Carma

Não é uma estória de amor.

Não é uma piscina cheia de cerveja e mulheres semi-nuas mostrando a todos suas vertiginosas burrices.

Não é um poço de esperma. Apenas uma estória.

Não.

Tantos páragrafos de uma carta e testemunho ocular de um crime funesto. Um crime-cataclisma. Há tempos não consigo escrever bem, às vezes acho que meu tempo passou. Mas isso não é um estória de amor. Não.

Não tem como ser.

Seria sábio dizer que tudo poderia começar com uma bela negação: Deus não criou isso que você chama de merda. Foi você. Saiu de dentro de teu estômago direto para meu cérebro.

Não. Isso não é modo de se começar uma estória. Eu deveria ser mais humano, quem sabe, mais divino. Mais homérico. Mais wildeano. Mais lockeano. Mais cristão. Não! É melhor começar por aquele dia de cataclisma.

Liguei o rádio e ouvi uma voz estridente que dizia: "há um cometa em direção a terra, ele irá colidir com nosso planeta em exatas nove horas. Pedimos a todos que fiquem em casa e, em circustâncias avassaladoras, rezem. Ou o governo irá aplicar penas severas, visto que perdemos toda a noção de ordem e progresso com esse fato catastrófico e único no mundo.". Sentei-me na cama e voltei a fechar os olhos. Não demorou muito para que os carros começassem a correr pelas ruas. Não demorou muito para que pessoas morressem subitamente e serem arrebatadas para longe, por homens vestindo roupas brancas dizendo para terem calma. Não demorou muito e alguém bateu a minha porta. Era ela. Ela que não me atendia o chamado para dar um volta pela rua, enquanto as ruas não estavam cheias de drogados expulsos de cabarés fedidos após a notícia do fim do mundo e depois de quererem dar uma última transada antes de queimarem no fogo sideral do cometa. Que estimulante! Disse que queria transar com ela agora mesmo. Mas ela não aceitou, disse que jamais faria isso comigo. Eu a beijei e ela virou um homem. Pulei a janela e saí correndo pela rua, vi que estava nu, peguei vários papelões e me cobri.

A rua é o cativeiro natural do caos. Papéis são jogados de prédios, mesas são jogadas de prédios e pessoas são jogadas de prédios. Perto fim, a morte é a coisa mais natural que existe. Sempre pus meu pé para rua e imaginei que morreria. Sempre imaginei a vida como este caos do carma terreno de morrer nos braços de Shiva. Porém, nem vi meu táxi passar e todos estão morrendo antes de mim.

O céu está azul, pelo menos isso. Isso ou a escuridão de um provável nuvem de poeira que ascenderá aos céus quando do impacto do cometa. E ali, no meio do caos. Corpos caídos na rua. Os médicos desistiram de socorrê-los e agora estão mais preocupados com as próprias vidas. Pobres almas... Se quer salvar alguém, salve-se primeiro. Achei umas roupas limpas de um cadáver jogado na sarjeta, resolvi pegá-las emprestado, depois do fim eu devolvo. Olho para cima e vejo as janelas quebradas, pessoas se jogando. Exército virou vítima do caos. Acabou-se a ordem. Acabou-se o mundo. E vagar sem rumo pelo mundo prestes a acabar é algo intrínseco e humano. Andei por ruas há muito movimentadas, porém num átimo de segundo, todos se foram. Todos se esconderam. Todos menos eu.

Não era sonho?

Não.

Sonho, não! Ao menos o que seja algo lindo...

Vaguei por avenidas imensas sem olhar para os lados e prestando atenção nos muitos olhos sem visão que me vigiavam.

Não era sonho!

O céu estava ficando mais cinza, as luzes começavam a acender. Que horas eram? Quase duas da tarde. Falta pouco pro fim. Na televisão, em cadeia nacional (e internacional, quem sabe) alguém fala sobre manter a calma. Manter a calma. Manter a calma... Manter o carma.

O carma de visões intensas e desnorteadas. O carma do mundo. Eu sou Shiva. Eu sou uma guerra ambulante. Eu sou o crime, o incesto e a catástrofe. Eu sou a catarse, a hybris e meu próprio metron. Eu me superestimei. Eu causei tudo isso...

Grito na rua que sou eu a destruição iminente. Sou eu quem deve matar. Ninguém se move. Onde estão todos? Onde estão as figuras medrosas que se escondem nos ralos, no bueiros, sob uma chuva de verão? Onde estão as caras sujas de lama e sangue? Onde estão as esguias figuras de madrugadas tolas e rudes, cheirando a sexo novo? Onde? Onde? Grito na rua que estou só. Quem está comigo? Deus? Suplico que me deem bons motivos para acreditar Nele. Ele está no cometa. Ele é Shiva. Eu sou Shiva. O mundo escolheu sua própria destruição. Então vi...

Vi pessoas se beijando. Vi pessoas se abraçando. Vi as lágrimas tornarem-se rios. Vi pessoas subirem e descerem os morros. Vi que ninguém é de ferro para aturar o fim. E chegou-se a hora. Chegou-se o tempo. Faltam poucos minutos para, enfim, nos vermos de trás para frente.

Pouco tempo...

Não era sonho. Pouco tempo. Abracei a quem me repudiou. Sonhei-me acordado e vi qualquer coisa além de mim mesmo. Vi qualquer coisa além de mim mesmo e de outros. Pouco tempo. Qualquer dose de aguardente e pouco de vergonha. A bola de fogo atravessa o céu e vem em nossa direção. Ela invade a retina e retira o ar. Perdoar não era ato falho.

Já era sem tempo...

Não era um estória de amor ou uma propaganda. O que sobrou? As palavras. Apenas sussurros depois do fim e a alma voanda pelo vácuo eterno de um mundo escuro.

Alguém então me bate a porta, era ela.

Valdemar Neto
Enviado por Valdemar Neto em 02/11/2009
Código do texto: T1901486
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