O Evangelho segundo o Diabo

Ao que me lembro, fiquei sentado sobre uma rocha no Gólgota observando o final da execução. Eu estava em frangalhos. Meus pensamentos iam e vinham, misturando-se a lembranças, convicções e dúvidas. Sobre a tempestade que se abatia e sobre minha mente, uma tristeza irremediável tomou conta de mim. Confesso que a chuva fria que caiu após aquela criatura dócil fechar os olhos e dar seu último suspiro, gelou a minha alma. Pude sentir meus ossos e a fragilidade de quem não tem poderes para mudar a situação. Estava tremendamente irritado por ter sido instrumento de um jogo vulgar em que apenas um vence: O Ditador Universal, ao qual não se há comparações em níveis de arrogância e egoísmo.

Decepcionei-me enormemente com meu pai quando percebi como fui ludibriado e como todos nos tornamos vítimas para engrandecimento de seu ego, onde apenas o que contou foi interesse em manter sua influência por séculos e séculos sobre os pobres mortais. Você pode me julgar mal, inóspito, vulgar e perigoso. Colocar todos os piores adjetivos para me descrever, mas nem imaginará que isto, na verdade, é apenas mais um preconceito hediondo onde o algoz nada mais é que uma vítima das circunstâncias para glorificar quem não necessitaria.

Mas nem tudo é só rancor... Antes da mágoa, o sonho arma o leito da dor.

Fui criado em uma manhã tranqüila. O sol ardia tênue e uma brisa calma, porém fria, ressecava as peles mais róseas. Meu nome, foi dado com carinho e referência ao planeta Vênus, estrela da manhã que aparece antes do alvorecer, significa aquele que leva a luz, Lúcifer.

Ainda em minha meninice imaginava que seria um instrumento de iluminação e de ajuda para o meu pai. Ninguém o amava mais que eu. Era meu norte, meu herói. Não imaginava que outros planos me fossem reservados e que meu destino já tivesse sido escrito de modo tão sórdido.

Apenas os filhos renegados sabem o significado da palavra a rejeição. Pior que não ser amado é ser ignorado. Assim, fui enviado para meu exílio. Decidi que se tivesse que provar do fel da melancolia provaria até o último cálice, porém, tivesse que fazer algo, faria bem feito. Meu amor por ele era maior do que qualquer coisa. Ainda assim, imaginei que um dia ele se orgulharia de mim.

Quando descobri que uma criatura havia sido eleita para fazer tudo aquilo que sonhava para mim, mas que eu ao contrário, teria que lutar e ser um instrumento de tentação contra a Luz que seria levada ao mundo, não posso negar que fui tomado por uma terrível inveja. Tivesse que tentar e provar aquela criatura, iria até o final, pois sabia que poderia fazer qualquer coisa bem feita. Sim, meu pai veria o quanto sou determinado.

Infelizmente não percebi que estes momentos de insanidade deveram-se à falta de amor que ele me infligiu e pudesse assim, agir de maneira distinta. Durante séculos fui instrumento e desculpa para justificarem o mal que existe dentro de cada um. A humanidade é muito otimista em pensar que eu possa tornar o homem pior do que realmente é. O mal está dentro do espírito humano, quer eu contribua para isto ou não. Muitas vezes vi pobres criaturas justificarem suas atitudes mais hediondas em coisas que não contribui, muito pelo contrário, a exemplo de meu pai, ofereci-lhes o livre arbitrio. Não quero fugir à culpa que existe dentro de mim, durante algum tempo, servi para que o lado sombrio fosse cultivado e disseminado dentre todos. Mea culpa, mas assim como não existe ninguém totalmente bom, não há ninguém totalmente mal.

Meu irmão querido me mostraria o caminho.

A primeira vez que vi aquela figura meiga, a quem todos chamavam de filho do meu pai, estava cego de ira e de inveja. Esperei amargamente sua vinda. Chegada a hora, usei todas as minhas forças para derrotá-lo. O deserto foi um palco perfeito. Como provara minha mágoa até a última gota, demorei muito tempo para perceber que minhas tentativas não faziam efeito. Havia nele uma força encantadora. A medida que era minado acabei por verificar o quão especial era aquele ser.

Ternura, meiguice, humildade, paz, tranqüilidade e sabedoria. Meu pai tinha razão. Escolhera a dedo seu instrumento. Aquele sacrifício, porém, era muito cruel. Como poderia um pai amoroso colocar um filho bem amado para padecer tamanhas aflições? Em nome do que? De combater o mal? Ora, meu pai criou a tudo e a todos. Se o mal também existe isto também se deve a sua vontade. Quisesse ele extirpá-lo, o faria de uma só vez...

Meu irmão, que a princípio tanto relutei em aceitar, tornou-se meu amigo querido. Não queria que sofresse nenhum mal. Implorei várias vezes para interceder ao meu pai para que não tivesse que passar o que havia sido escrito. Escrituras... Como podem ser mais profanas! Humildemente o vi, com seus olhos resignados, tocar o meu ombro e pedir que eu desistisse, mas a volúpia e a força dentro de mim não me deixaram calar.

Quando Jesus foi entregue a Pilatos, humilhado, um mendigo em trapos de Rei, ensangüentado e violentado, deixei meu orgulho de lado e pedi ao meu pai para que poupasse aquela vida. Se havia alguém que deveria ser abatido, seria eu: Criatura imperfeita, egoísta e egocêntrica que havia corrompido a humanidade com a desculpa da falta de amor paterno.

Dei minha vida, ofereci meu pescoço nu. Meus punhos estavam desarmados. Implorei para que aquele anjo bom prosseguisse espalhando o amor em sua jornada. Intercedi de todo o meu coração. Tinha os olhos marejados e a sinceridade tranqüila de quem luta por uma causa justa.

Meu pai negou. Custei a acreditar.

Não imaginei que minha decepção alcançasse o maior nível quando meu pai, talvez cansado de apenas negar e vir o quanto eu insistia inutilmente, me disse displicente:

- Meu filho querido, o que seria de mim sem você? Como a humanidade iria me glorificar? Não há sentido em minha existência sem você. O homem deve temer alguém para que eu possa protegê-lo. Que seja você, a quem deposito minha maior confiança. O homem sem medo não me aceitará e jamais se sujeitará aos meus desígnios. A eternidade me será longa e tortuosa...

Permaneci surdo as demais palavras e justificativas. Aquilo para mim já era o bastante. Durante minha existência vivi atrás do amor a mim condicionado. Era o amor do meu pai a quem não media esforços. Por outro lado, meu pai fazia o mesmo: Lutava a qualquer custo pelo amor de seus filhos. Percebi finalmente que ele talvez se orgulhasse de mim e talvez até me amasse, mas na verdade, amava muito mais a si próprio.

Não me lembro o caminho que fiz até encontrar novamente meu irmão. Ao achá-lo, sentei-me na referida rocha do calvário. Ouvi as estacadas que o prenderam à cruz. Os centuriões cumpriram sua missão observados por algumas pessoas tristes e desfalecidas. Quando a execução parecia não ter mais volta, não sabia por quem estava mais triste: por mim, meu irmão, meu pai ou pelos homens que herdariam a eterna submissão.

Almeida Ricá
Enviado por Almeida Ricá em 29/06/2009
Reeditado em 18/09/2023
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