A criatura das profundezas

(Parte I de II)

“Ninguém é bastante ousado para provocá-lo; quem o resistiria face a face? Quem pôde afrontá-lo e sair com vida debaixo de toda a extensão do céu? Quem lhe abriu os dois batentes da goela, em que seus dentes fazem reinar o terror? Quando se levanta, tremem as ondas, as vagas do mar se afastam. Se uma espada o toca, ela não resiste; nem a lança, nem a azagaia, nem o dardo. O ferro para ele é palha, o bronze pau podre."

Bíblia Sagrada, 1957: 656

O barulho era de madeira rangendo, de água do mar dançando suave e - muito, muito além dali - de uma triste canção lírica que lembrava um melodioso choro sem fim.

- Lena... Lena... Acorde... – sussurrou a voz amena.

Lena abriu os olhos, sentindo-se bastante tonta. Sua visão, ainda muito embaçada, aos poucos foi revelando o cômodo onde estava. Era um navio em alto mar. Um navio de médio porte, de madeira; não muito velho, mas longe de parecer novo ou seguro.

A voz era de seu namorado Viktor.

Viktor era um rapaz nascido na Rússia, que trabalhava no ramo de navegação. Era muito branco, possuía barba e um cavanhaque por fazer. Os cabelos eram curtos e seus olhos de um cinza intenso. Lena estudava oceanografia, razão pela qual os dois se conheceram e mais tarde se apaixonaram. Era uma moça morena, com descendência latina, bastante bronzeada, de cabelos castanhos ondulados e olhos cor de mel.

Ele sentou na beirada da cama, onde ela se desenrolava dos cobertores, parecendo preocupada.

- Tá enjoada, né? Se quiser, nós podemos parar... – o rapaz tinha um sotaque russo esquisito.

- Não, tá tudo bem... – ela se levantou, arrumando o cabelo despenteado.

- Você tá verde... – disse ele, rindo - Vou dar uma parada. – ele já ia se levantando, quando Lena o abraçou por trás da cintura.

- Eu tô legal... – ela pegou o quepe que ele segurava e pôs em sua cabeça, terminando com um beijo na boca.

O mar estava agitado e o barulho das ondas quebrando nas paredes do navio era como o de monstros marinhos irritados, arranhando a madeira com patas de ferro. Objetos colocados sobre uma mesinha se arrastavam, de um lado para outro, conforme a embarcação balançava, num ritmo nauseante.

- Você ouviu um som esquisito? – ela perguntou, de repente.

- Som?

- É, um som... De choro... Não sei bem...

Viktor pareceu confuso e bastante curioso.

- É o som meu coração batendo por você. - declamou o rapaz.

Os dois riram. Mas Lena logo tornou a ficar séria.

- Tem certeza de que não ouviu nada?

- Vamos lá pra fora, você precisa pegar um ar.

A madrugada caia negra e profunda. O céu estava limpo, sem estrelas, apenas com uma enorme lua. O reflexo brilhante nas águas era de arrepiar.

No convés, Lena estava vomitando, debruçada na poupa. Viktor guiava o barco com uma mão e com a outra bebia uma garrafa de vodca. Parecia aterrorizado e não parava de olhar para o mar. Um vento gelado soprou as velas do navio e um relâmpago, seguido por um trovão, anunciou os primeiros pingos de chuva. Viktor fez sinal e Lena correu para dentro, esperando que ele cuidasse dos preparativos para a tempestade a chegar. Então, passado algum tempo, a chuva começou a cair.

Lena voltou para o pequeno cômodo, iluminado por um lampião, que balançava pendurado numa corrente.

Minutos depois, Viktor entrou encharcado, com a garrafa ainda na mão. Ele veio sorrindo e abraçou Lena.

- Amanhã estaremos lá.

- Tenta ficar sóbrio... – ela sentou na cama, enxugando os cabelos numa toalha. - eu não sei pilotar esse barco, Viktor.

- Só um gole. - ele piscou.

Ela não respondeu e permaneceu penteando os cabelos.

- Ele abriu a pequena janela, deixando a chuva violenta entrar, e jogou a garrafa no mar.

Lena o olhou com desaprovação.

- Tem alguma coisa errada com você?

- Por que está perguntando isso? Tô bem, tô sóbrio.

- Não, não é isso...

- Te prometo... – ele segurou as mãos dela – que o barco não vai afundar.

Nesse momento, um forte trovão estalou furioso, uma grande onda balançou o navio e os objetos sobre a mesa voaram para o chão.

- Estou com medo...

Viktor a abraçou e lhe deu um beijo, seguido por um sorriso pouco convincente, parecia profundamente assustado.

Lena se encolheu em seus braços. A tempestade aumentava violentamente. A chuva caia torrencial. Aquelas ondas jogavam o barco de um lado para o outro e trovões ressoavam a cada segundo pela imensidão do mar.

Enquanto estavam deitados juntos, os dois mal perceberam o momento em que a chuva finalmente parou. Ambos adormeceram abraçados na cama. O frio era intenso. A chama do lampião se extinguia, mergulhando o aposento na sombra total. Apesar de parecer que tudo estava tranqüilo, algo estava muito errado. Ela sabia que Viktor só bebia quando estava nervoso e ele jamais admitiria que estivessem perdidos ou que pudesse ter visto alguma coisa perigosa no mar. Ele era orgulhoso demais.

O clima de mistério não parava por aí, Lena tinha certeza de que aquela música ainda ecoava em seus ouvidos; o enigmático choro desconhecido.

O silêncio pôs-se a reinar. Os rangidos de madeira eram como se estivessem no estômago de um monstro roncando. Um podia ouvir o coração do outro bater num ritmo descomunal.

Lena acordou. Definitivamente não era um sonho, o grunhido era real. E estava mais alto e mais agudo. Assustador, quebrando o silêncio. Sombrio e de arrepiar a espinha.

Parte II