Visão de criança

Na mata de Seu Severino nos deparamos uma vez dentro de uma gruta localizada entre duas pedras, pronto mais uma descoberta inédita dos exploradores e desbravadores dos sertões.

Era assim que nos sentíamos a cada novidade, acredito que ela já estava lá há muito tempo, mas ninguém havia nos contado nem dito como nela chegar, portanto nos cabia o mérito da descoberta. Montamos um posto avançado, onde manteríamos água, farinha, sal e um pedaço de rapadura como provisões para futuras expedições.

Um dia estávamos nós todos de manhã cedo na cozinha do dono da propriedade esperando que um jerimum saísse do fogo e o leite fresco da fervura quando contamos a nossa grande descoberta, mas um futuro cunhado disse, ôchente! É o ninho dos urubus.

Tentamos não acreditar que nosso achado já fora achado.

Nisso tiraram o jerimum do fogo e quando ele fumegante passou para cima da mesa sentimos que ele não estava muito disposto, estava pálido sem aquela cor alegre, tão característica de sua família, aguado, sem gosto, verde para ser mais preciso.

Não vamos estragar o leite! Disse o dono do sítio, nega vamos fazer cuscuz.

Enquanto o casal ralava milho zarolho para alimentar seis adultos e cinco crianças, coisa que o jerimum deveria ter feito, ficamos conversando sobre banalidades, como o roçado, o inverno e a colheita tão promissora naquele ano.

O cuscuz sorridente chegou lindo, cheiroso, alegre e em festa foi recebido com um banho quente de leite.

Botem o jerimum para os porcos!

Alguém gritou!

Qual jerimum? Disse o meu futuro cunhado.

Todos olharam para a panela vazia.

Cadê o jerimum?

Não é que durante o papo o danado de mansinho e de pedaço em pedaço se escondeu na barriga dele, sobrando apenas uma pequena fatia que posta há um palmo do focinho de budião (um cachorro que um dia sumiu indo não sei para onde) tranqüilamente foi ignorada debaixo da mesa, ficou chorando toda oferecida, mais ignorada.

Um jerimum inteiro, com lagrimas e tudo não impediu que o cuscuz com leite ocupasse seu lugar no bucho daquele desmancha prazeres, com aquela história do ninho de urubu, o nojento ainda se ofereceu para nos mostrar o dito, que falta de respeito.

Bem a curiosidade empurra todo mundo para frente, era mais um desafio encontrarmos aquele ninho de preferência em outra gruta, nossa próxima expedição seria nesse sentido, aliais a primeira com um sentido preestabelecido.

Que alegria, lá no fundo em um plano mais elevado sob uma saliência da rocha estavam dois flocos de algodão tão brancos que só podiam ser filhos de uma ave muito limpa.

Ele havia se enganado a gruta dele não era a nossa. Urubu é preto e ali estavam dois filhotes de Águia Americana, branquinhas, branquinhas.

Passamos o resto do dia a procura da outra gruta, já estava quase escuro quando de volta a primeira, encontramos a família toda reunida, cabisbaixos chegamos em casa com a noite no mundo e na alma.

Na hora da janta mamãe notou que tinha algo errado, a alegria não era a costumeira.

O que ouve?

Um de nós contou nosso infortúnio.

Ela riu e disse: É meus filhos, os urubus, assim como os homens nascem brancos.

Eu fiquei matutando um pouco e perguntei, quer dizer que o Amaro nasceu branco?

"Amaro era uma cria do meu avô. Menino pobre sem família, adotado quase um filho, fazia todo trabalho pesado. Se não fosse a cor... Mas um dia ele arrumou a maleta e foi embora e eu acho que foi para o mesmo lugar de Budião, pois nenhum dos dois voltou".

Não meu filho, não é da pele que estou falando, e calou-se.

Mais enrolado ainda eu fiquei. Mas vou ver como é que um urubu de branco passa a preto, há isto eu quero ver.

Por um bom período ficamos visitando os pintos brancos, eram tão freqüentes nossas visitas que eles já nos davam pequenas bicadas e brincando pulavam sobre nossas pernas, Só não aceitaram de imediato os preás que agente levava no intuito de alimentá-los.

Uma vez deixamos os bichos lá para ver se eles comiam depois de podre. Ficamos muito felizes quando dois dias depois encontramos somente parte do couro e os ossos. Agora agente só vai trazer podre, no nosso entendimento desse jeito eles comeriam.

No mesmo dia armamos os quixós, (armadilhas) a isca "Batata" colhemos no roçado mais perto, em trinta e duas armadilhas caíram dezoito roedores, que não foram submetidos a nenhum tratamento foram somente cortados em pedaços e deixados sobre uma pedra para apodrecerem, no outro dia não esperamos nem o cuscuz com leite de cabra, saímos logo sedo com um saco de papel para nele levar a iguaria para os pintos.

Que tristeza ao chegarmos onde estávamos a curtir a refeição para os flocos de neve, lá estava budião deitado embaixo de um camará olhando para nós de um modo tão triste que agente teve pena dos sentimentos dele.

Tem nada não meu nego, eu disse alisando sua cabeça, amanhã agente pega esse ladrão, vamos armar os quixós de novo.

Normalmente ele andava a nossa frente, mas dessa vez não sei por que ficou para trás era como se estivesse mais cansado mais gordo sei lá, a barriga dele estava redonda, será que o angu lhe ofendeu?

Dessa vez levamos os bichos partidos para casa e os escondemos da Mamãe porque ela não queria nem saber de ratos dentro de casa, no outro dia levamos o almoço para os filhotes de urubu, derramamos o conteúdo do saco na frente deles esperando que eles comessem e nada, peguei a cabeça de um deles e esfreguei na carne podre e nada, não tem jeito vamos nos esconder para ver se eles comem.

Na parte escura da gruta fizemos com pedras e ramos um esconderijo e nele nos enfiamos dispostos a esperar para ver se eles comeriam na nossa ausência.

Um bom tempo depois ouvimos o barulho de asas, eram os pais que chegavam e sem perda de tempo foram logo regurgitando uma bela imundície que de imediato foi engolida por eles, os pais vendo os preás, olharam um para o outro deram uma levantada de ombro nas asas e comeram o que por direito era dos filhos.

Continuamos as visitas e o tempo foi passando, na volta de uma caçada de rolinha por lá passando entramos para vê-los e descansar um pouco.

Para ganhar tempo um dos manos achou de despenar as rolinhas ali mesmo, a primeira despenada que ele colocou sobre uma pedra foi bicada por um deles e engolida sem mastigar. Conseguimos, mas a vitória naquela empreitada foi escurecida de novo por mais um pequeno detalhe.

Eles já estavam quase pretos, e não notamos a mudança.

Mas as visitas continuaram e eles vinham nos receber na entrada da gruta, com pulinhos tentavam alcançar nossos bornais onde sempre tinha um pedaço de carne oriunda das caçadas, que podia ser rolinha, calango, preá, ou qualquer animal que encontrássemos morto em nosso caminho. Com muita festa éramos recebidos.

Mais uma vez o destino nos pregou uma peça, um dia estranhamos não sermos recebidos por eles e entramos correndo na gruta, corremos para lá e para cá, procuramos em todos os cantos e nada.

Aquele capítulo estava encerrado, mas um par de urubus circulando no céu sempre nos dava a ilusão que eram eles olhando para nossos bornais. Algumas vezes levantava nas mãos um pedaço de carne crendo que eles viriam pega-lo. Até que me lembrei do Negro e de Budião. Devem eles, estarem juntos.

Consolamos-nos e voltamos para o nosso céu de nuvens brancas, onde tinham carneiros, búfalos, girafa, cidades e castelos encantados.