Cícero Foi Embora

A porta se fechou e Cícero foi embora. Ele foi com um vento de qualquer noite desperdiçada pelo café das horas vagas; ventos e noites de cafés abandonados por tantos pés que jamais pisarão ali novamente. Ele foi embora e ela pensava tudo isso enquanto colocava o sutiã, olhando a porta ser fechada. Ela pensava nisso tudo e num universo qualquer de versos esdrúxulos que jamais se contarão por algum caminho. Simultaneamente ela saía daquele quarto, exatamente nove minutos depois de Cícero ter saído. Seu batom vinho, seus olhos com lápis preto, seu rosto maquilado, sua roupa de couro preta e seus saltos fazendo barulho quando se encontram com o chão de madeira. Pensava em Cícero. Quem era Cícero? Cícero seria sua vontade de fechar a porta enquanto se coloca um sutiã? Ele era sua realidade ou seu sonho? Desceu ao bar e pediu uma taça de vinho quente. Não havia ninguém ali, só o vento abrindo e fechando a porta, brincando com o sinozinho que balançava ao abrir da porta. O salão era escuro, não havia burburinho e a única luz que se via era da televisão mal-sintonizada que o homem do balcão insistia em ficar olhando. Ao lado dele, perto da pia imunda, havia um garoto que limpava os copos e os pratos. Seu rosto estava cheio de espinhas e de quando em quando colocava o dedo no nariz. Era tudo uma reticência, e ela sabia disso. Bebia o último copo de vinho e sairia para a noite mais uma vez. Já passava das onze e seu ponto a esperava. E Cícero? Não se sabia. Ele apenas a via mais uma vez por toda uma eternidade de minutos incontáveis. Ele apenas fechava a porta depois do se acontecia. Seus olhos, nunca se viu. A escuridão do quarto contribuía para apagar mais ainda a figura errônea de um Cícero qualquer da mente. Filho de imaginação enrustida de brilhos perdidos na eterna escuridão do quarto dela. Divagou. Saiu apressada do bar e foi ter na rua. Foi ter no parque e foi ter no ponto de ônibus e nas igrejas descrentes e hipócritas que não se chamam mais o nome. A cidade era toda uma grande hipocrisia fétida de sêmem e urina de bêbados.

Entrou em um beco esquecido e foi dar em uma rua sem saída. Acima dela, havia um céu alaranjado pelas luzes da cidade decrescente. O chão daquele lado era úmido e voltou por onde entrou. Começou a pingar mansinho, uma chuvinha fria e sem nexo com a estação não-chuvosa. O calor do asfalto subiu logo. Ela não correu, apenas andou pela rua deserta enquanto sua maquilagem ia-se pelo rosto e seu lápis preto, contorno dos olhos, descia-lhe o rosto. Andou errante esperando o fim por anúncios de outdoors. Porém, quando chegou perto da torre da igreja, viu Cícero agarrado a cruz com fome de miséria. E os portões estavam abertos para ninguém entrar. Ela gritou inutilmente, ele não a ouviu. Ela correu, tirou os saltos e foi pés descalços para o meio do patamar. Seu cabelo ruivo tomava uma cor mais escurecida a medida que ia ficando molhado, ela gritou e ele olhou para baixo. Olhou e sorriu. Ela pediu para que ele descesse, que não fizesse qualquer besteira. Cícero sorriu com lágrimas (ou pingos de chuva?) nos olhos. Não se sabe ao certo o que ele sente, só se sabe o que não podia ser dessabível. Esperou seu eco dar resultado na rua deserta. Mas Cícero pulou e ela fechou os olhos e virou o rosto para o lado, porém ele não caiu: Cícero prendeu-se com um barbante à torre da igreja. Ela não entendia: como? Um barbante tão fino deveria quebrar com o peso do corpo e Cícero era corpulento. Mas ele lhe sorriu e sumiu quando deu o relâmpago. Onde ele havia ido? Ela apanhou seus saltos e saiu pela noite já com estrelas brilhantes no céu. Não estava molhada e sua maquilagem não estava borrada. Como? O que houve? Quando se deu conta, viu a aurora da cidade emergir do subterrâneo e ganhar as retinas mal-ou-bem-dormidas da noite anterior dos transeuntes daquela ex-noite calada de vozes bárbaras, abrilhantada pela tempestade e pelos ecos dela e de Cícero. Viu-se ridícula e resolveu ir pela rua já movimentada. Enquanto passava pela rua, ouvia gritos e dizeres indecentes. Ouvia preços por seu corpo. Ouvia propostas e afazeres. Desejos e reparações. Ódios e amores. Dores e curas. Vozes e olhares. Toques e cheiros. Toque... Toque de qualquer um. A multidão aglomerou-se ao seu redor e de repente não conseguia mais sair dali. Ficava abafado e as vozes e os silêncios, os olhares e os cheiros chegavam mais perto. De repente arrancaram sua roupa, seus seios estavam nus. Seu ventre estava nu. Pegavam-lhe no cabelo. No seu rosto. Queria estar em um casulo. Queria ver Cícero. Então, ao fechar seus olhos, viu-se cercada de estátuas humanas. Todos parados em seus gestos mais recentes. Ela via aquilo com espanto. Porém uma mão ergueu-se para tirá-la dali, logo ela hesitou, mas viu de quem era a mão: era Cícero. Aquele sem rosto que podia ser qualquer um. Seu fechar de portas. Seu entrecortar do vento. Sempre e nunca de qualquer maneira cega. Era Cícero. E não hesitou mais, pegou-lhe a mão e saiu dali. Enrolou-se em uma túnica pálida, azulada. Era o que contrastava com sua cara maquilada, borrada, mal-sucedida de noite anterior. Cícero a levava dali com pressa, olhava para trás e ela não sabia o que ele via. Aliás, Cícero não tinha olhos. Cícero não tinha boca, nariz, rosto. Cícero não havia sido o eu de si mesmo. Apenas a incógnita de uma vida que ela imaginou que ele teria. Quem era? Corriam por uma rua sem vida, sem fim. O que não tem fim, não tem vida. O que tinha Cícero? Será que ele tinha fim? Será que ele tinha vida. Caiu no vácuo de seu pensamento, e ficou por lá o resto do dia

Acordou toda suada. Seus lençois estavam molhados de suor e ela arfava. O ar parecia-lhe fugir dos pulmões. Pobre garota! Pobre... Onde estava Cícero? Quando ela olhou, ele fechava a porta mais uma vez, porém, quando este saiu, outro alguém entrou pelo armário. Era Cícero. Era ele que ainda não a viu despertada. Ele tirou seu chapéu e seu sobretudo. Jogou na cadeira perto da cama e logo deu um beijo terno na testa dela. Ela tentou fugir dele, agachou-se num canto escuro e de lá viu a sombra dele ir-se pelo armário. Não voltou mais. Ela levantou-se, vestiu o roupão e foi ao armário. Abriu a porta e entrou, porém suas retinas arderam e ela saiu dali correndo. Cícero não tinha olhos, ficava fácil para ele entrar. O desconhecido enfrenta-se cego. Pobre garota! Jamais quis saber do desconhecido. Não poderia seguir Cícero. E Cícero foi embora. Não voltou o dia que deveria ter nascido e não voltou a noite que deveria enegrecer o mundo. A noite vinda do oriente. Não voltou o inverno, o verão, o outono, a primavera. Não voltou o cheiro e a cor. Não veio a nuvem. Cícero foi embora. E ela se via só e nua diante do espelho e vi a morte chegar sem medo dos olhos lacrimosos dela. Via a morte tocar o pescoço alvo e lamber-lhe a orelha. Via a morte em seu reflexo mais impuro, porém mais nobre. Assim, via-se perto do fim. A idade veio como quem não queria ainda ver-se chegado.

Velha. Nada nela lembrava aquela saudosa mulher de outrora. Os anos a fio, mergulhada na escuridão de sua vidima de sangue negro e sêmem de homens vis, a fizeram encarar o tempo com os olhos ainda maquilados. Não havia corpete, apenas a banha, a gordura vil de sua cintura revestida precariamente de um vestido preto velho e surrado. Todo remendado, com as costuras a mostra sem nenhuma vergonha. Ela sentava tristonha na mesma cadeira, no balcão do mesmo bar. Ouvia ainda o mesmo sinozinho, porém o garoto das espinhas estava a frente da televisão mal sintonizada. Outro alguém, mais bonito, ficava na pia imunda, porém, hoje, enfeitada com uma flor branca de cinco pétalas. A mulher sorriu como se nunca mais tivesse sorrido. O tempo a levou embora. Resolveu pagar o copo de vinho e saiu a noite. Não havia ninguém naquele bar esquecido por qualquer deus. Não havia alma, não havia gratidão ou sorrisos homeopáticos naquele ambiente sujo, iluminado apenas pelo azulado da televisão mal sintonizada. Pobre garota! Andaria, pois, sem rumo qualquer? Sem norte qualquer? Abriu-se a porta e o sino tocou. Todos a olharam como se nunca estivesse ali antes. E ela olhou a todos. Saiu. Ao pisar na calçada viu que o vestido não a apertava mais, viu não havia remendos, viu que sua pele recuperou a juventude. Estava jovem. Passava a mão pelo rosto e pelo cabelo, pelo ventre e seus seios. Porém olhou para a vitrina do bar, e ali enxergou-se bela e dentro do bar viu-se a beber. Gorda, feia e mal vestida. Maltrapilha prostituta. Dane-se, garota! Viu-se olhar para si, de dentro do bar, fechou os olhos e, quando abriu, deu-se de cara com o bar fechado. Sem menino, sem televisão, sem ela. Sem ela. A porta estava selada precariamente por tábuas de madeira. Olhou ao seu redor. Viu na vitrina ainda jovem, porém alguém a olhava por detrás: Cícero. Ele tinha todos os rostos, todas as formas, ele tinha todos os olhos vastos de várias pradarias. Pegou-lhe a mão e saiu dali sem olha para trás.

E ela, esquecendo o bar, esquecendo a dor e o vinho quente de sua vida fútil, em Cícero, foi embora...

Valdemar Neto
Enviado por Valdemar Neto em 22/11/2009
Reeditado em 08/05/2010
Código do texto: T1938297
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