Um dia de som e de seda

Ligo a velha vitrola na tomada, a parte fabricada com madeira está aos poucos sendo devorada por cupins.

A tocar, uma bela música, composta por uma melodia simplesmente magnífica cujo encantamento é capaz de suportar (ou superar) toda a dor proveniente de uma saudade irremediável a pulsar.

O som enaltece os cômodos da casa e enaltece meu peito que agora parece maior do que eu mesmo, maior do que o mundo. Adentra meus tímpanos acompanhando um doce fulgor de volúpias pertencentes a um outro alguém dentro de mim que não é eu.

Vejo seu rosto surgir por entre as vidraças. Sentamos um ao lado do outro, em uma cama macia revestida de temas florais, concordamos: a voz não soa tão doce, é grave. É grave e confortável e a sensação é de que a vida se tornou apenas um detalhe à minha volta, à nossa volta: à minha e à desse outro alguém que está dentro de mim mas não é eu .

Então, neste momento, mesmo as mais belas flores no jardim permitem-se comover, porque divino é um encontro de olhares. Todas as coisas passam a ter consciência de suas existências, a casa inteira cria vida e a bailar abraça nossos corpos agora unidos. Você abaixa os olhos, a girar, diz:

“Eu não poderia sorrir, meu amor. Me perdoe, mas não sei se posso destinguir os casos que se sucedem comigo: será apenas um breve sonho ou uma realidade que não existiu, como uma vida desviada? Quem somos nós e por que nós entre tantos? Por que você para mim e eu para você, somente?”

Assim me recordo daquela voz que jamais soou igual àquele dia: como um leve tecido sedoso e branco, sofrendo o sensível impacto de uma tímida brisa que, desencorajando-se, avança e recua em seguida, partindo para o nada de onde veio. Lentamente. E avança. E recua.

Deste modo recordo-me daquela voz e daquela melodia indizível: pois não eram toques de dedos ao piano. Eram, sim, um flutuar lépido por entre nuvens pálidas pacificadoras e portadoras da esperança, assim eram os toques daqueles dedos.

Como um tecido suave flutuando por entre as fendas dos vimes retorcidos em palanques tingidos de um branco de luz, e todas as coisas reluzem.

Um tecido levíssimo flutuando por uma varanda simpática de uma casa branca que jamais me pertenceu mas que me traz o sossego de ter um lar. Uma leve seda a tocar minha face risonha. Um tecido desprovido da liberdade, condicionado ao vagar incerto de um vento a brincar sobre minha face em uma agradável tarde de verão.

É chegado o momento que já não importa a vida ser um sonho ou uma realidade, e perguntas já não valem nada pois as respostas já perderam seus significados.

Chana de Moura
Enviado por Chana de Moura em 03/06/2009
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