Passagem da estrela

Naquela noite o céu puramente desavergonhado escancarava-se sobre o chão, iluminando o mundo com suas muitas luzes mortas que teimosamente insistiam em brilhar. A lua crescente se espremia pelo negro profundo, pendurando-se em uma quina da Via Láctea. Foi então que, rasgando o marasmo, uma estrela de ouro e fogo partiu o lençol da noite ao meio, dançando ferozmente em direção ao solo. Sua rapidez era estranhamente compassada por movimentos fluidos e doces, como se perdessem horas em sua queda do céu, presa nesse misto paradoxal de concisão e delongas. Mas de uma forma ou de outra, ela cruzou os céus e deitou-se além das montanhas. Alguns a viram. Muitos sequer a notaram. Ele apaixonou-se.

De dentro da casinha de madeira no sopé da montanha dois olhos perdidos atravessavam a janela buscando no céu alguma resposta. O jovem nunca teve nada que o cativasse em sua pobre vida, o que facilitou a combustão em seu peito ao simples vislumbre do flamejante rastro de fogo riscado nas nuvens. Decidiu, por fim, que seguiria até que aquela estrela fosse sua, mesmo que tivesse que cobrir cada ruga daquelas montanhas. Colocou uma túnica acizentada e rota, jogou uma mochila enrugada com seus poucos pertences nas costas e partiu montanha acima.

As estrelas gatunas e a lua magricela assistiam de camarote a provação do jovem em sua escalada noturna, e se deliciavam com gargalhadas incandescentes a tudo isso. Mas ao garoto nada disso importava, a vida já rira muitas vezes de seus caminhos, e o cheiro vermelho da estrela que guardara no fundo de seus olhos o lembrava de que tudo valia a pena. Seguiu margeando a costa norte da montanha por uma antiga trilha de cabras, onde agora ninguém mais seguia. Abandonada pela humanidade, ao caminho agora apenas cabia os ecos azuis de um mundo que já foi. Vozes sussurravam lambendo o ouvido do garoto na vontade de que fraquejace, mas as palavras que ele havia lido na estrela já haviam marcado sua pele, e outro comando subjulga-lo tão facilmente.

Alguns quilômetros a frente, um deslizamento havia bloqueado a pequena trilha, forçando que agora o jovem contornasse por dentro da mata fechada. Os galhos secos das árvores furtivas seguravam sua túnica pedindo sua companhia em uma carência um tanto assustadora. A ele apenas sobrou seguir cegamente protegendo os olhos com o braço e guiado por seu bom senso e uma boa dose de sorte. Poucos minutos depois percebeu que estava perdido ao passar uma terceira vez por um grande figueiro retorcido. Estranhou por se perder naquela região, sendo que vivera toda sua vida ali. Cansado, resolveu sentar-se junto às raízes da árvore, mas ao aproximar-se viu ao longe uma fraca e rara luz amarelada. Seguindo-a por meio da mata, caminhando sorrateiro até que pode ver que a luz vinha de duas lâmpadas a gás presas ao lado de uma grande carroça cigana no centro de uma clareira. De um vermelho polido acompanhado de um verde lodoso, erguia-se sobre grandes rodas de madeira e por toda a sua estrutura desprendia-se as mais variadas parafernálias, desde pés de coelhos e gaiolas vazias à adagas prateadas e pulseiras de bronze. Em sua lateral podia ler-se em um bela caligrafia corrida "Madame Anake".

-Entre jovem. Melhor se apressar antes que o frio da noite apague a chama de seu peito.-disse uma voz leve e doce, mas carregada de uma incompreensível autoridade, vinda de dentro da carroça.

A noite realmente havia esfriado muito, e a fina túnica de pouco servia agora que o frio decidira correr pela montanha. Perdido e com poucas opções, o garoto decidiu entrar na carroça, girando uma maciça maçaneta de uma porta redonda na parte de trás da estrutura. Cuidadosamente, ao colocar seu rosto dentro do ambiente, uma baforada quente subiu-lhe pelas bochechas até sua nuca, espantando o frio para o lado de fora. O interior era de um laranja escuro, cheio de muitos panos, almofadas e objetos ainda mais estranhos do que os presentes do lado de fora. No centro de tudo isso, atrás de uma pequena mesinha redonda, estava uma bela cigana enfeitadas com pulseiras e colares de ouro e um vestido vermelho e branco. E se manteve lá, estática, com seus olhos fechados.

-Com licença- disse o garoto- a senhora é a Madame Anake?

-Sim jovem, esse é um de meus nomes.-respondeu-lhe a cigana com sua voz doce e sutilmente austera.

-Sinto por te incomodar já nessas horas, mas me perdi por essas matas quando fui desviar de um deslizamento na antiga trilha de cabras. A senhora poderia me dizer que direção seguir?

-Bem, isso vai depender de onde pretende chegar.

-Tenho que voltar para a trilha. Preciso chegar à costa norte da montanha.

-Precisa?

-Sim, preciso.

-E o que faz você ter tanta convicão disso?-disse-lhe Madame Anake com um leve sorriso de interesse e os olhos ainda escondidos.

-Meu peito agora bate na costa norte. Roubaram meu coração, e agora ele dorme naquele berço- não sabia ao certo porque estava dizendo abertamente sobre sua jornada a uma estranha, mas algo muito velho nela sugava qualquer verdade escondida no garoto.

-A estrela cadente desta noite, não é? Sou cega garoto,mas vejo muito mais do que imagina. Nunca havia ouvido falar em um jovem se apaixonando por um pedaço de pedra, mas eu e o amor já não nos entendemos bem a um bom tempo para ser sincera. Não gosto de quem desafia caminhos mais incertos que o meu. Mas apesar de tudo, sou solidária com sua causa. Vou lhe fazer três propostas garoto, ao negar a última, te direi o caminho de volta para a trilha.

Espantado e sem nenhuma outra alternativa, só restou ao jovem aceitar a proposta.

-Na verdade também gostei dessa estrela que agora mora nessa montanha, então te proponho uma troca.-disse enquanto colocava sobre a mesa uma caixa de bronze polido cheia de arabescos por sua lateral. Ao abrir a caixa, uma grande safira iluminou o interior da carroça com um laranja rosado.- Te darei uma pedra em troca da que você busca.

A safira era a pedra mais linda que o jovem já havia visto, mas ainda era pouco perto do que lembrava da estrela cadente.

-Vou ter que negar essa primeira proposta Madame Anake, já que o que busco é ainda mais precioso.

Fechando a caixa e guardando-a ao seu lado, a cigana colocou outra sobre a mesa, dessa vez uma prateada com pérolas cintilando por toda a sua estrutura. Em seu interior havia uma bela alexandrita, que mantinha seu brilho vacilante entre o verde azulado e o púrpura avermelhado. Esta era com certeza ainda mais bela que a anterior, mas ao garoto apenas interessava a estrela.

-Sinto muito, mas novamente nego a oferta.

-Se assim deseja.-disse Madame Anake enquanto colocava ao seu lado a caixa prateada e se preparava para pegar outro objeto.- Mas agora te faço minha última oferta. Te peço que dessa vez pense três vezes mais do que nas anteriores.

Colocou sobre a mesa uma caixa de ouro cravada com esmeraldas intensas contornando a silhueta de leões. Dentro dela havia uma granada lapidada pouco menor que uma maçã, e seu briho era lindo e devastador. O garoto teria cedido facilmente a ela se não fosse a imagem da estrela tatuada em sua mente.

-Ela é maravilhosa, com certeza, mas só descançarei quando finalmente tiver a estrela.-disse por fim.

-Vejo que não consegui que mudasse sua idéia. Bem, farei como o prometido. Para voltar a trilha siga em frente até se perder novamente. Só assim vai achar seu caminho.

Ele não ficou satisfeito com a resposta, mas preferiu sair da carroça antes que as coisas ficassem ainda mais estranhas. Seguiu tentando chegar novamente na figueira que havia encontrado por três vezes, mas assim como a cigana havia dito, acabou se perdendo no caminho. Com o tempo foi observando que a vegetação estava ficando gradualmente mais rala, até que finalmente estava por completo fora da mata, e pode ver ao longe a antiga trilha.

Feliz, correu para poder seguir seu caminho até a encosta norte. Caminhou por mais alguns quilômetros até que viu a distância uma grande cratera. Partiu loucamente em sua direção, até que ficou na beira do grande buraco, com a grama queimada se fragmentando a seus pés. Lá estava ela, em seu centro, na porção mais profunda. A estrela não era bem como o jovem lembrava. Cinzenta e fria, era apenas o cadáver de uma lembrança bonita. Por noite a fora o jovem chorou a beira do grande buraco.

Pouco antes do sol nascer, desfazendo-se da imagem da estrela pela qual se apaixonara, tomou-a em suas mão e correu em busca de Madame Anake para troca-la por uma de suas pedras preciosas.Perto do ponto do deslizamento, aventurou-se por dentro da mata, tentando perder-se para tentar conseguir acha-la. Por lá vagou um dia, dois, três, e até a noção do tempo se contradizer. E por esses caminhos incertos segue, carregando contra o peito um pedaço de pedra áspero e frio e travado na garganta uma proposta para uma cigana.

E assim, nunca mais ninguém habitou uma certa casinha de madeira no sopé da montanha.