida de histórias de fantasmas. Mas nesse dia cheguei a vislumbrar o vulto de dona Regina ao passar frente à casa. Os olhos tristes, encurvada, andar trôpego, a sacolinha do lado, talvez aí fosse quando meu cérebro mudou para sempre. A alegria descompromissada da infância tornou-se a consciência das tristezas do mundo. Nunca olhara dona Regina como a olhei naquele dia. Era minha mãe que ali estava, era a Virgem Maria, era Nossa Senhora Negra, era Iemanjá, que depois conheci quando mudei pro litoral, era a nossa Protetora Eterna, era e tive a sorte de ver isso naquele momento, era a força do Amor, a mais poderosa força do mundo, e pairando soberano sobre os amores da vida, o maior amor do Universo, o Amor de Mãe

.Aqueles dias tristes foram se dissipando, eu voltei à vida normal, novas descobertas amorosas me assombravam, e eu crescia partilhando com meus pais o tempo mais feliz de minha vida (agora sei...). Dona Regina, esta pouco se via, dizia-se que quase não saía de casa, e daí em diante só a vi passar mais uma vez em frente de casa. Já era outra pessoa, suas roupas agora eram encardidas, a pele murchara os cabelos meio despenteados, o andar hesitante, como que perdida no mundo, os olhos de criança triste. Eu a olhei com uma pena infinita, e ela retribuiu o olhar, parou um pouco, hesitante, esboçou uma imitação daquele sorriso meigo que sempre tivera, e murmurou, como se fosse um adeus... "Vá ser doutor...".

Nunca mais a vi. Meus pais encontraram uma casa no litoral, meu pai não andava bem de saúde, e mudamos em um final de semana de inverno. O tempo cobrou seu tributo e eu esqueci a pequena cidade. Na agitação da minha mocidade, nos namoros calorosos, que sempre fui romântico, nas viagens de passeio, que sempre fui curioso, nos estudos, que pra isso sempre fui sério, na vida em família, os anos se passaram. Após muita dedicação e noites insones despendidas em estudos, formei-me em medicina com louvor. Após o período de residência, a primeira coisa que fiz foi voltar à pequena cidade em que cresci. Algo muito forte me impelia, e apesar do contorno desse sentimento ser indefinido, no intimo eu já suspeitava sua origem.

Já na cidade procurei por notícias de dona Regina. Sim, ela falecera pouco tempo depois de sua criança ter sido levada pelos anjos. Sim, ela estava em um pequeno túmulo, nas cercanias. Lá fui eu, com o coração apertado, prestar minha homenagem. Localizei a lápide singela, e ali misturei as lágrimas a uma sentida oração. Tudo o que eu era, meus méritos, meu desejo de salvar vidas, de curar pessoas, minha carreira que se iniciava, tudo irrompera de uma simples frase, dita algumas vezes com inesperado carinho, por uma voz vinda do fundo de um coração que hoje não mais batia, que descansava agora de sua passada agonia, uma frase, lançada no meio de uma rua de terra, em uma pequena cidade do interior..." Vá ser doutor...”. Não posso te curar agora, dona Regina, mas existirão outras para serem curadas, outras para serem aliviadas, outras Reginas na vida, senhoras, filhas, netas, seus amantes, seus pais e filhos... Parafraseando Hemingway, é por nós que os sinos dobram, e aonde quer que a senhora esteja, e estou certo de que é um bom lugar, dona Regina, muito obrigado.