Mortou ou vivo

Mais uma grande peste assolou o mundo. Dessa vez, ela chegou até os mais remotos cantos da Terra. Não levou junto, entretanto, as explicações científicas, remédios e tratamentos.

Em algumas regiões, populações inteiras se auto-flagelavam, pedindo perdão por seus pecados. Em outros, ofereciam oferendas aos zangados e egoístas deuses, que brincavam com seus destinos.

Em R..., uma vila bem pequena da região de D..., os pais de família “descobriram” que a peste era causada por uma garota amaldiçoada, supostamente filha de um demônio, que passou pela cidade há alguns anos.

- Loucura! Besteira! Idiotice! Ela é uma criança!

- Saia da frente, Marta.

- Vão ter que me matar também.

Os líderes da cidade se entreolhavam preocupados. Já adivinhavam que a mãe resistiria, mas o que faziam era para um bem maior. Tinham que salvar a vila e o mundo daquela peste maldita. Um deles, mais exaltado, gritou furioso:

- Se for preciso...

Ele já avançava na direção dela, mas foi impedido por outros dois, um bem mais jovem e outro bem mais velho. O mais velho, Raul, conselheiro-chefe de R..., o repreendeu duramente:

- Não viemos derramar sangue inutilmente...

Marta solta uma gargalhada irônica e grita com Raul:

- Não? Vocês, estupidamente, culpam uma criança por uma peste maluca e resolvem matá-la. Realmente, um bom motivo.

O homem mais jovem foi até Marta e a abraçou. Entre lágrimas e soluços, ele disse baixinho no ouvido dela:

- Desculpa...Mas você deveria colaborar. Vai ser melhor assim... até para a Karina. Se eles a pegarem, não vão ter piedade... Nem o velho vai conseguir evitar que eles a torturem e a matem cruelmente.

- Ela não tem culpa nisso, Natan. Não tem!

- Eles não vão mudar de idéia, Marta.

***

Sob os olhares dos líderes de R..., Marta leva a filha para o cemitério da cidade, as duas entram em uma cripta de pedra antiga, feita há mais de dois séculos. A menina acompanha a mãe, ainda assustada com os gritos e perseguições dos últimos dias.

- O que nós estamos fazendo aqui, mamãe?

Marta olha para a criança. Os olhos negros e grandes, o rosto pálido e pequeno, os cabelos castanhos, a imagem do pai, que passara como um relâmpago pela vila, causando espanto, amor e ódio. Um boato dizendo que ele era um demônio surgiu e foi o que atraiu Marta até ele. Ela adorava mistérios e não acreditava nas bobagens daquele povo. Viveu alguns anos em uma cidade grande e aprendera bastante.

Sempre olharam com desconfiança para a filha. Quando Karina tinha quatro anos, ela chocou a todos quando disse ter visto e conversado com o espírito do enforcado que, segundo a lenda, assombrava por décadas a praça central.

- Kaká, você ama a mamãe?

A menina apertou com força a mão da mulher e respondeu segura de si:

- Muito.

- Mesmo ela sendo covarde?

- A mamãe não é covarde.

Marta soltou a mão da garota e ficou de frente para ela. Olhou nos seus olhos negros, que pareciam ver mais que qualquer outro, e respondeu chorando:

- Sou sim.

Ela abraçou Karina e continuou:

- Você vai beber isso e dormir. Vou fechar a porta de pedra, para aqueles homens não te pegarem, mas você... você...

- Não vou poder sair.

- Me desculpa.

A menina apertou o abraço e respondeu:

- Tudo bem.

Marta fez Karina beber o sonífero, que naquela quantidade poderia ser considerado um veneno, beijou o rosto dela mais uma vez e saiu da cripta, rezando para que a menina morresse em paz. Os homens fecharam, com satisfação, a entrada de pedra..

Natan seguiu de perto Marta, que ia em direção à praça central, segurando uma corda que pegara no cemitério. Imaginava o que ela ia fazer.

- Eu não vou deixar.

- Você não pode me impedir.

- Eu não vou aguentar...

- Cale a boca! Não pode ajudar minha filha, não pode me ajudar. Eu sou uma desgraçada, a mais hedionda das mães.

Alguém, ainda perto do cemitério, gritou por socorro. Outro correu até Natan e Marta e avisou que o velho Raul se matara com um tiro na cabeça. Marta subiu na figueira centenária, com a corda no pescoço e antes de morrer disse baixinho:

- Eu desejo dois infernos: um para mim, a morta, e outro para eles, os vivos.

***

O sonífero fez efeito, mas não a matou. Depois de muitas horas, a menina abriu os olhos. Não conseguia se mexer. O ar era insuficiente. Não via nada. Só a escuridão. Abria e fechava os olhos e o cenário continuava o mesmo.

Ficou assim por muito tempo. Percebeu que o ar tinha acabado. Não fez nenhum movimento desesperado, procurando um pouco mais de vida. Ela seria, de qualquer forma, igual à morte mesmo.

Do lado de fora, o dia se tornava noite e a noite voltava a ser dia. Horas, dias, meses, anos. Mesmo com o sacrifício de Karina, a peste continuou implacável e matou quase todos os moradores de R...

Natan foi um dos poucos que sobreviveram. Dez anos depois do grande surto, o governo finalmente levou a cura até a vila, que já estava praticamente vazia. Apenas ele e algumas outras famílias continuavam por lá.

Algumas décadas a mais e veio outra epidemia. Essa sim dizimou o restante dos moradores da vila. Natan, já quase centenário, sobreviveu. Sozinho.

Sem regras para seguir, ordens para acatar, foi até o cemitério. Buscou a cripta de pedra, onde estava o corpo de Karina e a abriu com dificuldade. As dolorosas memórias da juventude ocupavam sua mente, mas era tudo o que lhe sobrara.

Procurou o corpo da menina... Estava intacto, inclusive as roupas. Sentiu um arrepio na espinha e se aproximou. Tocou na mão pequena e gelada dela, depois se abaixou e sussurrou no seu ouvido:

- Me desculpe.

Para seu espanto, sentiu que a mão se mexia. Ele a soltou imediatamente e deu dois passos para trás. Quase tão pálido quanto a morta, dizia para si mesmo que aquilo era um truque da sua própria mente.

Entretanto, a garota continuava a se mexer. Primeiro as mãos, depois a cabeça. Abriu os olhos e devagar se sentou. Olhou para Natan com os olhos tristes. Este, por sua vez, respirava fundo e depois de algum tempo conseguiu falar:

- Você está viva?

Karina se olhou, sentiu que o coração não batia e que não respirava como o velho na sua frente:

- Não sei. Acho que não.

- Meu Deus.

- E minha mãe? Onde ela está?

A imagem de Marta pendurada na figueira da praça traz lágrimas aos olhos de Natan, que responde pesaroso:

- Morreu há muito tempo.

A menina se levantou e foi até a entrada da cripta. Antes de sair, hesitou, mas concluiu que não deveria fazer diferença se saísse. Natan foi atrás dela, ainda sem acreditar no que via.

- Quem é você?

- Natan. Era amigo da sua mãe, lembra?

- Sim, ela gostava muito de você. Dizia que tinha um bom coração.

- Deveria ter feito alguma coisa naquele dia...

- Aqueles homens...

- Também já morreram. Aliás, além de mim, não tem mais ninguém aqui.

Os dois voltaram a caminhar e foram para a praça. Karina procura a sua antiga casa. Natan conta que ela desabara há muitos anos também. A menina balançou a cabeça negativamente e perguntou:

- Minha mãe, minha casa, minha vila... tudo se foi. Por que eu ainda estou aqui?

- Me pergunto a mesma coisa todos os dias.

Natan pergunta para a menina se ela tinha fome. Ela responde que não.

- Você se lembra de alguma coisa?

- Não. Só que era escuro, com os olhos abertos ou fechados.

Os dois continuaram andando sem rumo. Saem da vila, inclusive. Natan notou que era a primeira vez que saía dali desde que todo mundo morrera. Colocou a mão no peito, como se certificasse que estava vivo. Karina viu o gesto e perguntou:

- Seu coração bate?

- Sim. Parece que estou vivo.

- O meu não bate, mas não parece que estou morta.

Chegaram a uma cidade grande e descobriram que ninguém estava vivo por lá também. Continuaram a caminhada e chegaram em outra cidade. Nessa encontraram algumas pessoas, que as olhavam com indiferença:

- Tenho certeza que estão nos vendo, Karina.

- Mas parece que não faz diferença.

- Está com fome?

- Não. E você?

- Também não.

Depois que respondeu, Natan percebeu que não comia nada desde que saíra da vila e não se lembrava da última vez que comera por lá também. Olhou para a garota, que também o encarou, e perguntou:

- Eu estou vivo?

A menina sorriu e perguntou:

- E eu? Estou morta?