BALA NA VEIA

BALA NA VEIA

Tenho viajado muito este ano (Mariana vem comigo agora). Ontem, por exemplo, chovia às bategadas e os relâmpagos se enraizavam dos céus à terra em sucessivos despejos fotográficos, pálidos e instantâneos como as vaidades da vida. Nem por isso adiamos a viagem daquela noite. Meti as pernas no beiral da janela e, numa coreografia cinematográfica, lancei-me de um trampolim imaginário num mergulho abismenso e catarático através das trevas úmidas da madrugada. Atrevi-me a flanar à maneira dos deuses para conquistar os píncaros olímpicos e os louros da perfeição. Obtive, porém, a mais inexpugnável das vitórias, a estaca de aço dos vampiros modernos.

Silêncio.

Mariana continua dormindo, esparramada no almofadão da sala. Melhor assim. Ao menos fica latente a possibilidade da aurora ou qualquer desfecho mais digno para esta angústia selvagem. Melhor assim. Que quando Mariana tosse muito rói uma agonia sem nome. Dorme, Mariana, que é melhor assim.

Silêncio.

Atingi as profundezas do abismo num hiato memorável de êxtase e magia. Mariana já estava lá, com aquela maldita capa de chuva que ela ganhou de um cliente italiano. Fez um gesto de silêncio e me arrastou até uma enorme clareira nebulosa, onde se realizava uma cerimônia de iniciação: o batismo de um suicida.

Todo o espetáculo era regido por Dioniso e culminaria num banquete supremo, organizado especialmente para que o suicida provasse o fruto bíblico, maculado de sangue pela argúcia da serpente. Ao centro dos acontecimentos, pude divisar o dedo de Deus, materializado em lenho proibido. Lá estava ela, majestática, magnânima, una e única, única e eterna, a árvore da Ciência do Bem e do Mal, poluída pelo suor inocente dos homens. O suicida chegou-se à galharia e beijou com a língua a fruta escolhida. Centenas de anjos retorciam-se de gozo, abanando suas caudas freneticamente à maneira dos cães satisfeitos. Sinos do mundo inteiro bimbalhavam em redobres diabólicos num compasso crescente de intensidade titânica. Ao ser dada a ordem, o suicida cravou os dentes na medula sumarenta da fruta, chupando-lhe os bagos licorosos numa volúpia lasciva e animalesca. Tossia muito o herói, tossia muito…

Silêncio.

Mariana teve outra crise. Será como o Deus bondoso receitar. No sono, numa viagem… Mariana é a Virgem Maria esquecida pelo filho. Ah!, minha doce criança sonhadora! Foi um sonho feliz o miserável minuto de nossas existências. Minha eterna criança sofredora… Acordamos para a vida, mas já ia alta a noite. E caminhamos nas trevas por uma estrada, onde não havia estrada. E esmolamos sorrisos a quem não tinha dentes. Ah!, Mariana, Mariana… Pudesse eu acreditar como você acreditava na providência divina. Pudesse eu esperar como você esperava pelo miserável antídoto. Pudesse eu amar as coisas simples e belas como você amava as coisas simples e belas, mesmo que elas não fossem nem simples nem belas. Mas eu vejo com olhos humanos, Mariana, e descubro na sala as seringas espalhadas pelos cantos. E sinto com o coração em cacos minhas artérias envenenadas e apodrecidas. E constato com a inteligência desfraldada que a esperança não passa de um conto de fadas bem engendrado. Toda a nossa agonia (adeus Mariana) não vale o menor aborrecimento dos deuses.

José Martino
Enviado por José Martino em 15/02/2009
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