Visões de Cegueira

No dia de Páscoa quando ela ia comprar o pão para o café, ela sentiu o peito lhe faltar com o ar, a tontura e o desmaio. Quando ela voltou a si, não viu mais ninguém. Era como o céu lhe tivesse baixado um véu negro, era como estar mergulhado dentro de um mar escuro de faces ocultas. Ela sentiu que havia gente ao seu lado, porém não os via, não conseguia distinguir quem era quem. Na mesma hora ela, então, percebeu que sempre fora assim: não percebia o mundo e a cegueira era-lhe completamente familiar. Os anos passaram e sua paixão na escuridão foi lhe dando aquilo que ninguém poderia imaginar. O mundo negro se tornou seu lar eterno e ela se acostumava com o negrume e com as vozes estranhas que aqui e acolá lhe apareciam. Ela não mudou então, fez-se um mundo de cego para ela.

Quando o tempo urgiu e ela se viu dentro de si com cabelos brancos e olhos opacos, ela não teve medo do por vir, sabia que a morte lhe era inevitável. Precisava reviver em si, de formas inimagináveis como quando as imagens se parecem tão sutis e não se consegue alcançar o som da flauta invisívels que embalam tais imagens. Imagens de imaginação de um cego aquém do mundo e além do universo. Como pode? Como ser assim dentro de si antes de se tornar um pó misturado ao verme e ao odor putrefo? Ela se levanta e vai para o altar de si e dos sonhos e se vê refletida dentro de sua retina opaca, imagina-se com seus cabelos brancos, se põe a penteá-los de forma lenta, como se fosse para memorizar cada movimento celébre que ela fazia. Enfim, ela se deu conta que seus movimentos eram ímpares dos movimentos do mundo e seus caminhos faziam tudo retornar com cada metro de profundidade. Às vezes o vento soprava em seu rosto e ela imaginava em seu mundo escuro, este mesmo sopro ecoar nos labirintos de sua deficiência. Era como se fosse um sussurro e lá estava ela dentro do labirinto. Com aquela idade em que o mundo se fechou em negro para ela. Em que a cidade não mais se via, mas ela a contemplava como um sonho dentro do sono acordado. Desperta-se no labirinto dela e o vento corre através de seu corpo jovial e nu. O seios nus, o ventre nu, os olhos, outrora castanhos, bem abertos para o escuro de si. O vento era fragrante de mil rosas ocultas dentro de seu olhar cego. Ela corre por aquele labirinto e busca o refúgio de jardins que já vira, mas que hoje só ouve. O mundo fora dela a contempla sentada no banco da praça, sorrindo em seus pensamento, vendo si própria correr livre dentro do infinito... Oh, liberdade antes de visão fragmentada de anil, visão verdejante, azulável, amarelante. Visão hipócrita ou hipotética. Pra quê? O que guarda em si parece ser algo que ninguém jamais viu, mas que é de todos. O seu labrinto escuro e inimaginável, porém possível, parece uma oração para o desbrigado da fome de ver o que real em si, enquanto as imagens focalizam a retina e transmitem o falso, o incógnito, o passageiro. Enfim, ela corre, nua, por entre os ventos que nunca viu e que nunca vai ver.

Ela sente o cheiro de mofo passar por perto dela. O cheiro ronda a mulher como se o indivíduo lhe quisesse tomar algo. Mas ela não o via, os sussurros não lhe diziam muita coisa. O estranho lhe acaricia o rosto enrugado, passa a mão em seus cabelos. Ela sente o cheiro de mofo da luva, provavelmente alguém que lhe quer tirar algo importante. Mas ela ainda corre no seu labirinto e, neste instante, ela para e ver um ser vestido de vermelho que lhe toma a frente. O seu rosto era branco e ele tinha a boca preta, usava um chapéu comprido e tinha cheiro de mofo. Em meio ao labirinto, solitária, ela começa a chorar, enquanrto cobre seus seios e seu ventre. O indivíduo se aproxima, diz que não tivesse medo, diz que gosta dela, diz que sempre a quis e que tem sido muito paciente. Abraça-lhe e ela chora, afogada em seu peito. Ela beijo o alto de sua cabeça, um beijo terno e paternal. Ela procura o pescoço do indivíduo para beijar, mas este se contém, não quer que ela o toque com seus lábios infantes. Ela pede que a beije, mas não! Ele lhe dar as costas e some na escuridão. Um sonho, teria sido isso? Quem era ele?

No quarto, deitada na cama, ela fica com olhos totalmente brancos fixos no teto. Era a morte que veio buscá-la, porém não a quis. Pra quê? Pensativa, o que a morte desejava? Enfim, o que há no mundo que faça a morte lhe recusar? A cegueira agora se fez cruelmente real. Como se a ilusão do labirinto tivesse ido embora com o aquele ser de chapéu e terno. Afinal, o que era dela, então? Ela buscava em si as respostas. Ninguém entenderia melhor seu mundo do que ela, então busca. Uma procura constante... Por qual motivo a morte não a quis? Não conseguia mais dormir e, em seu labirinto, não conseguia mais entrar. Fechava os olhos e imaginava o branco, nenhum pensamento a mais ou a menos. Só a imagem fotográfica do homem de vermelho e de lábio branco. Ele não a deixou beijar-lhe, não deu à ela uma última visão imaterial do mundo imaginativo. Ela ofegaria dentro de suas lembranças labirínticas enquanto desmaiava nos braços da Morte. Nada, nem ofegar e nem desmaiar. Tudo alvo como leite. E a morte nem chegar. Cegueira sem memória de sonhos.

Um dia, os seus pulmões amanheceram mais fracos do que o de costume e ela tentava gritar para sua doméstica, mas não tinha forças para tal. Quando tudo estava mesmo perdido, ela se entregou e fechou os seus olhos alvos.

O negro labirinto dominara o branco oco de suas visões cegas. Diante de uma parede de espelhos trincados ela se viu nua e jovial. Viu-se virgem aos olhares humanos dentro de si. Ninguém a tocaria. Ela nascera e morreria daquela forma: pura. Ela acariciava seu corpo, passando sua mão pelo ventre, os seios, suas costas, pescoço. Era um corpo alvo, jovem que combinava com os tons de seus olhos e de sua boca. Seus olhos eram de abismo e sua boca de inúmeras flores. Ela toca a superfície do espelho bem onde está refletido seu rosto. Seria ela mesma? Sua juventude, afinal, se manteve intacta dentro dela. Então, atrás dela surge o homem de vermelho. Ele coloca um dos seus braços ao redor de seu abdomem e com o outro retira a cartola. Sussurra algo no seu ouvido. Diz que não precisa ter medo, diz que não sofrerá com a escuridão. Diz que a juventude não está nos olhos de outrem e sim nos olhos de quem a sente. A beleza dela se faz interior pois o mundo polue a beleza exterior. O homem esperou para que ela notasse o mundo intocável que ela guardava em si. Pureza dos sonhos que não foram corrompidos pelas visões ilusórias do mundo mal-feito.

Enfim, o homem pegou em sua mão e a guiou para além do escuro. Lá fora de tudo, a mulher dormia profundamente sorrindo. Seu sorriso era o mais belo de todos, pois agora ela sabia: era capaz de enxergar mais que qualquer outro.

Valdemar Neto
Enviado por Valdemar Neto em 06/06/2009
Código do texto: T1635428
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