Lobo Vermelho - Capítulo 1 - A jóia de Morroverde - parte III

III.

Em seus aposentos, no interior do carro-de-comando, Coronel Petro abriu uma garrafa de vinho, servindo primeiro a taça de seu imediato, Tenente Áureo Taleno.

— A que brindamos, especialmente, Senhor? — perguntou o oficial, com a intimidade que só lhe era permitida quando estivessem longe dos olhos da tropa: Taleno era genro do Coronel Petro e, a despeito da cortesia e a formalidade hierárquicas devidas para tratarem-se em público, tinham um com o outro uma relação de pai e filho.

— Brindamos o final de um ciclo, e o início de outro, Taleno. — respondeu Petro, olhando o líquido em sua própria taça. Era um vinho de cor púrpura, com uma tonalidade rara mesmo entre os Vinhos Surenhos a que cidadãos aveninos como seu genro estavam acostumados. Era possível ver nos reflexos do cristal da taça através do líquido um traço impressionante, como brilhantes fios de prata em sua composição, mas que se dissolviam ao tocar os lábios. Era uma bebida de aroma suave e textura encorpada, aveludada, antes um licor do que um vinho, porém, com sabor acentuado dos vinhos mais finos. Uma jóia entre as bebidas daquele tipo. Taleno apreciava-as, embora não fosse ainda um especialista, era um entusiasta de certo requinte para rapazes de sua idade. Ao saborear o primeiro gole vagaroso do vinho espoliado de Morroverde, compreendeu sem poder explicar a preciosidade daquilo que estava degustando.

— Sublime. — disse ele, com os olhos semi-cerrados. — De que ciclo está falando, Senhor, meu sogro?

— Você faz perguntas demais. Apenas aproveite. Estas garrafas não durarão para sempre.

— Aliás, ficou-me bastante claro que os espólios foram desautorizados, Comandante. Este vinho não deveria ter sido destruído também?

— E será, Taleno. Em poucas horas, eu e você vamos mijá-lo em alguma árvore. Às garrafas, penso em dar-lhes um destino mais nobre do que serem jogadas à beira da estrada. — disse o comandante, servindo mais vinho ao jovem.

— E qual seria?

— Coletei um punhado da terra de Morroverde, mais especialmente, a terra dos parreirais, e juro que não tinha onde guardar. Quero enviá-la ao Farol Púrpura, para ser analisada.

— E o que pode haver de extraordinário na terra daquela vila, para ser enviada aos padres no Farol?

— Ainda não sei, mas a terra que estiver acumulada em uma única das garras da esteira da dragona será o bastante para sabermos. Porém, meu caro, eu tenho uma suspeita.

— Uma jazida de cristal?

— Mais que isso, — respondeu Petro olhando fixamente para o próprio reflexo irregular na superfície do vinho — penso que as colinas abrigam um Adormecido.

Por muito pouco, Taleno não cuspiu fora o gole que acabara de tomar.

— Um Adormecido? Aqui, neste fim-de-mundo?

— Seu espanto me surpreende, Áureo. A essa altura, já devia saber que nem todos os Adormecidos são como Nosso Senhor Adano. Alguns entre eles preferiram se isolar, e não criar coisa alguma antes do adormecer. E entre estes, há os que preferiram ir para longe do Lago.

— Então esses morroverdenses estúpidos poderiam ter-nos liquidado, caso haja mesmo um Adormecido sob a terra?

— Sem dúvida. Se há uma divindade debaixo daquelas colinas, e é muito provável que haja, este batalhão terá derrotado um adversário mais formidável do que podem imaginar. Por isso minha insistência em fazer a tomada integral.

Petro procurou não dar ênfase ao que dizia, porque sabia, em toda a sua extensão, o perigo que seus homens correram. Mesmo assim, o tenente-de-ordens, que em um instante estivera enrubescido pelo efeito do vinho, ficou com a face lívida e os olhos estalados. Mesmo contada sem nenhuma emoção particular, e um tanto tardiamente, aquela era a notícia mais aterradora que Áureo ouvira desde a invasão dos bisontes à Fortaleza Noreste, onde seus irmãos mais moços estavam prestando o serviço militar. Era a primeira vez em sua curta, porém intensa, carreira militar que esteve tão próximo do pior tipo de morte que um adaniano pode ter: ser Absorvido.

— Não preciso nem mencionar o fato de que este é um segredo militar, não é, Tenente Áureo Taleno, meu genro? — perguntou o comandante, deixando cair a última gota da bebida no fundo de sua taça vazia.

— Absolutamente, Comandante. — respondeu o imediato, modelando sem raciocinar o tom de sua voz, dirigindo-se ao sogro como o oficial superior hierárquico que era. Assim que ficou em pé, em posição de sentido, por um instante, dezenas de perguntas e frases desconexas vieram-lhe à mente, sem que pudesse organizá-las. Ficou repentinamente zonzo. Era acostumado a embriagar-se sozinho, e sabia dos efeitos dos vinhos fortes do Vale Surenho, ainda que só de ouvir falar. Mas se as suspeitas de seu comandante estivessem certas, aquele Vinho Surenho que acabara de degustar teria sido produzido de uvas cuja parreira extraía seus nutrientes da terra onde está, supostamente, um Poder Adormecido. A cabeça pesava-lhe mais do que de costume para apenas três taças, e do fundo de suas entranhas, percorrendo toda a extensão de sua garganta e a superfície de sua língua, Taleno sentiu uma bolha de vômito rolar incontrolavelmente.

— Você está bem, Tenente Áureo Taleno, meu genro?

O jovem tentou responder, mas pareceu-lhe que seus lábios não o obedeciam.

— Você pode falar agora, Tenente Áureo Taleno, meu genro?

Num instante, a silhueta do comandante cobriu a lâmpada do teto do aposento. O jovem militar, curvado pela náusea e a ânsia de mais vômito, olhou para a enorme figura negra que crescia e avançava em sua direção. Taleno sentiu que sua boca parecia estar expelindo um enxame de abelhas, e que suas asas roçavam e arranhavam-lhe desde os pulmões até os fios do cavanhaque.

— Diga-me agora, Tenente Áureo Taleno, meu genro, quando e quantas vezes você traiu minha confiança?

Assim que a silhueta negra disse isso, as abelhas invisíveis começaram a zumbir, e esses zumbidos começaram a articular palavras que Taleno não estava pensando em dizer.

— ...quando-escalei-a-parede-de-sua-casa-até-o-quarto-de-sua-filha-Míria-antes-de-noivarmos-e-fizemos-amor-e-nas-três-noites-seguintes-quando-o-senhor-e-sua-digníssima-esposa-minha-sogra-foram-aos-Bailes-da-Imperatriz-e-eu-fugi-do-meu-posto-na-guarda-para-fazer-amor-com-Míria-sua-filha-e-uma-das-vezes-ela-pediu-que-eu...

— Está bem, já chega. — interrompeu o comandante, que no mesmo intervalo de tempo pareceu voltar aos seus parcos um metro e setenta e sua perna esquerda mecânica. As abelhas invisíveis também se foram, levando a náusea e a dor de cabeça de Taleno, mas não a sensação horrível de ter contado, não somente, segredos íntimos para o sogro, como por ter sido vítima de um encantamento pagão. Não conseguia, além de tudo, livrar-se da vergonha de ter entrado em tantos detalhes, e pregou os olhos no chão sem poder erguer-se.

O comandante gargalhou honesta e sonoramente.

— Deixe de bobagens, rapaz. Ou você acha que minha menina já não tinha me deixado a par da situação? Ela é muito menos pudica que você.

— Senhor — disse o jovem, gaguejando e suando frio — eu sinto muito.

— Não sinta. Sou eu quem lhe deve desculpas. Esse vinho tem mesmo poderes surpreendentes, não tem?

— Pelo Campeão Adano, se tem!, Comandante. — respondeu Taleno, quase sorrindo. — Mas essas duas caixas são as últimas de toda a safra. O restante foi destruído com o parreiral, Senhor. Poderia ser útil no futuro.

— Não se preocupe com isso — disse com seu costumeiro tom de ordem, entre rígido e burocrático — Eu sei fabricar esse vinho tão bem quanto sei calçar minhas botas.