CONTOS DRACONINOS 5 - ORMUZ DAKSHA – O BRANCO

O sol ergue-se no horizonte iluminando o mundo. Karl havia pulado da cama a pouco tempo e quando saiu de sua cabana ainda estava escuro. Trilhou o caminho que o levou até a floresta que circunda a vila.

Para alcançar as melhores maçãs de inverno é necessário escalar a escarpa rochosa da montanha. Íngreme a encosta força o aventureiro usar braços e pernas. O cansaço é inevitável. Karl está disposto a pagar este preço. Assim ele, com habilidade, passo a passo vence os trinta metros que o separa das frutas mais saborosas da estação. A arvore robusta, de tronco liso e poucos galhos está carregada de frutas vermelhas. Karl aproxima-se ávido por aquele manjar dos deuses.

Próximo a arvore há uma gruta. Ao passar pela entrada da caverna um sussurro assustador brota da escuridão. Sobe pela espinha um arrepio. Mas em Karl a curiosidade é maior que o medo. Movido por este sentimento ele, silenciosamente e com cuidado, adentra a caverna. Então próximo a entrada seus olhos deparam-se com uma visão que o faz saltar para trás. Ele não acredita no que vê: um imenso dragão. A criatura parece adormecida. Ao chegar mais perto percebe que logo acima da asa esquerda, há um grande ferimento. O sangue brota em abundância. Constata que o dragão está inconsciente. É necessário estancar o ferimento ou ele morrerá. Mas ele nada sabe de dragões a não ser o que diz as lendas. Recordar-se da anciã Helen. Com certeza ela conhecerá medicamentos que podem salvar o dragão.

Desde que o bom padre expulsou a anciã da vila ela passou a morar na floresta. O bom padre a acusou de bruxaria e por pouco não a condenou a fogueira. Toda a vila suplicou pela vida de Helen, a qual por muitos anos curou os doentes, foi parteira e conselheira dos moradores da vila. O bispo enviou o bom padre, isso foi a pouco tempo, para evangelizar as almas daquela região esquecida de Deus. Comovido pelos pedidos da multidão ele achou por bem apenas expulsa-la da vila. Resignada a anciã acatou a decisão do bom padre e exilou-se no interior da floresta. Mas quando alguém necessita de um conselho, ou cura para alguma dor e até mesmo ajuda no parto é as portas da anciã que vão bater

Karl sabe onde é sua cabana e sai em desembalada correria até lá. Após alguns minutos ele esta diante de uma modesta choupana. Antes que bata a porta uma mulher pequena, apoiada num cajado atravessa a soleira e o fita.

- Bom dia jovem Karl! Helen chama a todos da vila pelo nome, pois, viu muitos nascer, inclusive ele.

- Bom dia Helen. Fico feliz em revê-la.

- Obrigada. Entre, entre, acabei de preparar um saboroso chá você me acompanha?

- Claro! Assim Karl entre na cabana. Não havia divisões internas. A esquerda uma lareira, ao fundo uma cama, ao centro uma pequena mesa rodeada de quatro cadeiras e a direita um grande baú. Karl senta-se enquanto Helen pega a chaleira e duas taças. O aroma é agradável. Numa tigela a anciã deposita alguns biscoitos.

- Então jovem o que o fez cair da cama tão cedo e vir até mim? Indaga Helen daquele seu jeito franco e direto.

- Helen você não vai acreditar no que acabei de ver na floresta?

- Um grande dragão branco. Responde à anciã.

- Como sabe?! Indaga surpreso Karl.

- Ontem à noite eu estava observando as estrelas quando vi o céu ser iluminado por uma estrondosa explosão. Quando recuperei do susto vislumbrei três dragões guerreando no céu. Dois atacavam com violência o grande dragão branco que bravamente os enfrentava. Identifiquei sua cor por causa das chamas que os outros dois cuspiam sobre ele. Se olhar para o norte verá as arvores queimadas, era naquela direção que lutavam. Depois eles sumiram no céu.

- O grande dragão branco está numa caverna e está muito ferido, por isso vim até aqui pedir sua ajuda.

- Que tipo de ferimento?

- Um profundo corte logo acima da asa esquerda. Está sangrando muito. Ele está inconsciente.

- Então não podemos perder tempo. Pegue as folhas daquela planta e vá à frente que eu vou preparar um emplasto e logo estarei lá. Cubra o ferimento com as folhas que o sangramento irá parar. Isso ajudará até eu levar o emplasto. Vamos, vamos corra. Karl obedece imediatamente. Enche as mãos com as referidas folhas e sai correndo.

Veloz vence a distancia que o separa da caverna. Assim em poucos minutos está diante da imensa criatura que ainda se encontra inconsciente e ofegante. Como ordenou Helen ele cobre o ferimento com as folhas. O sangramento é contido. Abaixo do dragão formou-se uma poça de sangue. Helen chega em seguida e com cuidado cobre o ferimento com o emplasto que trouxe. Ela examina os olhos do dragão e suas escamas.

- Graças aos deuses chegamos a tempo de salva-lo. Mas nos próximos dias será necessário aplicar as folhas e o emplasto. Fala Helen sem tirar o olhar do dragão.

- Não tem problema, eu farei isso.

- Ótimo! Mas Karl, não diga nada a ninguém da vila senão o bom padre ficará sabendo e possivelmente o condenará a fogueira em nome da fé verdadeira. Alerta a anciã.

- Não precisa nem dizer. Pode deixar que eu cuido do nosso dragão. Helen sorri com as palavras do Karl.

- “Nosso dragão”?! Karl ele deve ter no mínimo uns sete mil anos de idade, é um criatura poderosa e capaz de com um único sopro queimar metade da vila e você acha que pode ser dono de um ser como este?

- Desculpe, foi só maneira de dizer. Escusa-se Karl constrangido.

- Agora tenho meus afazeres. Amanhã passe lá em casa para pegar mais medicamentos. Despedem-se e Helen segue rumo a sua casa. Karl senta num canto da caverna e fica a observar o dragão. Recordar-se das estórias que sua vó contava a respeito dos dragões. “Eles são poderosos e mágicos. Nossos ancestrais os cultuavam como deuses e os respeitava” dizia ela. “Eles são perversos e maldosos. Emissários do demônio” pregam o bom padre aos domingos. Não importa se aquele dragão é bom ou mal, Karl está fascinado, pois acreditava que dragões fosse lenda. No entanto está diante de um. Ficou chocado por vê-lo ferido mortalmente. Entre divagações e sonhos perturbadores Karl adormece ali mesmo na caverna.

Durante três dias seguiu uma rotina estafante: do amanhecer até o entardecer cumpria seu oficio de pastor, ao final do dia corria até a caverna e cuidava do dragão. No quarto dia o dragão despertou. Karl ao chegar à caverna ficou surpreso ao vê-lo sobre as quatro patas. Suas asas abertas tornavam-o mais poderoso e assustador. Karl paralisado apenas o observava a mover-se na caverna. Quando o dragão moveu o olhar flamejante em sua direção compreendeu o significado da palavra medo.

- Saudações, humano! É você que velou por mim esses dias? Indagou o ser escamoso.

- Sim... eu... Eu... Não sabia que podia falar a nossa língua! Balbucia Karl.

- Vejo que desconhece muita coisa a nosso respeito. Qual o seu nome, jovem?

- Karl Wilhemls.

- Karl, sou grato por ajudar-me, mas por que fez isso? Como sabia que eu não o feriria ao despertar? Seu olhar tornou-se ainda mais flamejante.

- Eu não sabia. Meu povo por mais de dois mil anos cultuou os dragões como deuses. Quando eu o vi ferido só pensei em salva-lo em respeito aos ancestrais. O olhar do dragão tornar-se menos flamejante e algo parecido com um sorriso contorce os lábios escamosos.

- E por que sua gente cultuava os dragões? Karl sente-se mais a vontade na presença do dragão.

- Segundo a lenda nessas terras habitava um dragão. Quando os antigos aqui chegaram o temeram. No entanto logo perceberam que o dragão não era mau, apesar de sua aparência monstruosa. Então firmaram uma aliança e por séculos esse dragão e nossos ancestrais conviveram em paz. Mas um dia a muitos anos ele partiu. Em agradecimento aquele dragão, que permitiu que a vila estabelecesse neste local, por muitos anos promovemos o festival Dracon. Mas infelizmente a três anos o bom padre proibiu a celebração do festival.

- Proibiu! Por quê? Indaga o dragão.

- Por que a religião do único deus prega que vocês são criaturas demoníacas. E tudo que não compreendem deve ser destruído. Fala a anciã ao adentrar a caverna. “Saudações grande Ormuz Daksha” saúda Helen.

- A muito tempo ninguém me chama assim. Saudações, Helen!

- Vocês se conhecem? Indaga Karl.

- É uma longa história. Mas diga por onde andou nos últimos cem anos, Grande Ormuz? O dragão se move de maneira que possa aproximar a face da anciã.

- Viajando por este mundo sem fim, e você Helen?

- Aqui, vendo dias e noites passarem sobre mim. Por que aqueles dragões o atacaram?

- Digamos que estavam cumprindo ordens de alguém que não concorda comigo. Sou grato a você e ao garoto por cuidarem dos meus ferimentos...

- Saia do seu covil, criatura dos infernos, e enfrente a fúria e o poder do verdadeiro Deus. Grita uma voz a entrada da caverna.

- Santa confusão. O bom padre e uma multidão estão lá fora. Fala Karl que se encontrava próximo a entrada.

- E que querem? Indaga o dragão.

- Te matar, Grande Ormuz. Responde Helen.

- Por quê?

- É a maneira como o bom padre trata o que teme e o que desconhece. A voz da anciã parecia um lamento.

- Já vi isso acontecer antes. Fiquem aqui. O dragão move-se em direção a saída. Quando a imensa face escamosa surge à entrada da caverna a multidão sobressalta-se recuando. O bom padre é o único a fitar destemido o dragão.

- Saudações, bom padre! Fala Ormuz.

- Como ousas dirigir-se a mim, criatura satânica. Eu sou representante do Todo Poderoso e em seu nome ordeno que volte às profundezas do inferno. Grita o padre.

- Desconheço a sua autoridade, padre. Então Ormuz com um golpe de sua calda faz a terra tremer sob os pés da multidão assustada dispersa pelas trilhas da floresta. Em questão de segundos apenas o bom padre e Ormuz estão à entrada da caverna.

- Sabe que não o temo, cria do demônio. Fala impávido o bom padre.

- Admiro sua coragem, mas não quero que me tema, quero que me ouça. Os olhos de Ormuz tornam-se duas tochas. “Por que julga possuir direito sobre esta terra mais que os outros seres que a habita?”

- Sou representante do único e verdadeiro Deus, criador do céu e da terra e de todo o Universo. E Ele nos fez sua imagem e semelhança e nos deu o domínio sobre sua criação. Responde o bom padre. Ormuz aproxima sua face escamosa.

- Então esse Deus que te criou também criou a mim e a tudo que existe?

- Sim. Responde o bom padre.

- Isso significa que tanto eu quanto você fazemos parte do projeto desse Deus e, tanto eu quanto você, seguimos as determinações do Todo Poderoso.

- Tenta me enganar com suas palavras, mas eu sei por que Deus o criou. Sua sina é castigar os que desviam do caminho reto e justo, é uma criatura a serviço das forças malignas. Ormuz com um movimento rápido arremessa o bom padre sobre o seu dorso entre as asas e o pescoço.

- Segure-se que vou lhe mostrar algo. Então o dragão salta ganhando o céu. O bom padre agarra-se ao pescoço de Ormuz enquanto tenta controlar o medo. O vento faz seus cabelos dançarem. O sol no horizonte ilumina a terra logo abaixo. “Não tema, bom padre, eu não o deixarei cair. Peço que veja o mundo com um novo olhar” fala Ormuz. Então o medo sede lugar a um novo sentimento, algo que o confunde. A voz do dragão é tranqüila e pacificadora enchendo-lhe a alma de confiança. “Veja o mundo, humano, como os anjos do Senhor o vê. Pois, eles possuem asas e voam como eu”. O bom padre lança o olhar para baixo vislumbrando as copas das arvores passarem velozes. À frente o rio serpenteando a floresta. Estradas abertas cortam o manto verde. A pequena vila, que o bispo lhe entregou para salvar da heresia, desponta como uma jóia incrustada na terra. De inicio acreditou que o bispo o estava punindo ao enviar para aquele recanto esquecido do Todo Poderoso. Aceitou a incumbência como ato penitencial que todo clérigo deve fazer. Mas agora ao vê-la do alto pode captar sua beleza, o seu pulsar e a vitalidade de sua gente.

Ormuz inclina para a direita e voa em direção as montanhas. O bom padre vê os picos montanhosos banhados pela neve. O dragão sobrevoa a montanha mais alta. Logo abaixo rebanhos de renas correm assustados. Com um mergulho inclina-se para o sul e em poucos minutos surgem extensas praias e o mar sem fim. O bom padre se maravilha com a visão. “Jamais pensei que o mundo fosse tão grande é belo visto do céu” pensa o bom padre. Ormuz sobrevoa o mar onde uns cardumes de golfinhos saltitantes os saúdam.

Então, veloz o dragão, retoma o caminho de volta em direção a vila. Haviam percorrido em questão de minutos milhares de quilômetros. No retorno o bom padre vislumbra tantas outras criaturas do Senhor. Com habilidade Ormuz pousa próximo a uma estrada que leva até a vila. O bom padre salto dos ombros do dragão.

- Ainda acredita que somente os humanos possuem o direito de desfrutar o que seu deus criou? Indaga Ormuz. O bom padre o fita com severidade.

- Ele não é “meu deus”, Ele é único Deus. Mas de fato o mundo é belo e perfeito, e não poderia ser de outra forma. Pois, é criação de um ser Perfeito.

- Como queira. Mas há tanta diversidade e cores e tons e variáveis e variantes na criação, que só podemos acreditar que Ele as quer assim. Somos diferentes, bom padre, mas isso não significa que nós, dragões, sejamos piores ou melhores que vocês humanos. Somos apenas diferentes. Na minha raça, como na sua, há também seres diferentes. “É necessário aprendermos lidar com essas diferenças”. Ormuz silencia-se por alguns instantes. Algo se processa na mente do bom padre, algo novo e confuso que o faz permanecer em silêncio diante das palavras do dragão. “Não sou eu que irei dizer-lhe o que deva ou não fazer. Pois, já tenho minha própria vida para cuidar. Mas espero que encontre o melhor caminho. É corajoso, determinado, acredita no que profere e pesa sobre seus ombros grande responsabilidade. Nesta vila há homens, mulheres, velhos e jovens que confiam suas vidas a você. Um dia cultuaram dragões como deuses, mas os dragões se foram e não voltaram jamais. Agora precisam acreditar em outra coisa, pois, a fé, bom padre, é que alimenta a alma. Sem fé nada sobrevive. E a fé está acima das crenças religiosas. Até mais e boa sorte”. Em silêncio o bom padre observa Ormuz saltar e abrir as asas. Em poucos instantes o dragão está voando. Veloz ele segue em direção ao oeste. O bom padre lamenta não ter respondido ao dragão. Mas o que iria dizer? Pois, as palavras de Ormuz eram sábias e coerentes. No entanto ele, como representante da Santa Igreja de Cristo, deveria ter silenciado a cria do demônio e condenado a fogueira todos que estavam ao lado do dragão. Jamais se sentiu tão indeciso quanto naquele instante.

Então, soluços e um choramingar retira-o de suas divagações. Ao buscar a origem daqueles sons o bom padre depara-se com duas crianças. Era um menino e uma menina. De seus pequenos olhos caiem lagrimas.

- O que foi meus filhos? Porque choram? Indaga carinhosamente o bom padre.

- Estamos perdidos e não sabemos voltar para casa. Falou o menino.

- Como se chamam?

- Eu sou Hensel. Responde o menino.

- Eu sou Gretel. Fala a menina.

- Não se preocupe, eu os levarei até seus pais, venham. O bom padre segurando as crianças pelas mãos toma o caminho de volta à vila.

Sannyon
Enviado por Sannyon em 19/11/2009
Código do texto: T1932602
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