O Quarto dos Malditos

Eu só sei que me colocaram um saco preto no rosto e me empurraram para a caçamba de um carro que, pelo que senti, era bem pequeno. Não vi nada, via apenas as sombras que eu mesmo criava com a interrogação da famingerada pergunta que todos faziam: "Que raios estou eu fazendo aqui?!". O ano era 1968, o dia, isso não me lembro. Era uma terça-feira, com certeza, mas não saberia dizer se era véspera de Natal, ou terça de Carnaval ou Pentecoste. Eu só sei que me colocaram um saco preto no rosto e me levaram para longe. Eu sei disso por que o carro rodou um bom tempo. Quando balançava, sabia que não estava mais em nenhuma rodovia ou estrada asfaltada qualquer. Estava no meio do mato, mas não tinha medo. Sabia que não seria minha hora. Ainda não! O carro dá um pulo e vou parar com cabeça entre as pernas de algum dos homens que me capturaram e isso rendeu algumas piadinhas de mal-gosto. Volto à minha posição normal e pergunto "para onde estamos indo?". Nenhuma resposta. "Alguém tem um cigarro? Se vão me matar, este é o meu último pedido.". Nada, de novo. Acho que se passaram três horas até o carro parar. Ainda estávamos no meio do mato quando parou. Senti os solavancos novamente. Mas não saí imediatamente, quando eu ia me levantar um dos homens me empurrou e ficou com algo apontado para o meu peito, era uma arma, tenho certeza por causa do pequeno círculo de ferro que eu tinha junto ao peito, mas nao saberia dizer que arma era. Ouvi vozes. Primeiro uma voz jovial e muito atarentada, parecia ser alguém jovem que acabara de entrar naquela balbúrdia toda. Depois ouvi uma voz mais madura, mais tenor. Uma voz que transmitia autoridade paterna aos outros. Estava distante, mas dava para distinguir estas vozes. Depois, passos. Pisavam a areia fina e pedras. Pelo que eu ouvi, eram botas. Então puxaram-me de onde estava sentado no veículo e dei de cara no chão, senti a terra quente sob meu corpo inerte e o sol me esquentar. Era um dia quente naquele mundo estranho. As mãos amarradas não permitiam eu recuperar o equilíbrio. Com certeza foi o indivíduo com a arma apontada para o meu peito que fez aquilo, ele deveria pagar. Não gosto de ser empurrado daquele jeito. Levantaram-me. Senti mãos finas, mãos quase infantis segurarem meus braços. Poderia até fugir delas, correr para longe, mas com certeza havia muita gente armada naquele lugar, levar um tiro e morrer à míngua era questão de tempo. Esqueci rapidamente esta ideia antes que me subisse a cabeça. Alguém se postou à minha frente. Esse alguém não cheirava a suor como os outros que me acompanharam dentro do veículo, mas cheirava a colônia importada. Lembrei-me que meu pai usava esta colônia. O alguém andou o meu redor, a voz dura e paterna se fez soar mais próxima agora, mandou que me soltassem, senti as mãos infantis me largarem. Eu fiquei em pé me imginando naquela situação: terno, gravata, sapato e calça sociais, com as mãos atadas para trás e um capus preto. Era surreal. De repente, um tapa na altura de minha nuca fez eu me ajoelhar e soltar um urro de dor. Minha cabeça parecia pegar fogo. A voz paterna me gritou "Imbecil! Vai pagar o que fez à nação!". Gritou para os outros que me levassem ao quarto. O quarto. Senti me puxarem de todos os lados. Meus pés foram içados, por um momento me vi flutuando. Não hesitei, seria rídiculo tentar me livrar daquilo, no mais, eu sabia que não era minha hora. Fui levado para onde o calor do sol não conseguia me alcançar.

Abri os olhos e vi que não estava com o capus, mas estava nu. Havia uma luz muito forte apontada para mim, para meu rosto. Doía-me a vista. Vi várias pessoas ao meu redor, todas armadas com carabinas. Não conseguia distinguir os rostos. Quando tentei olhar para o meu lado direito, levei um tapa. "'Tá pensando que isso é turismo para tu ficar olhando?". Não era voz, se posso dizer assim, paterna que me falava. Era uma voz mais duar e rígida. Quando baixei a cabeça levei outro tapa. "Olha pra luz, desgraçado!", olhei rapidamente e abaixei a cabeça. Pegaram-me pelo queixo e me deram outro tapa, bem mais forte, na altura da têmpora. Fiquei tonto. De repente aquela luz começou a dançar para mim. Minhas forças iam embora. Ouvi uma voz distante dizer "ele vai apagar...". E então eu apaguei. Acordei um bom tempo depois, posso presumir, depois de um sono sem sonhos. Estava sem o capuz, mas eu não enxergava nada. Ainda estava no que parecia ser um quarto sem janelas. Levantei com grande dificuldade tentei andar, mas não conseguia se caso tirasse as mãos da parede áspera. Vi então um portão de ferro com uma réstia de luz. Quando me aproximei, vi que era um pequeno retângulo onde apenas os olhos poderiam lamber a liberdade. Olhei para o corredor iluminado por uma luz amarela bem fraca e vi que havia mais portões como o do meu quarto. Fiquei a analisar aquele cenário quando de repente aparece um rosto moreno e gordo, com barba a fazer diante do meu olhar. O rosto me encara com os olhos vermelhos e, então, sinto uma ardência nos olhos. Um líquido foi borrifado em mim. Quando escorreu até minha boca senti o gosto de pimenta. Gritei por causa do ardor. Então, senti o portão se abrir e alguém me puxar pelas pernas. Tentei segurar o portão mais outro alguém me deu com um bastão nos dedos. Fui arrastado pelo chão de cimento áspero. Minhas costas eram esfoladas; minha nuca e minhas nádegas também. O bastão voltava com mais violência de encontro ao meu peito. Meus cotovelos também eram esfolados. De vez em quando abria os olhos e enxergava a luz amarela e fraca daquele corredor. Ouvia os gritos de dor e os palavrões que meus violentadores diziam. Então paramos. Abri meu olho esquerdo e vi que era uma escada. De repente alguém meu pegou pelos braços - na certa o alguém do bastão - e me içaram. Depois me jogaram escada abaixo. Caía todo embolado em volta de minha coluna. Sentia meus ossos se partirem. Minha cabeça ia diversas vezes ao encontro dos degraus. Enfim, cheguei ao fim da escada. Minhas pernas não se mexiam, na certa estavam quebradas. Notei também que minhas costelas estavam quebradas. Mas não sentia dor alguma. Sentia que era próxima minha hora. Um sangue negro escorria por minha boca. Meus olhos ardiam como se estivessem tomados pelo fogo. Tossia e me engasgava com meu próprio sangue. Pensei na dor, na dor que não sentia. A dor que não transmitia dor alguma. Parecia que havia passado muitos dias e então um homem forte desceu as escadas e me chutou as costelas quebradas. Ria com mais alguém. Mais uma vez fui chutado e a dor surgiu de forma rude. Mas a dor era algo singular: não havia dor maior do que a de saber que, além de mim, muitos outros estariam sendo torturados como eu. Parecia que os dias e as noites desapareçam naquele imenso porão para onde me empurraram. Senti ser arrastado, não conseguia abrir os olhos e, quando os abria, via apenas os vultos de meus carrascos. Pelas vozes, sabia que se tratavam de homens rudes, homens que não poupavam sua força contra os violadores da paz do Estado. Ergueram-me como um boneco e sentaram-me numa cadeira de madeira bem velha e com cheiro de mofo. Entreabri os olhos e vi um imenso latão de gasolina de onde se soltava um cheiro nauseante de urina. Lembrei de meu quarto escuro naquele inferno. Ajeitaram a cadeira para mais próximo do latão e me colocaram aquela luz alva na cara novamente e me perguntaram. Perguntaram-me nomes de pessoas que eu não conhecia, lugares onde nunca fui e me afirmaram coisas que eu nunca disse. A cada resposta negativa, o homens me afogavam naquele latão cheio de urina. Batiam-me com porretes para que eu abrisse a boca e engolisse aquele líquido fétido. Não obtinham resultados. Os dias e as noites não passavam. Vomitei incontáveis vezes até apagar novamente. Não me lembro quanto tempo passei sendo torturado naquele porão. Sei que abri os olhos e vi que estava no familiar escuro do meu quarto. Minha cabeça doía. Meus pulsos estavam sangrando devido as cordas ásperas com as quais me amarravam. E eu perambulava pelo meu quarto.

Era o quarto dos malditos. Os que tinha sido presos da mesma forma que eu eram chamados de malditos. E eu era mais um. Eu passava as mãos nas paredes e, de vez em quando, tateava algum buraco mal feito. Pisava nas fezes que não eram minhas. Tussia alto e o frio do quarto me fazia tremer e sentir dor. Todos os dias me arrastavam até o corredor, eu esfolava meus joelhos e era empurrado da escada. Quando não era o latão de urina, eram os choques. Amarravam fios de baterias nos meus testículos e me davam uma descarga de energia que me trazia dores intermináveis. Meu corpo estava marcado eternamente pelas pontas de cigarros. Porém, um dia foi difícil de encarar para mim. Estava eu sentado na cadeira, com minhas pernas abertas, completamente nu. Os fios descascados presos aos meus testículos. Não havia torturador perto de mim neste dia, todos estavam na outra extremidade do porão, não tão longe de mim. Arrastaram uma garota até a cama de metal do porão, torturaram-lhe muito, mas eles não tinham piedade. Todos os homens do porão estupraram a garota e eu ouvia seus gritos, as mãos literalmente atadas, eu chorei. Eu me tornei maldito por minha impotência. Fechei meus os olhos e quando os abri, os gritos haviam cessado. Os homens voltavam e um saco preto era arrastado por eles. Gritei "desgraçados, filhos da mãe!", em meus plenos pulmões. Alguém me bateu com um porrete na minha nuca. Desmaiei. Voltei ao quarto dos malditos e despertei com tiros que ecoavam por toda a instalação maldita. Arrastei-me até o pequeno retângulo de visão da porta e vi que todas outras porta estavam abertas. Ouvi mais tiros. Homens fardados passaram por minha porta e disseram "este ainda está bem, vamos ter que tirar algo dele...", eu tornei a ouvir aquela voz paterna do dia em que fui preso dizendo "tente tudo que puder, se ele não falar, mate-o!". Abriu-se a porta e vi o jovem guarda entrar. Eu estava sentado perto da parede quando ele se aproximou de mim e puxou pelo braço direito. Não pensei duas vezes, com o braço esquerdo livre peguei a faca que levava no seu cinto e enfiei no seu abdomem. Ele caiu e gritou, mas eu fechei sua boca a tempo e dei outra facada no pescoço. Com muito esforço, levantei e fechei a porta. Esperei um tempo até me recuperar dos meus ferimentos. Então eu retirei as roupas do soldado morto e saí. Andei pelo corredor vazio, não havia ninguém: não vi soldados, não vi prisioneiros. Andei até as escadas e desci até porão. Não havia ninguém. Vi o latão de urina e logo a minha frente uma outra escada. Fui até lá, mas quando subi, vi que estava novamente no corredor. Andei novamente por todo ele até reecontrar novamente a escada. Voltei para o meu quarto. O soldado ainda estava lá sangrando. Desci novamente ao porão e não achei outra porta. Só havia as duas por onde passei. Procurei e não vi saída, não vi ninguém. Então voltei para o meu quarto para ver se conseguia algo com soldado, mas ele não estava mais lá. Perguntei-me "onde?!". Havia apenas meu eco me respondendo. Saí correndo pelo porão, pelo corredor. Abri as outras portas e não vi ninguém. Corria em círculos, chorava desesperado. Depois, cansado, desci ao porão e encontrei todos parados olhando para mim. Vi um homem forte, dono da voz paterna, estava de costas, quando ele se voltou, disse a única coisa que eu me tornava: "Maldito! Maldito! Maldito"... todos gritavam. O homem forte era eu... A voz era minha. Corri até reecontrá-lo e atirar-me no peito. Caí entre os gritos de "Maldito" e depois fechei os olhos.

O médico me analisou e disse que meus ferimentos eram graves. Um olho meu estava vazado, faltava-me três dentes e as marcas de cigarro tomavam conta do meu torso e braços. Segundo ele, fui encontrado numa estrada terra há uns cinquenta quilômetros da cidade. Estava sangrando muito e chorava. Gritava para que me deixassem sair, fui dopado inúmeras vezes. Quando conseguia falar, apenas repetia "Maldito, maldito...", depois caía inconsciente. Segundo ele, eu sobrevivi ao inferno. Talvez não valesse a pena me matar naqueles tempos de chumbo. Resolveram me largar aos urubus. Fiquei internado vários dias, quando recebi alta, fui embora do país. Levei comigo a insígnia de maldito por que sobrevivi ao inferno. A minha vida foi marcada para sempre e meus fantasmas de mim mesmo, ainda me rondam com a maldição. Por este lado, minha alma ainda está no inferno das lembranças, assim, não deixo de ser um maldito, mas não deixo de tentar escapar disso.

Valdemar Neto
Enviado por Valdemar Neto em 12/07/2009
Reeditado em 15/07/2009
Código do texto: T1695813
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