Crepúsculos Além do Bem e do Mal

Andar, vagar, sumir entre os dedos das ruas esquecidas da cidade grande. Andar por onde o sol caminha pelo dia todo. A cidade é quente. Seus asfaltos - veias de automóveis que exalam fumaças - refletem o calor do meio-dia daquele meio de semana. Dia? Quem sabe... Mês? Ano? Século? Por onde o tempo escorreu... E a pergunta de se saber que se é. Quem és? Diante do espelho retrovisor dos carros ninguém se enxergaria. Era meio-dia, meio termo de um dia sem finalidade para ele. Em meio ao caos de ruas vazias para o diabo passar à vontade. Ele esbarra nos mendigos e diz que já viu o diabo. Ele parece um anjo de pessoa que leva crianças no saco de couro de cavalo que tem a tiracolo. Quem era o diabo naquela cidade quente? Seria a vertigem do sol lá em cima a vigiar os passantes por baixo de sua barbas de luz.

Ele anda errante por aquelas ruas de tantas lágrimas choradas e noites infinitas. Seus olhos se esvaziam de retina impura e fuligem das fábricas mortíferas. O coração é uma bomba relógio. Ele anda por todos os lados até o coração começar a acelerar, quando acontece, ele retorna, a passos lentos, para sua morada que é em lugar algum. Lê Jorge Luis Borges e o come em pleno Aleph. Conjura-se em seus poemas e imagina ver Niezstche pelas ruas a mirar seu rosto suado. Ele levanta o dedo pro Crepúsculo sem saber que ele está lá. Onde vagueia a alma assim narrada? Ele anda por meio das quadras vazias e sujas. Por onde anda a alma assim narrada? Ele anda por qualquer calçada cheia de crianças em farda escolar. Seu terno preto surrado, suas calças pretas surradas, seu sapato preto furado, sua camisa branca molhada de suor, sua gravada afrouxada de cor vinho. Seus olhos castanhos que escurecem a medida que a luz os alcança. Suas olheiras e seu coração disparado. Sua dor em meio as espátulas, em meio sua costelas, em meio suas vinganças e seus ódios. E por aí vagueia a pobre alma assim narrada...

Ele anda de joelhos pelas escadas da Catedral vendo o Crepúsculo além do bem e do mal. Bem e mal se confudem em seu pensamento quando o relógio da Catedral feito em Paris em 1872 badala doze vezes. Onde ele estaria quando badalou em 1872? Ele não é eterno como o bem e o mal, nem como o crepúsculo. Ele morre em cada esquina cheia de almas e amortalhados que lhe jogam os pecados para que ele o faça com outro alguém. Almas de gente que levantou bem cedo e morreu bem tarde. A sinfonia de águas atrás da Catedral. O rio é seu espelho mais fiel, pois o rio fede, o rio suja e o rio mata. Pobre alma que cair naquele rio. Pobre indigente que, como ele, desconhece a arte de ver rios como ele vê. Não veria a sujeira, não veria ele próprio sujo. E na outra margem, haveria ali Niezstche a lhe observar, seus olhos escondidos por lentes negras e de pose imparcial. Julgando o próprio Zaratustra, mas ele era o Zaratustra. Ele era deus e diabo. Ele era o sol do meio-dia e o rio que mata as almas e os amortalhados. Revolta-se com Niezstche e sai sem dizer adeus. Vagueia pelas ruas apertadas do centro velho da cidade nova. Vagueia sem destino, sem dom de caminhar, sente-se rejuvenescer, as mãos diminuem, as calças caem, o terno fica grande. A voz perde a maturidade. A marcha fica mais curta e, logo quando dobra a esquina, não anda: engatinha. Chora bem alto ao ver que era simples e frágil. Chora, e via que o seres ao seu redor, as pobres almas, também choravam. Aquela criança entre roupas de tamanho adulto refletia suas verdadeiras faces. O menino chorava tanto que os vitrais da Catedral quebraram e acordaram Jesus. Ele andou pelos vidros e pegou o pobre ser no colo. O menino o negou todas as vezes, mas aceitou. Jesus o pegou e levantou como se fosse um troféu. Levou-o para o rio seguido pela multidão. Todas as castas que viam o Salvador. Ele então jogou a criança para o rio com força e da água subiram as quimeras. O menino virou homem de novo e estava nu. E Jesus, quer era anti-cristo, saudou a todos com voz rufante. O homem saiu pela margem rasa do rio e Niezstche, com sua bengala e óculos de lentes escuras, o recebe com uma toalha macia de cor vinho.

Andar por aquela margem foi exuberante. O homem viu e ouviu o que velho de bigode disse sobre quem estar por baixo de tudo isso. Ele não revelava seus olhos de maneira alguma e, com a chegada do Crepúsculo, ele diminuia a marcha. Ao pararem em certo trecho da margem, o homem viu suas roupas secas e as vestiu. O filósofo olhou e por suas retinas falou... o homem riu, porém Niesztche se manteve calado e isso fez o homem se calar também. O filósofo, então, mergulhou no rio, tirou seus óculos e mostrou seus olhos ao homem, ele sorriu como nunca havia sorrido. Abriu os braços como se quisesse se mostrar, mostrar-se em homem que havia sido. O homem vê o rio engolindo o filósofo, até o sempre. Crepúsculos surgem naquele céu. Sobre todos, todos olham o céu e veem. Veem o que há além do e do mal. Veem a noite como uma mulher nua e sem caminhos. Veem o que pode estar vivo e o que pode estar morto. Veem-se, e não choram. O céu refletia milhares de olhos famintos e olhos escondidos pela vertigem do sol do dia. O homem via todos olharem para o céu e sai para o mundo.

Faz tempo que o homem vagueia pela estrada de terra. O terno agora é lixo e ele anda com roupas frescas para sol abrasador. Anda pela caatinga. Anda pelos caminhos de sempre...

Andar, vagar e sumir pelos dedos do mundo.

Valdemar Neto
Enviado por Valdemar Neto em 04/10/2009
Código do texto: T1847410
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