O sino e a velha

Podia ser só mera impressão, mas as nuvens pareciam mais baixas naquele dia.

O ruído do meu pé contra a escada, porém, desafinava na mesma conhecida oitava e o cheiro de doce pela casa era igual ao de todas as manhãs.

Sentada em uma cadeira de balanço, estava vovó, que beijei ternamente, em uma parte ainda sem rugas da sua pele. Um pedaço minúsculo, para ser mais exata. Da sua nuca, uma fragância bem suave planou até mim e, naquele momento, eu soube que a lembrança da minha avó sempre estaria associada àquela lavanda e também às suas luvas de renda bem branquinhas. Eu seguia esse ritual de beijá-la diariamente, desejando que um sopro de vida saísse de meus lábios diretamente para aquela velhinha querida, mantendo-a viva, perto de mim.

Naquele momento, um sino badalou ao fundo, uma só vez e nada mais. Aquilo estava se tornando comum nos últimos tempos.

"Ouviu isso?", perguntei a vovó. Respondeu que não. Não dei importância - senil, tinha sua audição debilitada. Compreensível - nada poderia ser mais normal.

Saí para a rua. O bom de dias nublados é que você pode simplesmente sentar na beira da calçada e ficar por lá, apenas observando o movimento das pessoas que vão e vêm, de direções opostas para lados diferentes. Elas só perdem umas às outras, a cada passo. E perdem tanto e tanto e cada vez mais, mas não se importam em perder. Eu não sou como elas. Eu me importo e eu me importo muito. Talvez fosse por isso que eu contava todos os carros que passavem e, se me perguntassem depois, eu saberia dizer todas as cores e todas as placas - só que ninguém nunca perguntava. E eu podia até imaginar por onde aqueles pés haviam passado, até criar histórias na minha cabeça, me baseando apenas naqueles mesmos sapatos que agora empurravam o asfalto quente para ir de uma calçada à outra.

Quando voltei para casa, percebi que mais uma vez havia perdido a noção do tempo e todos já me esperavam sentados ao redor da mesa posta para o almoço.

"Ah, filha, atrasada de novo", disse mamãe, enquanto eu puxava uma cadeira para me sentar. "Meu Deus, o que aconteceu com a sua mão?"

Olhei para baixo. Era como se minha mão direita tivesse se transfigurado em um conjunto de dedos trêmulos, recobertos por uma pele enrugada e translúcida, por sob a qual era possível reconhecer os caminhos formados por veias azuis e irregulares.

"Eu... eu não sei", respondi.

"Deve ser alguma doença de pele. Viu só o que acontece se você passa o dia inteira sentada debaixo do sol? Vou te levar ao médico".

"Tudo bem".

Do outro canto da mesa, vovó me olhava atentamente. Ela parecia de repente tão saudável: bochechas coradas, postura ereta e um brilho fabuloso no olhar. Isso me alegrou - como eu adorei aquele brilho, mas como alguma coisa nele fazia doer em mim!...

Ao fundo, o badalar do sino. Uma só vez e, então, parou.

"Se pelo menos esse sino maldito pudesse parar de tocar...", resmunguei.

"Ele não vai parar", falou vovó. "E, sim, eu posso ouvi-lo. Só que sua música é muito mais bela para mim do que para você. É, para mim, feito o canto de um bem-te-vi anunciando a aurora!... bem, acredito que se pareça mais com uma marcha fúnebre para você. De qualquer maneira, quero que saiba que sinto tanto por isso... mas, lhe serei eternamente grata".

Eu olhei para ela, confusa. Mamãe parecia entender menos ainda.

"Por que não vai se deitar, querida?", continuou vovó. "Você parece um pouco abatida". Levantei-me. "Oh, espere... antes disso, venha cá dar meu beijo".

Fui. Quando meus lábios tocaram sua pele, o sino badalou uma última vez. Depois, saí da cozinha.

Ao pé da escada, notei que esta nunca parecera antes tão íngrime e comprida. Por alguma razão, só de pensar em subi-la, eu já me sentia extremamente cansada.

Da cozinha, uma risada estridente de vovó escoou por toda a casa.

Juntando todas as forças que me restavam, subi o primeiro degrau.

Julia Cardoso
Enviado por Julia Cardoso em 03/07/2006
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