A Passagem

Quando Eduardo viu seu corpo hirto acomodado entre flores num ataúde vulgar, primeiro uma sensação de alívio tomou conta de sua alma. Afinal era o fim e isto era deveras confortador. Dava um sentido especial ao conformismo de não ser mais responsável por qualquer outro ato. Era a certeza de que nada mais restaria a fazer a não ser a tranqüilidade de não ter que se meter mais com qualquer tipo de problema. O dinheiro, o trabalho, os compromissos, não eram mais motivos para preocupações. Não teria mais que se importunar com os inimigos, com os pretensos amigos, com os vizinhos entediantes, nem com qualquer ser humano desprezível que violasse sua individualidade. Tudo estaria para ele definido, como uma sentença final dada por algum juiz. O fim justificava tudo, era um momento de liberdade irremediável. Além de livre e sem problemas, sentia-se muito bem, tão bem que custou a acreditar que algum problema causasse tão precocemente o desligamento de seu corpo. Temia sempre que imaginava como seria sua passagem, mas como sequer lembrava do momento derradeiro, galhofava de sua sorte dando uma banana para tudo e para todos. Esta alegria porém, durou muito pouco, pois depois dos momentos de euforia, percebeu que estava sozinho e sem destino, a partir de então irremediavelmente um grande vazio apoderou-se de si.

Contemplou o cadáver dez longos minutos sem se dar conta do que havia a sua volta. Aos poucos foi se acercando dos detalhes daquele velório peculiar. O cheiro das flores incomodava-o causando má impressão. Não gostava delas desde a meninice, quando forçado pelos pais foi levado a um funeral de uma tia distante, a partir de então acostumara-se a associar o odor à morte não se importando o quanto elas fossem belas. Pouco as conhecia com exceção das mais famosas, aquelas que não tinham como não reconhecer. Suportava bem as rosas, margaridas, uma ou outra mais, mas naquele momento, sequer tinha conhecimento de que espécie de "mato" envolvia-o naquele caixão, mas isto até isto ficou em segundo plano quando mais atentamente percebeu que seu corpo estava vestido em um terno azul listrado muito surrado que mal lhe servia. Já nem se lembrava quando o teria comprado, ou se até mesmo teria ganho de presente de alguém, mas fato era que diante de tantos outros que conservava com carinho jamais esperaria que logo aquele que a tanto tempo estava encostado servisse de último traje. À cabeceira do ataúde duas longas velas brancas, ainda não acesas no castiçal serviam de marco, onde um crucifixo de prata escurecido pelo tempo, se destacava ao centro de uma flor de maracujá estilizada. No mais era um silencioso deserto. Ninguém no velório além do morto.

Eduardo sentou-se em uma banco de cimento duro e gelado próximo a saída, cruzou as pernas com elegância e com a mão apoiando o queixo ficou por alguns instantes meditando. Era muito significativo que buscasse a solidão durante a vida, que brigasse a exaustão para manter sua convicção, mas aquele isolamento num dia tão especial não lhe fazia nada bem. Esperava algum tipo de reverência de alguém que trouxesse com sua presença a certeza que não passou em vão em sua existência. Ficou a bem da verdade quase uma hora sem graça, imaginando quem poderia aparecer, mas ninguém apareceu. Como não se lembrava dos instantes derradeiros de sua vida, nem dos que o conduziram ao vale dos mortos, em sua memória um imenso vão nebuloso obscurecia seu entendimento. Não obstante a falta dos visitantes, era óbvio que seu corpo não fora parar ali por contingência do destino. Alguém preparara o local, escolhera os apetrechos, preparara o corpo e ao menos tivera a preocupação de que o velório fosse digno. Mas aí vinha a pergunta, quem o teria feito?

Esta pergunta não tardou a ser respondida. Pela porta principal, rapidamente entrava uma faxineira, morena de meia idade com o rosto manchado e cabelos mal tratados, vestida de laranja, segurava um vassourão e era acompanhada de uma mulher muito bem vestida e perfumada que com um ar responsável que não parava de dar ordens a pobre funcionária.

Eduardo com as mãos no rosto e bastante irritado, poderia esperar naquele momento qualquer pessoa, não negaria a preferencia por um amigo leal ou até mesmo um parente distante, ou quem sabe um admirador de seu trabalho, até preferiria que fosse mesmo uma figura caridosa que decidisse dar certa dignidade a alguém tão só. Toleraria qualquer boa ação, mas o que ele mais temia, foi o que de fato aconteceu. O epílogo de sua existência foi culminado pelas mãos de sua ex esposa. A inesquecível Rosa.

Com o ar de quem sabe o que quer se referia com naturalidade a faxineira ordenando aqui e ali. Perguntava sempre sobre uma certa encomenda em que a funcionária sempre negava a chegada.

Subitamente ele se lembrou a origem do tal terno. Como se uma tela abrisse em sua mente, as cenas de sua vida passaram-se aos seus olhos. Era um dos preferidos dela. Ganhou no aniversário de dez anos de casamento após uma comemoração que quase fez o casal se separar naquele mesmo dia. Naquela época, Eduardo estava muito endividado tendo que trabalhar muitas horas extras para conseguir saldar e valorizar o nome que nunca havia sido protestado antes. Rosa no alto de sua paixão, queria fazer uma festa surpresa para o marido, e sem consultá-lo gastou o que não devia. Eduardo até que fez um esforço para entendê-la, mas o capricho da esposa corroeu-lhe o fígado. Durante a festa, olhava os ornamentos, os funcionários, as atrações, o cardápio muito bem elaborado e intimamente calculava quantos e quantos dias teria que trabalhar para saldar aquele esbanjamento. Ficou contrariado pois esperava muito menos do que isto como prova de amor. Não era este o tipo de reconhecimento que esperava, preferia uma postura mais comedida, que afinal preservasse-o de aborrecimentos futuros. Quase no final de festa recebeu o tal terno, que até que lhe caiu bem, mas devido aos acontecimentos quase não usou-o deixando propositadamente esquecido no fundo do guarda-roupas, mas como não imaginara, alguém não o esquecera.

Estas lembranças provocaram um sorriso irônico tão revelador que se mais alguém estivesse naquela sala perceberia quanta revolta estava enclausurada naquele olhar que lançava sobre Rosa.

Ela por sua vez, alheia a qualquer tipo de sensações do além, cobrava a cada minuto a tal encomenda. A Faxineira se retirou entrando em seguida uma outra mulher que parecia ser alguém da administração do cemitério. Trajava um terninho marrom, camisa amarela clara e tinha no peito um crachá com nome Renata. Os cabelos presos para trás dava destaque ao rosto arredondado daquela funcionária que muito atenciosa ouvia Rosa educadamente. A ex esposa apenas se deu por satisfeita quando ouviu que sua encomenda finalmente estava a caminho e que quando esta chegasse haveria alguns homens que a ajudariam a compor a local.

Eduardo ouvia com indignação, mas mesmo assim não quis abandonar o local. Para arejar a cabeça deu as costas voltando-se para a janela de onde pode perceber que do lado de fora a vida transcorria despreocupada com as tragédias individuais. Não reconheceu o local em que se encontrava, apenas percebeu que o Sol ardia forte naquele veranico de maio. As pessoas continuavam em suas rotinas, os carros seguiam lentos em suas trajetórias previsíveis e nada mudaria independente se a morte aplacasse quem quer que fosse. Seu momento de melancolia foi substituído por uma curiosidade discreta quando alguns homens uniformizados traziam entre os ombros dezenas e dezenas de coroas de flores. Mais atentamente percebeu se tratar arranjos delicadamente enfeitados com centenas de rosas vermelhas. Rosa bastante animada indicava aos brutamontes onde deveriam colocá-las, cobrindo toda a sala com suas encomendas. Se houvesse alguém que por ventura viesse visitar o morto mal conseguiria caminhar pelo mar de flores de que instalara ali. Por fim na parede atrás do crucifixo, ela própria estendeu uma faixa em letras garrafais “ AQUI ESTÃO AS ROSAS QUE VOCÊ NUNCA ME DEU”

De súbito Eduardo lembrou-se de um entardecer a beira-mar. Sentado sobre uma esteira de vime recém comprada, Eduardo observava Rosa retornando em sua direção com as ondas a baterem em suas pernas. Ela tinha um sorriso fácil e um brilho no olhar que a tornava muito bela. Seu corpo bem torneado sempre fascinara o marido que observava o quanto ela era cobiçada por onde andasse. Ali não era diferente, o corpo molhado, o biquíni pequeno e o andar provocador fazia daquela morena ser motivo de inveja até entre as mulheres. Rosa sentou-se ao lado de Eduardo, dando-lhe um beijo apaixonado. Olhou-o nos olhos bem de perto e com a voz melosa queixou-se de nunca ter recebido flores da pessoa que ela mais amou na vida. Eduardo com olhar malicioso disse zombando que não se preocupasse, pois quando ela viesse a morrer lhe daria uma coroa com muitas flores. Rosa enfurecida, soltou gritos de revolta dando-lhe tapas nas costas, Eduardo ria muito e saiu correndo até o quiosque mais próximo que lhe serviu de refugio. Rosa chorou por alguns minutos e se retirou levando suas coisas. O que aconteceu posteriormente ele já não se lembrava mais, afinal não levou aquilo muito a sério e talvez nem viria a se recordar se não visse aquele mar de rosas que era o seu funeral.

Eduardo observava Rosa resignado. Não imaginava o quanto ela se magoara na ocasião, nem quanta falta ela sentia de um perfil romântico que naturalmente ele não tinha. Ela permanecia empolgada em suas funções, vez por outra passava perto do esquife, mas não chegou a olhar nenhuma vez para o morto e em nenhum momento chegou a ser vista por instantes sequer a contemplar ou rezar pelo ex marido. Desfilava pelo salão como um General imponente a ordenar, sempre apressada e cheia de vaidade a ajeitar os cabelos cuidadosamente penteados.

Eduardo caminhou lentamente em direção à saída, estava cansado daquele espetáculo deprimente. Já próximo à porta sentiu fortes dores no peito. Parecia que estocadas que comprimiam o fundo de sua alma. Cansado sentou-se novamente no banco de cimento. Entre os botões de sua camisa branca passou as pontas dos dedos procurando o local dolorido. Sentiu dois buracos estranhos exatamente no local onde a dor era mais forte. Abriu a camisa e viu com seus próprios olhos dois furos no peito na direção do coração. A despeito de não rejeitar a idéia da morte, que tornara-se um alivio, realmente como pensara era muito jovem para morrer, só não imaginara que alguém houvesse contribuído para isto. Esfregou os olhos, passou a mão na desta e com os olhos fechados fez um esforço supremo para lembrar-se em quais circunstâncias recebera aqueles disparos. Desistiu então de sair. Esbarrava as coroas de rosas sem vê-las, andava pela sala displicente tentando resgatar uma lembrança que fosse, mas isto foi-lhe impossível. Pensara então que o momento derradeiro deveria ter sido bastante traumático, daí o fato da amnésia.

As horas passaram-se até o momento em que os funcionários do cemitério vieram buscar o caixão para o sepultamento. Apenas neste instante Rosa aproximou-se do morto, mas permanecia sem olhá-lo. Um rapaz alto trajando um terno simples azul, com um semblante exalando piedade, se referiu a Rosa de forma muito amorosa para informá-la de que o caixão seria definitivamente fechado deixando-a a vontade para uma última despedida. Eduardo também se aproximou. Os funcionários pacientemente se ausentaram das proximidades. Rosa deu um olhar sorrateiro em volta e como ninguém viera mesmo e estivesse sozinha entre os estranhos funcionários, se aproximou ao ouvido do morto e como se lhe contasse um segredo, balbuciou algumas frases que aflito Eduardo distinguiu com assombro. Olhos arregalados encarando Rosa que sorrira com prazer, Eduardo reproduzia-as lentamente:

- Matei o coração que me matou.

Fechado o caixão, a comitiva partiu em direção a última morada do corpo de Eduardo. À frente seguia dois funcionários empurrando um carrinho com o ataúde, atrás Rosa que segurava um CD-Player tocando réquiem de Mozart, caminhava tranqüilamente pelos corredores entre os túmulos. Vez ou outra no refrão balbuciava “Maledictis... Confutatis” parte predileta do ex marido. A Descida a campa foi melancólica. Os Coveiros baixavam o ataúde com o auxílio de uma corda gasta. A roldana que ajudava na execução, chorava ruidosa. Rosa observava silenciosa com um semblante frio e inalterado. Terminado o serviço, um dos coveiros gritou:

- Está pronto Dona! - e ficaram enrolando esperando uma caixinha que não apareceu.

Eduardo escorado em um Serafim de concreto, observava tudo absorto. Tinha agora problemas mais importantes a tratar. Dera-se conta que seu último laço ao corpo físico havia sido arrebatado. O cordão umbilical de sua vida havia sido cortado definitivamente. A morte caíra-lhe fria e mais solitária ainda. Cabia-lhe agora tratar de sua sorte e mesmo sabendo que Rosa fora responsável pelo desfecho de sua vida, relevava a um segundo plano, pois percebera que seu destino era desconhecido. Perdeu Rosa de vista que desapareceu no labirinto de corredores.

Continuará.....

Almeida Ricá
Enviado por Almeida Ricá em 01/06/2009
Reeditado em 27/10/2009
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