A criatura das profundezas - II

(Parte II de II)

Conforme a canção se atenuava, o último resquício das chamas no lampião se transformava em fumaça. Lena fechou os olhos e deixou ser embalada pelo oceano. Estava num lugar muito escuro, muito gelado. Não podia respirar. Apenas ouvia o lamento. Sentia a profundidade do som em sua alma, como o cantar do violino que se encerra.

Flutuava serena mar adentro e seus olhos deixavam de existir.

Enquanto isso a vida se acalmava embaixo do céu enegrecido. Perdidos no além do universo.

- Lena... Lena... Acorde... – sussurrou a conhecida voz pela segunda vez.

Era o mesmo rapaz de outrora, Viktor. Suas mãos estavam sangrando. A escassa claridade do lampião revelou seu rosto pálido marcado por finos cortes, onde o sangue deslizava como se patinasse sobre o gelo.

- Viktor?

- Tem que levantar, temos que ir agora! – o rapaz catou alguns objetos sobre a mesa e os jogou numa mochila que trazia nas mãos. Sua expressão era assombrosa, perturbadora. O desespero em seus olhos esbugalhados contaminava o corpo de Lena. Cada pêlo da nuca dela se arrepiou. E ela pulou da cama de um salto só.

- O que aconteceu? Meu Deus, o que é isso no seu ros...

PUM!

O navio foi atingido com tanta força que derrubou os dois no chão de madeira gelado. A escuridão reinou. Um breu monstruoso invadiu o aposento, os deixando entregues ao balanço frenético da embarcação. Era impossível enxergar os objetos que se amontoavam na escuridão.

- Viktor! – Lena engatinhou, tateando às cegas, em busca da mão de seu namorado.

A porta rangeu e a fraca luminosidade da lua se exibiu, vinda lá de fora. Tropeçando na quinquilharias metálicas que se quebravam, Lena correu até o convés do navio, escorregando pelo chão molhado pela água salgada do mar.

- Viktor!

Apenas o silêncio lhe respondia.

Ela caminhou até a poupa e examinou todo o convés. Nenhum sinal dele. Já estava desesperada naquele momento, corria de um lado para outro sem conseguir conter as lágrimas quentes que lhe desciam pela face. Em algum lugar ele devia estar.

Respirou fundo e segurou na balaustrada, fechou os olhos, chorando alto. Os cabelos molhados grudando em seu rosto. E o mar estava calmo, indiferente a sua dor.

Foi quando pode ouvir novamente o som. E nunca foi tão apavorante abrir os olhos.

Lá na frente, muito à frente do navio, estava um animal diferente. Mergulhado nas profundezas, com um longo e grosso pescoço reptiliano, que deslizava na superfície enevoada, provocando pequenos sulcos que brilhavam na superfície. Parecia estar se comunicando com alguma outra criatura mastodôntica. Sim, mastodôntica! Porque em vários anos de oceanografia, aquilo superava todas as espécies conhecidas por ela. Era sobre-humano. Surreal. Sobrenatural. Sua altura imensurável, comparando-se facilmente a um edifício. A cabeça não podia ser vista no escuro. Mas suas nadadeiras pesadas, de vez em quando emergiam na escuridão. Ele cruzava a frente do navio, numa distância que talvez fosse segura.

Levando as mãos a boca, Lena se ajoelhou no convés, com os olhos arregalados, prendendo a respiração. Sua visão travou no monstro e ela já havia se esquecido de tudo, até mesmo de Viktor. O mais silenciosamente possível, ela caminhou de costas lentamente, tentando não fazer barulho e voltar para a embarcação. Mas foi nesse exato momento que algo imprevisível e trágico aconteceu.

O holofote de luz usado para guiar o navio foi aceso abruptamente, e um estalo seguiu-se ao clarão. A luz mirou certeira no corpo do monstro no horizonte. Subindo por seu pescoço e em direção ao céu, onde a cabeça deveria estar. O desespero foi inevitável.

- Apaga isso! VIKTOR, APAGA ISSO! – Lena correu até a escada para detê-lo.

Ele não parecia dar ouvidos a ela, estava embriagado e com um facão na mão. Lena hesitou em se aproximar. Então, tentou ficar calma e fazê-lo parar.

- Viktor, pelo amor de Deus, apaga essa luz... – sussurrou ela, chorando mais do que podia e rezando pra que o monstro não os visse no mar.

- Não.

- Viktor...

Mas antes que ela pudesse terminar, ouviu-se um berro ensurdecedor que envolveu a noite. Um brado agudo entorpecente, de arrancar os tímpanos do lugar. E como uma flecha, a criatura disparou em sua direção. O navio era sua mira e o casal não tinha mais como escapar

- Vem, seu filho da puta! Eu vou te matar! – berrou Viktor, insano. Lena nunca o ouvira gritar assim. – Seu filho da puta! Vou destruir você! – ele segurou firme o facão.

A cena no mínimo era risível, porque o facão era dez vezes menor que o menor dente do Leviatã. Lena desesperada, não sabia se fugia ou se tentava tirar Viktor dali. Mas ela tinha pouco tempo para pensar, tinha pouco tempo para agir. O barulho do mar sendo cortado progredia cada vez mais. Quando ela se segurou no bote salva-vidas viu que o monstro estava próximo. Viktor não saía do lugar. Ele tremia igual vara verde. Era um tremendo imbecil!

- Viktor! – berrou ela, tentando a todo custo desamarrar as correntes.

Mas era tarde demais. Lá estava ele, encostado no navio, sua pele aparentemente lisa, era grossa como aço. Com um baque descomunal seu pescoço dividiu o grande navio em dois. Ouviu-se o barulho da destruição, enquanto madeiras explodiam para todos os lados. Viktor gritou tão alto que ela pode jurar ter visto suas vísceras dilaceradas no chão. A jovem sentiu a água gelada lhe invadir os pulmões. Os destroços caindo por cima dela, enquanto tentava inutilmente se proteger com as mãos.

- Viktor!

O navio desmoronou mar abaixo. Algumas madeiras apodrecidas boiaram na superfície. Lena se debruçou sobre o bote salva-vidas e deitou dentro do pequeno barco, cheio de água. Tudo estava úmido e frio. O monstro tinha desaparecido. Só existiam destroços e o mar silencioso. Viktor havia sumido. Seu corpo agora afundava no oceano e talvez ele fosse o jantar. Lena tentou fazer o máximo de silêncio que pode. Deitada de costas, ela se encolheu olhando para cima, admirando a imensidão do céu. A água ia entrando por seus ouvidos e seus cabelos boiavam. Não tinha mais forças nem para respirar. Então, ela desmaiou no bote salva-vidas, enquanto vagava pelo oceano.

Pingos de chuva sobre sua face lhe acordaram, e ao abrir os olhos o medo foi a sua segunda companhia. Lena se levantou, olhando para todos os lado, mas nem sinal de qualquer coisa que não fosse água. E antes que ela pudesse chorar alguém chorou primeiro. A conhecida canção vinha do fundo do mar. Um relâmpago e um clarão iluminaram o céu, assim ela pode enxergar o que era. Passando por baixo do barco, a sombra de um enorme animal, maior que uma baleia, mais rápido que um peixe normal e mais aterrorizante que qualquer outro ser aquático. Ele a ignorou e deslizou mar adentro, seguindo para as profundezas enegrecidas do oceano de onde, a cada 150 anos, ele retorna para cantar.

“O Leviatã é uma criatura imaginária, geralmente de grandes proporções, bastante comum no imaginário dos navegantes europeus da Idade Moderna. Há referências, contudo, ao longo de toda a história, sendo um caso recente o do Monstro de Lago Ness. O Livro de Jó, capítulos 40 e 41, aponta a imagem mais impressionante do Leviatã, descrevendo-o como o maior (ou o mais poderoso) dos monstros aquáticos”.

FIM