Sem culpa no cartório

Nos idos de 1940, não havia a marginalidade de hoje e não se tinha medo de sair a qualquer hora da noite. Mais tarde, eu vivia em noitadas de bailes e madrugadas a pé sem nada temer. Certa ocasião, após um baile, o Ivan pediu meus bons ofícios para levar em casa a amiga da namorada dele; aceitei a dolorosa incumbência, pois, a mulher era horrível e eu logo evitei muita intimidade, inclusive, ficando no estribo do bonde, enquanto ela ficava sentada no banco; foi minha sorte...Nem o bonde começara a andar, chegou um PM de arma em punho querendo me balear por ser amante da mulher...Que eu conhecera minutos atrás...Que susto! Consegui convencê-lo com muito tato, que nem bons amigos éramos, e lhe dei total razão criticando o procedimento da mulher, aconselhando um corretivo doméstico. Parecia tudo bem compreendido, mas, depois que eu desci do bonde, o PM também desceu e começou a atirar às minhas costas...Lembrei-me de correr em zigue-zague o que me salvou...Como é possível levar-se um tiro por causa de uma pessoa que nem se conhece? Ninguém na família acreditaria que eu não tivesse culpa; imagino a Nonoca criticando o envolvimento com mulher alheia...Minha biografia ficaria maculada, lembrando Manduca, irmão de minha mãe, que em vez de dar atenção à família, comprava de cada vez dois pares de sapato para a noiva...Coitado...Morreu de apendicite e se parecia muito comigo. Nonoca mesma dizia - capaz de não se criar, pois, parece muito com o Manduca meu irmão. De uma coisa estou absolutamente certo - jamais compraria dois pares de sapato para a noiva, pois, não compro nem para a esposa. De qualquer modo, eu me sentia na obrigação de fazer visitas freqüentes à sepultura do Manduca no cemitério de Inhaúma, mantendo-a sempre limpa e pintada; aproveitava a oportunidade, e colhia mangas das inúmeras mangueiras que havia no cemitério; o número da sepultura tinha a dezena 56, gato no jogo do bicho. Minha avó ganhou muitas vezes e comemorava com vinho barato e fumo cinco pontas. Muitos anos depois, com a morte de meu avô, a sepultura teve novo inquilino; meu avô, alma boa e compreensiva, segundo minha mãe, um santo segundo Nonoca; um morto segundo minha avó, e para mim, uma carta fora do baralho...Quem sabe pelo célebre duelo de titãs com meu pai? Teria sido como a Batalha do Itararé, que não houve? Ele era neurastênico; na época da 2ª guerra, com as dificuldades de comprar comida, levou uma lata de banha rosa pra minha mãe em visita formal; o Augusto passou-lhe a mão na cabeça e falou - vovô está ficando carequinha...Ele foi embora na mesma hora; outra ocasião me fez subir num pé de grumixama; grumixameira é uma árvore da família das mirtáceas, conforme consta do Aurélio, e não me lembro se comíamos grumixama. Gostava de tomar grandes porres e deitava numa cama, jogando a funda de qualquer maneira, pois, a usava sempre por causa de enorme hérnia inguinal.Uma figura de livro!