Absinto

"Ei, como estás? Faz tempo que não nos falamos. Queria saber como estava. Eu queria ir vê-la, porém estou meio debilitado pelo diabetes, então, quer dizer que se eu quebrar algum osso, posso morrer. Sou um roteirista de sucesso agora, estaria orgulhosa de mim se estivesse aqui..."

Vontade de gritar para todas as paredes do quarto em que estava. Vontade de ser único quando não é. Vontade, vontade... As vidas são apenas vontades imersas no calor da batalha. Vontades e saudades.

Alguém lhe gritou para não pular daquelas alturas eminentes. E ele, em sua criancice, pulou sem ver para onde as nuvens foram. Será que fugiram? Será que morreram na lágrima de Deus? Quem seria o Deus de tudo? Alguém lhe gritou que tudo ficaria bem, mas ele deveria descer daquela janela. E ele, em sua surdisse, pulou sem ouvir o grito dela por trás das portas de vidro. E o pai o olhava por trás das árvores do meio fio. O olhava com o feto de seu filho na mão. O bebê que já fora. E ele já fora uma criança... Pulou como se fosse alguém que pudesse ser estrela quando pulasse. Pulou para ser uma estrela que desaba do firmamento e se torna o absinto. Seu nome era absinto

Quando desligou o telefone, ele se viu desorientado. Achara aquilo uma perda de tempo. Para quê ligar? Para quê mexer no passado com vara curta? Hirto, fixou o olhar na mosca sobre seu braço. Por um momento pensou ter visto o seu reflexo nos olhos daquele inseto. E viu que o cabelo lhe rareava, as mãos mostravam manchas, os olhos lhe traíam quando ele lia seus roteiros. Não adiantava colocar os óculos, a morte o cegava o quanto antes. Estava só em casa, aliás, ele tinha sua enfermeira, mas não era ninguém. Ele não a confiava nada. Seus olhos para ela eram como projéteis, fuzilam-na, dão-lhe medo. A pobre mulher se escondia de seus olhos paralíticos. Às vezes ele se achava um louco. Criava amigos imaginários repletos de talentos e defeitos que não tinha coragem de atribuir a si mesmo, no entanto, essas visões tomaram vida e ele deve explicações aos seus contemporâneos. É difícil dizer que ninguém existe. Ele divagava sobre isso enquanto admirava suas mãos flácidas e manchadas. Rugas pelo rosto, olhos tristes. Suas roupas antiquadas. Sua casa pequena, porém confortável. Divagava sobre isso, sobre o que lhe faltaria. Gostava quando a enfermeira fechava a porta e se demorava na rua. Ficava só, lendo o teto riscado com dizeres estranhos. Dizeres que nem ele sabe por que escreveu. Dizeres que mostravam a vida, a parabólica quebrada, a estradas de todos os santos, a privada, a fossa e chão de estrelas mortas. O absinto lhe trazia paz. Aqueles demônios danados poderiam lhe ferir até se transfigurar num brilho eterno de besta fera. Um affair com o diabo. Caso de amor com santas cuneiformes, xilográficas, xás de xeques árabes, santas prostitutas e aparentes milagres de amores enfermos. A porta abre. É a merda da enfermeira.

Ele saía pontualmente às dez da manhã.

Olhava o sol enquanto, na rua, todos esbarravam nele, porém nada o fazia parar de ver o sol. A claridade não lhe incomodava, nem lhe queimava as retinas. Pétalas lhe cobriam o caminho quando ele retornava o olhar para a terra de gente esbarrante. As pétalas lhe enfeitavam a rua como num caminho que se seguia sem dor, às vezes, anjos lhe mostravam as almas presas nos bueiros, bocas-de-lobo, presas no esgoto e nas retinas. Anjos são meras prostitutas para dar prazer em meio à uma dor eminente. E os olhos dela estavam sempre nas vitrinas dos cafés, dos restaurantes. Ela não era um anjo, não era... Era a pétala. Era uma nuvem, um coração que bate dentro de si mesmo, onde nada migrava, nada se movia. Um coração que batia nas trevas de um corpo doente. Um coração que guarda aquilo que nunca se conhecerá. E por isso nunca conseguia dormir bem. Saía às dez, mas acordava às cinco da manhã. Pensava. Bebia água. Pensava. Olhava para a Olivetti e pensava no que sonhara. Keroac está morto há tempos. Seus sonhos não valem mais nada. No que sonhou? Escreveria uma peça sobre a futilidade de ser são e, no seu sonho, via uma estrada feita de pedras, viu rostos nas pedras, rostos de todos os sexos. Rostos mortos e vivos... Ele os pisava enquanto andava. Via o sol, via Deus, via a Virgem Maria nua a seduzi-lo. Via-se como quem nunca havia se enxergado antes. Repudiava o próprio olhar diante do espelho. Ia para a beira de um lago e chorava, via-se, não queria se ver! Corria e acordava suado... Um sonho de séculos que se passou em alguns minutos. Escrevia tudo que se lembrava e o que não.

Vagueava por essas lembranças enquanto estava sentado na plateia do teatro. Via sua peça ser encenada com cautela pelos atores e atrizes, com carinho do diretor e amigo. Um bom homem. Ele sorria para ele, uma forma cativante de dizer que "parabéns, estás indo bem!". Ele olhava a peça, mas pensava em outra coisa. Em outra peça, talvez. Talvez pensasse nela. Pensaria no por que ligar. Por quê? Há tempos que já havia se separado e depois aquele telefonema. No palco, as vozes aumentavam o burburinho e ele imaginava se ela havia recebido o recado. De repente a viu rir. Dizer para suas amigas como ele era fraco. Era idiota. Imaginou-se com o rosto tomado pelo vermelho da vergonha das pessoas. Afogou-se nesse pensamento até sentir a tontura pela falta de ar. Ligaria apenas pelo desejo, era o desejo que o movia. Fraco, macho realista-naturalista. Desde que seu sexo lhe confiara um tosco celibato, nada demais, apenas o desejo. Afogou-se em águas claras e salgadas e uma mão lhe puxara. Nem notou o diretor tocar-lhe o ombro. Ele o olhou com ar de assustado, disse que não estava bem e achou melhor sair. O diretor consentiu. Saiu do teatro e foi a cafeteria em frente. Não podia beber café e tinha medo de beber suco. Achou melhor copo d'água. Bebeu-o sedento. Olhou as vitrinas e viu os olhos que lhe traziam paz. Era a poetisa. Sentiu um ímpeto de vê-la mais uma vez. Conversar a tarde inteira como na última vez que se viram naquela cafeteria. De repente ele a via nos copos e em outros olhos.

Ela era de olhos profundos, cabelos negros e voz mansa que às vezes lembrava uma voz de criança. Era poetisa. Escrevia o verso que lhe aflorava a pele. Ele a viu entrar naquela cafeteria e não tirou os olhos dela. A poetisa era bem mais jovem, era acadêmica e ele um coroa roteirista. Sentou-se no balcão. Lado a lado, foi inevitável a conversa. Riram, conversaram, lamentaram e trocaram telefone. Logo se encontravam constantemente ali. Segredavam e dessegredavam, uma vez ela até chorou e seus olhos, por mais tristes que se tornavam, ganharam um brilho maior. Ele chegou perto, acariciou o seu rosto e um beijo aconteceu. O beijo foi demorado. Saíram da cafeteria sorrindo de braços dados pela rua. Foram até a casa da poetisa, lá, continuaram a noite a conversar e beber. Foi a mais bela noite que ele havia vivido. À noite, estava eufórico e dormiu tão bem quanto em qualquer noite. Definitivamente tinha visto uma coisa bonita.

Os olhos o acompanhavam pela rua, enquanto as latas de lixo lhe segredavam coisas indecentes. Contudo, começou a balbuciar para si mesmo como os olhares lhe perseguem. Os olhos dela são feitos de girassóis. Sentou-se num ponto de ônibus e tirou seu pequeno caderno de anotações. Escreveu sobre olhos, sobre como eles tomam as vitrinas e os outros olhos. Sem dar conta escreveram sobre a poetisa, sobre seu cabelo, seus olhos sem defeito. Guardariam segredos? Guardar-no-iam depois de tanto tempo? Escrevia mecanicamente, tudo lhe vinha a mente e ele passava para o caderno. Então, uma brisa trouxe a página de um livro. Era uma bíblia e a página era do apocalipse, onde sublinhado se via:

"O terceiro anjo tocou a trombeta, e caiu do céu sobre a terça parte dos rios, e sobre as fontes das águas uma grande estrela, ardendo como tocha. O nome da estrela é Absinto; e a terça parte das águas se tornou em absinto, e muitos dos homens morreram por causa dessas águas, porque se tornaram amargosas."

Era o absinto. Sua amargosa provação. Essa planta amargosa que ele se deixava seduzir. Olhou a página, amassou e jogou fora. Foi para casa. Na rua não havia mais ninguém. Ele olhava para os lados, via o céu azul e o sol. Olhava o sol. Mas não havia ninguém para lhe esbarrar. Andou errante pelas ruas esquecidas, ruas vazias, ruas de pétalas. Nem via os olhos dela nas vitrinas. Andou por um grande tempo até chegar a uma larga avenida, no meio desta, via um homem em pé, de blusa xadrez, calças marrom escuro e cabelos branco. Era seu pai. Seu falecido pai. Aproximou-se com lágrimas nos olhos e abraçou o velho. Olhou longamente para aqueles olhos ternos e aquela pele morena clara. Olhou profundamente, porém não disse nada. Logo o céu ficou cinza e uma chuva não demorou a cair. Segurou as mãos de velho pai, mas este se tornou água e juntou-se chuva, numa poça d'água no meio da rua. As lágrimas do roteirista se misturavam aos pingos de chuva em sua face. Ele abaixou-se e, com as mãos formando um recipiente, juntou a água da poça e a bebeu, porém cuspiu, pois era amargosa. Deixou-se cair no asfalto da avenida, olhou para o céu e o sol brilhava fraco entre as nuvens. Gritava perdão... Deixara seu pai morrer só, em dores constantes. Triste fim. Era seu absinto. Levantou-se e, chorando, foi para casa. A casa da poetisa.

Bateu a porta. Ela lhe surgiu vestida de camisola e o via na lágrima. As lágrimas que furavam a alma e os olhos lhe beijavam a retina. Dormiu naquela casa, aquele alto apartamento. Acordou contando em ordem decrescente, de cinco à um. Acordou olhando o teto. Absinto. Olhou o abajur sobre o criado mudo. Absinto. Olhou o armário de livros. Absinto. Olhou-se... Seu pai morrera na primavera passada. Absinto. Enquanto ele se divertia na casa de sua santa prostituta, por isso se separou. Nunca cuidou dele, de seu pai, nunca! Tratava-o como se fosse viver para sempre. Absinto. E aquela virgem maria de seios decaídos. E o leite materno alimentando sua besta-fera. Absinto. Não chorou a morte do pai e, no entanto, ele chorou pelo filho. Perdoava-o. Absinto. E ela o deixara por que era inútil, maldita! Tentou-se. Absinto. Bebeu água amargosa da fonte e sua sede de ser a morte foi saciada. E desde então a enfermeira. E desde então a poetisa. Absinto. Aquela era sua casa, viu os soros, viu os remédios, viu a enfermeira andar de roupão pelo quarto. Sentiu a brisa entrar pela a porta da varanda. Viu-se coberto de pétalas. Tinha vontade da poetisa. Absinto. Criara amigos imaginários cheios de virtudes, de vícios. Cheios da beleza que ele queria amar. Queria ter. Absinto. Não! Gritou, a enfermeira correu, ele jogou-lhe o abajur. Tirou os soros e saiu para a varanda. Vontade de pular. Matou seu pai, deixara sua esposa, a santa prostituta, traía-lhe, tornava-lhe palhaço. Enxovalho. Absinto, absinto, absinto. Vidas imersas no calor da batalha, vontades são. Olhou o céu. Saudade de ser o feto ainda. Viu-se recepcionado por pétalas no chão. Banho de pétalas. A voz da poetisa abafada pelas portas de vidro. Gente, no chão. Gente, no céu. Gente farpada de arames. Gente que não se vê. Anjos, não os queria. Absinto. Pulou. E seguia os olhos das janelas. A estrela que se chamava absinto...

"Ei, só queria dizer que adorei a tarde que passamos juntos. Só de pensar que isso será eterno a partir de agora me deixa muito feliz. Até breve..."

Valdemar Neto
Enviado por Valdemar Neto em 25/10/2009
Reeditado em 30/12/2009
Código do texto: T1886735
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.