O Leão de Ouro

"Gold lion gonna tell me where light is"

Trecho da música "Gold Lion" da banda Yeah Yeah Yeahs

Não imaginava o mundo ser assim: tão abismal. Seria então uma queda profunda onde o nada é o ponto negro que costumamos chegar. Eu minto: eu imaginava o mundo ser tão abismal. Imaginava, porém não tinha visto ainda. As pessoas paravam de andar e começavam a se roer de invejas cegas e surdas. Quando eu vi, eu também me roía. Não senti o sangue brotar dos meus dedos machucados, muito menos o notei brotar do outros dedos. Dos dedos de minha mãe que limpava os cortes que meu pai lhe afligia. Os dedos do soldado morto que cutucava o furo da bala em seu abdômem. Os dedos pingavam sangue negro, amarelo, branco. Às vezes não se tinha sangue nenhum. As mãos eram tão limpas quanto qualquer aparelho de porcelana cara. Eu imaginava o mundo ser abismal e o rio que poderia até correr no fim desse caos era feito de sangue que brotava de vários dedos unívocos. Eu andava em busca de respostas para tamanho abismo, mas não fugi de canto algum. Fui dar num lugar em que esse leão de ouro reluzia e me mostrava os dedos marcados de dentes tão afiados que ficaram vermelhos de sangue. O que eu poderia pensar? Eu imaginava o mundo ser tão abismal, mas comecei a ver como éramos.

Foi um dia em que as ruas estavam vazias e as praças não mostravam aquele entusiasmo de gente. No meio da praça eu vi o leão de ouro bruto, virgem e o sol batia-lhe a juba dourada dando todo o ar de superioridade. Ele mandava no céu e na terra. Meu senhor supremo e que me dizia o que criara e o que me fizera... Quando acordei, tudo era um sonho. Minha máquina de datilografia estava com uma folha e eu escrevi tudo que a brisa me contava.

Onde eu havia me perdido?

Onde eu havia me encotrado?

Tantas suturas minha pele mostrava; tantas vozes que ao mesmo tempo diziam tudo e o tudo era um nada sem ar... Vácuo... Silêncio...

Quando inventei de olhar pela janela, vi o mundo abismal que os olhos daquele leão me revelavam subjetivo, introspectivo. Um não-exógeno que fazia as coisas flutuarem dentro de si. O mundo abismal que se revelava aos meus olhos naquela nova janela - que há anos eu tinha só que agora eu aprendi a usar - era aquele mundo que o poeta gritava em seu simbólico verso transmutante de luzes azuladas que batiam nas estrelas mais distantes de nosso universo de reflexos. Reflexos de meninos e meninas. Estrelas que morrem constantemente ao nascer de tudo que ao morrer do sol e todos os ventos do planeta Terra. Um lar, era tudo isso... Um lar dentro de outro lar que se escondia do lado de fora de minha janela. E o leão me espiava. O leão me expiava. O leão me comia. Eu me tornava ouro e vagava pelas ruas em busca de esmola. Eu pulava as pontes que eu mesmo construí para me ligar ao mundo sem ver o abismo que tínhamos feitos, todo nós, desde o início das eras. Eras que se iam pelas jubas do leão de ouro que me marcava no olhar; eu aprendi a andar pelas ruas sem sentir medo; eu aprendi a andar pelas guerras sem sentí-las e eu nunca estive tão seguro. Nas ruas eu vi os abismos particulares que todos tinham dentro de si mas não queriam expor. Todos somos seres abismais, viemos do caos e ao caos nós retornamos gradativamente. Nem as crianças estão livres do caos que nos faz construir pontes cada vez mais longas para não sentirmos, para nós abreviarmos o caminho até ele se tornar algo individual. Não vemos o que há por baixo da ponte. Uma vez que alguém caia ali, não se há mais volta, o esquecimento é a apenas o começo do inferno que em muitas crenças é o pior lugar, mas, às vezes, o leão me ensinou que é melhor esquecer de tudo e viver em paz, pois, de qualquer maneira somos seres que não olham quem nos olha, não falam com quem se escuta. Na aparência, ausência, transuência... Somos seres fadados a viver além do inferno que criamos em nossas toscas religiões. E eu andava por aí depois de pular minha janela, pois todo o poeta que pula uma janela, sempre tem o poder de voar...

Voltei.

E vi que meus dedos sangravam, mas não de roer, eram as letras que surgiam das pontas de meus dedos letrados. Letras que surgiam de meus olhos de visão inacabada. Eu via tudo tão nu, tudo era uma virgem sem roupa pronta para ter amor de alguém... Qualquer alguém que possa lhe dar prazer constante. Eu estava eufórico com aquilo que havia descoberto que me despi e saí para dar a boa nova ao mundo. Corri as ruas que me corriam sem meu olhar conseguir cogitar o que eu havia visto ali da minha nova janela. Parei na sarjeta e bebi o sumo do esgoto podre que vazava para as ruas e senti o gosto do orgasmo de ser introspectivo. Senti o gosto do abismo e vi que todos sentem prazer em ser abismais. Seres bestiais estes! Corri até o parque onde as flores se tornaram meu refúgio e lá vi meu leão de ouro me apontando onde a luz estava. Eu corri até ela e me vi embaixo da ponte que eu mesmo construí. As ruas agora correm na minha imaginação. A janela ainda está lá, junto com meus escritos e espero que alguém saiba ler a janela e pular dentro das páginas para poder ver onde eu estou. Os cegos são os detentores da visão mais privilegiada do mundo!

Agora sim, imgino o mundo abismal que aprendi a ver... Sou um ser do abismo agora...

Sou do abismo...

Um abismo...

Valdemar Neto
Enviado por Valdemar Neto em 18/03/2009
Reeditado em 18/03/2009
Código do texto: T1493664
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