Roberta

Na tela branca do editor de texto, surgem um letra, uma palavra, uma cor. Depois, um rosto, cabelos, nariz, corpo, roupas e até uma personalidade. Em alguns parágrafos, formava-se uma mulher.

O escritor bocejou, salvou o trabalho e foi dormir. Com um sorriso no rosto sonhou com dragões, naves interplanetárias e vulcões. Bem longe, ele viu a mulher que escrevera mais cedo.

No outro dia, café e alguns telefonemas para o editor do jornal, mais café e um pseudo-almoço. Abriu o documento e voltou a digitar. A mulher não era mais “a mulher”, mas Roberta. Trabalhava em uma escola na periferia, pagava o aluguel quase sempre em dia e visitava a mãe todas as sextas. Adorava rosas e pop rock, amava chocolate, mas resistia como podia à tentação, e detestava mentira e gente desonesta. Não vivia em êxtase , mas não era triste. Tinha esperança.

O escritor, Carlos Almeida, salva novamente o arquivo e vai ao mercado. Miojo, cerveja, café, pizza e algumas maçãs. Tenta uma cantada com a atendente do caixa, mas ela mostra um dedo e uma aliança.

Por insistência de Artur, um amigo, saída de casa de vez em quando. Por ordens da irmã, comia uma ou outra fruta. Essa imaginava Carlos um escritor viciado em café, que só almoçava e jantava miojo. O que não era mentira.

De volta ao computador. De volta a Roberta.

Nos sonhos dele, os dois saíam juntos. Visitavam a Serra Gaúcha e tiravam fotos aos pés do Cristo no Rio. Eram bem íntimos e próximos. Um dia, talvez, quem sabe...

A história crescia. Mais personagens, cenários e dramas. O mundo de Roberta aumentava. Até apareceu em um conto de domingo, no jornal. Pensava e sonhava cada vez mais. Se tornava até um pouco independente.

Lembrando que vivia em sociedade, Carlos foi a uma balada com alguns amigos. Dançou, bebeu e bebeu. Mais tarde, desmaiou em um colchão, no AP de um colega.

Certamente devido a bebida, a Roberta no sonho estava mais solta, mais sexy. Ele se viu em um quarto em algum lugar entre Campo Grande e Tóquio. Ela rasgava sua camisa sem nenhum pudor, roçava sua coxa na dele e o beijava. Ele a despiu devagar, aproveitando cada segundo de toque na pele dela. Nus, se beijaram, acariciaram, arranharam e gozaram.

Acordou, escreveu a seguinte nota para o amigo dono do apartamento: “Quando leres isso, aqui será lá e lá será aqui” e foi correndo para casa.

Digitou mais um pouco da história, que tomava um rumo cada vez mais estranho à sua vontade. Ela se apaixonava por um personagem secundário até então. Os dois juravam amor eterno e venciam as dificuldades mais loucas que o sádico escritor minuciosamente criava.

No sonho, tudo permanecia normal. Ela ao lado dele, sem intrusas e indesejadas palavras. Eram apenas os dois, sem cidade, luz, trilha sonora, vírgulas, parágrafos e pontos. O texto ideal.

Segundo Carlos, o namorado de Roberta a traiu com uma prima, ex-namorada, dele. O sujeito ainda tentou argumentar. Ligou para ela, dizendo que era um engano, uma mentira, mas Roberta acabou com o romance de uma vez por todas. O escritor até sorriu quando digitou tudo isso.

Mas a história ficava cada vez mais dramática. Roberta ficou melancólica com o fim do namoro. As amigas estavam preocupadas. Temiam uma depressão, que ficava mais óbvia a cada linha. Nem uma viagem a Lisboa, que Carlos escreveu com esmero, foi capaz de animá-la.

- Carlos, bora tomar umas e outras hoje?

- Sem chance, cara. To preocupado com a Roberta.

- Quem?

- Roberta, minha personagem. Tá com depressão.

- Cara, você sabe que quem está escrevendo esse texto é você, não sabe?

Um analgésico, outro e mais um. Sem muita noção da realidade, Roberta vai até a janela e conta os andares do prédio: 1,2.3,4,5,6,7,8,9,10,11,12,13,14,15. Carlos apaga o parágrafo, imaginando o que vem em seguida, mas o reescreve impotente.

Ela murmura uma frase clichê entre os suicidas e se joga. O livro acaba com uma série de frases desconexas, que descrevem o vazio no apartamento dela.

Ele salva o projeto e envia para a editora por email. Com lágrimas nos olhos, desliga o computador e vai dormir. Sonha um sonho escuro e solitário. Ela não está lá.