A menina - 3 - Solidão
Leia a segunda parte, Sob o Luar:
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A menina se aproximou do relógio, mas não o tocou, ficou ali, parada, somente observando e na sua cabeça pensamentos começaram a surgir.
"Um objeto tão velho e ainda funcionando, como será que pode? Com certeza não é vedado contra a poeira e também tem esses buracos pelo quais muitos insetos podem entrar. Estranho, muito estranho, você já deveria ter parado de funcionar sabia."
O relógio se encontrava sobre uma lareira de pedras, empoeirada, e antiga, com suas bordas muito gastas pelo tempo. Da janela que se estendia enorme na parede atrás da menina o sol emanava seus últimos raios, laranja, nuviosos. Vários móveis antigos faziam parte da decoração, mas não com tamanho enfoque.
Após um período olhando-o e tentando entender o funcionamento do relógio voltou-se para sua própria sombra - "Tão grande para eu que sou tão pequena." - e ficou a admirar seus próprios cachos que ao serem puxados e soltos voltavam timidamente a ser como antes.
E assim era, uma criança tentando entreter-se, sem que houvesse qualquer coisa, ou alguém por perto.
- Saudade!
Era o que sentia o que somente tinha a dizer, pelo que seu coração chorava, infantilmente, puro.
- Seu cheiro!
Conseguia senti-lo, mesmo depois de tanto tempo, mesmo tão longe. Mas ainda sim era nítido aquele perfume, misturado ao perfume da flor.
Queria voltar, vê-la novamente, dar-lhe um abraço.
- Mas como? Tem medo de mim!
Olhar para seu rosto, para seus olhos, dar-lhe carinho, amor. Sorrir para ela, pentear seus cabelos, acariciar sua pele, dizer que a ama.
- Se algum dia puder fazer!
Sentou-se ao chão empoeirado, pegou um pedaço de carvão e começou a desenhar na madeira. Ali se formavam figuras rústicas, mas muito bem feitas para uma criança daquela idade.
A noite surgiu nublada, escura. Olhos e sombras apareciam na borda da floresta, mas aquela pequena figura sentada ao chão do imenso ambiente não se preocupava. Concentrava-se em seus pensamentos e continuava os rabiscos até que seus olhinhos não mais agüentaram o peso das próprias pálpebras.
Sonhou com ela, sonhos bons e ruins. Sonhou que se criavam, como mãe e filha e também que era totalmente rejeitada, destinada a ser solitária. Em um desses sonhos encontrou-se com ele que a levou à beira de um precipício, um lugar belo, verde, de uma magia deliciosa e bondosa. Ela apareceu e então os três fizeram um piquenique, sentindo a brisa suave, e o cheiro do mar que batia nas rochas vários metros abaixo. Mas no fim a deixaram sozinha, tinham o coração frio e os olhos maldosos, e já noite, quando sentiu frio e medo, quando toda aquela beleza sumira para dar lugar a tudo o que ronda os pesadelos infantis. Corria para tentar alcança-los, mas não conseguia, eram rápidos e maldosos. Até que sumiram, levando junto a luz do luar, dando-a de presente à noite.
Acordou deitada no chão, já dia, com o coração amargurado e duvidoso.
Levantou-se do chão e seguiu até a janela, grande, rústica. E pé pôs seus bracinhos por nela e neles apoiou o queixo e assim ficou, parada, por um longo período de tempo, admirando a borda da floresta, pensando em tudo o que amava, em tudo o que desejava amar e em todos que o faziam por ela, mas infantilmente, sem malicias, sem vontades abundantes, somente esperando do fundo do seu coraçãozinho. Esperando, esperando.
Voltou-se para o relógio, sobre a lareira na parede posterior e este fazia tic tac tic tac, e a menina retornou com sua curiosidade, mas antes que pudesse voltar a caminhar em direção a este o senhor do tempo deu seu último fôlego... Tic tac tic e não mais tac.
- Até que enfim.