Lágrimas e Sangue

Uma família almoçava a mesa. Pai, mãe e filha. O pai tem aproximados quarenta anos e trabalha em comércio fornecendo conforto, abrigo e alimentos à família. A mãe não possui um trabalho, mas às vezes vende doces para alguns conhecidos. Prepara a comida, mantém a casa limpa e lava as roupas. A filha única é o elo do casal, a alegria da casa e traz graça e felicidade aplacando as piores brigas da família.

O que alguns dos familiares não faz idéia é que o pai rouba dinheiro dos compradores cobrando preços mais altos que o costume. Também chantageia outros amigos comerciantes quando descobre que algum deles possui algo de errado em seu passado que poderia influenciar no trabalho. Já a mãe trai o pai todo final de semana com um homem que conheceu enquanto vendia seus doces, além de já ter abortado um filho sem que o marido soubesse por achar que não conseguiriam criar outra criança.

A única realmente inocente e mais vítima de todos é a jovem garotinha que ama incondicionalmente os pais crendo que ambos são os ícones da bondade. Entretanto toda essa estrutura pseudo-familiar está para ser abalada por conta de um casal.

Vivien é uma ótima arqueira e nesse momento ela está mirando no ombro do pai da família. Ela solta a flecha e o atinge. Mãe e filha se assustam começando a gritar e chorar freneticamente. Firiel, amante de Vivien, corre até a casa e pula pela janela quebrando vidros já com suas duas adagas em mãos. Uma das lâminas pousa sobre o pescoço do pai da família e ele sorri maquiavelicamente. “Silêncio.”; é a única palavra que sai de sua boca.

Tanto mãe quanto filha se calam de espanto enquanto Firiel cortava pedaços da carne do almoço com sua outra adaga e os comia tranquilamente. Vivien entra pela porta alguns segundos depois com seu arco em mãos, os cabelos castanho-cobres não muito compridos estavam presos por uma fita vermelha. Ambos sorriem um para o outro e se beijam rapidamente.

A arqueira senta à mesa junto com a família e explica a todos que tudo que eles querem é ouvir a verdade. Esse é o trabalho do casal, o motivo de vida de ambos. “Destruímos a hipocrisia e revelamos as verdades sujas das pessoas.”; diz ela concluindo seus pensamentos.

“Só existe um meio de vocês saírem vivos...”; Vivien continuou. “...contem a verdade para sua filha.”. Depois pegou uma das flechas e ficou removendo as cutículas de algumas de suas unhas com a ponta dela.

“Estamos esperando.”; disse novamente ela começando a parecer impaciente. Firiel também não se mostrava muito contente com o silêncio dos outros e cansado daquilo fincou na mesa sua outra adaga que antes usara para cortar carne e passou a mão pelos seus cabelos loiros suspirando e dizendo friamente para os dois uma palavra contraditória à que disse anteriormente: “Falem.”; depois forçando um pouco a adaga no pescoço do homem, fazendo assim com que um leve filete de sangue começasse a escorrer.

A mulher não agüentou, começou a contar sobre o seu amante, um conhecido de seu marido, não exatamente um amigo, mas alguém com quem ele nunca pensaria que sua mulher deitaria. Algumas lágrimas ameaçaram escorrer da face dele, perguntou por que ela o traia. A mulher apenas respondeu que não sabia como explicar, que o amava, mas às vezes ficava entediada com o relacionamento de ambos e nunca tinha aproveitado sua juventude por ter engravidado e casado tão cedo.

Após perceber o que disse a mulher voltou seus olhos para sua filha, esta chorava com expressão de espanto sem saber como reagir, paralisada. Era nova, mas já tinha idade o suficiente para entender o significado da palavra “amante”, também começava a sentir certa culpa sobre a infelicidade de sua mãe.

“Não tem mais nada?”, Vivien perguntou normalmente como se aquela mulher fosse uma amiga íntima. Ela dizia intensamente que não, que aquilo era tudo, implorava com olhares pesados para que os libertassem e fossem embora. A arqueira apenas cruzou seus olhos azuis nos olhos verdes de seu companheiro como se ele já soubesse o que deveria fazer.

Firiel pegou na flecha cravada no ombro do homem e a afundou mais ainda em sua carne fazendo-o gritar de dor. O casal de sádicos não se preocupava com os gritos, aquela pequena casa era um pouco isolada da cidade por que a família gostava de tranqüilidade. Sua tranqüilidade cavou parte de seu túmulo.

A esposa, ao ver o marido sofrer, começou a gritar para que parassem e que contaria mais. Firiel parou de forçar a flecha e o marido começou a respirar ofegante, estava espantado não apenas com a situação, mas por saber que havia “mais” a ser contado. A mulher engoliu em seco. Hesitava a falar e as palavras saiam pausadamente, por fim disse sobre o filho abortado e tentou explicar que não tinham condições financeiras para uma outra criança.

O homem começou a chorar de tristeza, sempre quisera um filho homem, amava sua filha, mas sempre quis ter um casal. Sua mulher destruíra seus sonhos. Firiel se aproximara da esposa tranquilamente e olhava para o homem enquanto pousava uma das mãos no ombro dela. “Agora é sua vez...”; disse Vivien. “Conte-nos seus pecados...”.

A esposa olhou para o homem como se implorasse para que ele dissesse algo, até mesmo uma mentira, mas antes ele perguntou o que fariam com sua mulher. Firiel abraçou o pescoço da esposa depois se agachou passando a língua pelo pescoço dela e dizendo: “Imagine...”, enquanto sorria maliciosamente.

O homem fechou os olhos tentando afugentar tais pensamentos. Descobrir que sua mulher se deitava com outro já era drástico demais, agora se ela tivesse que ser violentada por um maldito psicopata não saberia se agüentaria sua própria existência. Começou a falar sobre seu trabalho e que roubava dinheiro de compradores cobrando preços mais altos que o normal. Usou como desculpa o fato de que a família precisava de dinheiro, que, tal como sua mulher falara, nem poderiam ter outro filho... Sentiu algo corroer sua garganta quando disse isso, pois apesar de problemas financeiros queria acima de tudo um menino.

“Pecados pequenos não servem... Última tentativa.”; a arqueira disse secamente e mais uma vez olhou para seu companheiro. Firiel forçou um beijo segurando a mulher pelos cabelos, depois largou a outra faca para apalpar os seios dela por dentro da roupa. A filha já estava em seu limite e tapou seus olhos com as pequenas mãos, mas ao perceber isso Vivien a pegou e botou em seu colo. Segurou-a pelos cabelos como fez seu companheiro com a mãe da menina e a obrigou a olhar. “Se você não vir tudo, não tem nenhuma graça...”, sussurrou ela no ouvido da criança. “Um dia você será uma meretriz como sua mãe e vai adorar se deitar com homens e mulheres que lhe joguem algumas migalhas.”

O marido estava exausto, mal conseguia impedir um desmaio, seu ombro estava muito dolorido e qualquer movimento era infernal. Sussurrou quase sem voz num tom de desânimo que contaria mais. Todos os olhares se voltaram para ele que disse que extorquia dinheiro de pessoas que sabia que possuíam segredos que atrapalhariam suas vidas comerciais ou familiares, toda família tem tais segredos.

Vivien sorriu satisfeita e disse amigavelmente para a garotinha enquanto lhe apertava a bochecha: “Parece que ninguém vai ter que abusar de você hoje queridinha... Que pena.”. A criança ao ter suas bochechas apertadas sentiu uma espécie de nojo e instintivamente mordeu a mão daquela odiosa mulher. Vivien deu um forte tapa na cabeça da garota que a fez soltar sua mão e sem reclamar a colocou de volta na cadeira onde antes estava.

Levantou-se e se aproximou do homem pegando a flecha que antes usara para remover suas cutículas, olhou para Firiel e perguntou: “Qual o veredicto?”. Ele apenas respondeu com uma expressão maligna em sua face enquanto pegava de volta a adaga: “Culpados...”. Ambos começaram a cortar a pele de suas vítimas várias vezes, lentamente. Torturando-os cada vez mais e com maior intensidade.

A filha não compreendia o que aqueles dois queriam dela. Não tinha nenhum pecado que pudesse contar, era muito nova. Seus pais agonizavam e pediam clemência para seus carrascos, mas eles apenas ignoravam com ares de satisfação. Certo momento a garota gritou perguntando o que eles queriam dela. O loiro sádico parou de torturar seu pai e respondeu: “Queremos um pedaço de você.”; ele lhe jogou uma de suas adagas e disse novamente: “Arranque um de seus dedos e dê para nossa coleção, então iremos embora. Ande... Sei que você consegue. Arranque o dedo mínimo, você não usará ele para nada em toda sua vida.”

Ela olhou para a adaga indecisa, receosa. Com suas mãos trêmulas a pegou, colocou a lâmina sobre seu dedo mínimo direito. Era canhota. Com uma expressão séria em face hesitou. Pensou em seus pais e como os amava. Todos estavam quietos esperando a sua decisão. “Faça rápido, vai doer menos.”; disse Firiel naturalmente. Aproximou mais a lâmina da pele e sentiu como ela era afiada. Teve vontades de chorar novamente, mas engoliu o choro e o fez. Amputara seu dedo.

A criança caíra deitada no chão segurando a própria mão agonizando de dor. Tanto Firiel quanto Vivien guardaram suas armas e os pais da criança correram na direção de sua prole para ajudá-la e protegê-la. O jovem loiro se aproximou deles, não se importando com os pais, apenas chegando perto do ouvido da filha e sussurrando: “Continue assim e torne-se uma mulher bondosa, senão nós voltaremos para te pegar e não seremos tão piedosos.”; passou a língua pela bochecha dela, pegou o dedo amputado da menina em cima da mesa e saiu foi embora abraçado com sua companheira.

Minutos depois e já a certa distância da casa Vivien perguntara para seu amante: “Será que ela virá atrás de nós quando ficar mais velha?”, ao que Firiel respondeu com um sorriso: “Espero que sim, adoro matar pessoas vingativas, você sabe.”. Depois se beijaram como dois apaixonados. A atitude atual deles descondizia plenamente de quem eles realmente eram. As marcas de sangue em suas roupas pareciam uma ofensa a suas atuais personalidades, se comportavam como um casal extremamente pacífico.

Passaram por uma carroça cheia de tralhas carregada por um velho cavalo com um condutor que era tão velho quanto o animal. Este os viu de longe e sorriu para eles acenando com formalidade, sendo retribuído amigavelmente. Quando a carruagem chegou perto do casal o velho estranhou as manchas de sangue, mas pensou que talvez eles tivessem se metido em problemas sem querer, pois ambos sorriam tão serenamente que era impossível de acreditar que teriam provocado voluntariamente aquelas manchas. Passou direto sem se importar com aquilo.

“Hoje foi um ótimo dia, nos divertimos bastante.”; Firiel se voltou para sua companheira. “Estou com um pouco de sono, ontem à noite ficamos até tarde com aquela outra família.”; sussurrou Vivien o abraçando e beijando-lhe o pescoço. “Então vamos tirar um cochilo...”; concluiu ele sorrindo.

Ambos saíram da estrada e se dirigiram para o meio da floresta procurando por algum local agradável onde pudessem ficar sossegados. Após alguns minutos de caminhada encontraram uma pequena colina boa para um descanso. Ele deitou primeiro, ela deitou em seguida por cima dele sendo envolvida pelos braços de seu amado. Ambos fecharam os olhos e cochilaram por algumas horas.

Quando acordaram já estava entardecendo e o céu parecia uma pintura de tons alaranjados que lembravam o outono. Sussurros próximos despertaram os ouvidos aguçados de ambos. Vivien foi a primeira a levantar-se ficando sentada e avistou ao longe outro casal, porém eles pareciam mais íntimos e apaixonados. “Veja isso querido, dois pombinhos...”; ela disse para o jovem loiro que também se ergueu sentando ao lado dela.

A mulher possuía ares maduros apesar da aparência jovem. Tinha cabelos longos e ondulados, eram de um loiro sem vida que combinavam com seus olhos amarelos, porém estes mais vivos que seu cabelo. Sua pele era pálida e até seus lábios pareciam ser ausentes de vida, quase azulados. Uma cicatriz estranha em seu pescoço chamava atenção de longe. Já o homem parecia ser mais jovem e passava uma expressão de intelectual. Seus cabelos bagunçados cobriam parte do rosto não deixando clara a cor de seus olhos, que pareciam escuros. Não tinha barba.

Os dois andavam de mãos dadas como eternos adolescentes apaixonados. Sussurravam coisas inentendíveis e sorriam um para o outro quase todo o tempo. Pararam em meio à floresta e ele sentou ao pé do tronco de uma árvore, depois ela sentou também se aconchegando entre as pernas dele, ambos casualmente virados para o casal de observadores. Ficaram ali sentados em silêncio por um longo tempo apenas trocando sutis carícias, com os dedos dele se entrelaçando e desentrelaçando nos de sua amada e a bochecha dela num leve roçar carinhoso contra a bochecha do outro.

O casal de observadores invejou profundamente o casal de observados. Vivien se levantou e pegou o arco, preparou uma flecha e sussurrou: “Odeio eles, quero que morram...”. Firiel levantou-se também se aproximando de sua amada abraçando-a por trás e segurando as mãos dela na mesma posição em que ela segurava o arco. “Quero matá-los com você. Ninguém nesse mundo pode amar uma mulher mais do que eu te amo.”; disse ele numa carinhosa malícia voluptuosa.

A arqueira mirou com precisão o peito do casal observado, fechou os olhos ao sentir os lábios de seu amante beijando seu pescoço e soltou a flecha, esta atravessou o peito do outro casal com precisão. Entretanto tudo que eles fizeram foi dar uma profunda troca de olhares seguida de um beijo apaixonado, morrendo assim em meio ao beijo. Sem lágrimas, nem dor.

O casal de assassinos, ao ver tal cena, não pôde compreender o que aconteceu e quando olharam um para o outro numa esperança de que talvez um deles pudesse explicar aquilo perceberam que ambos estavam chorando. Sentiam um grande pesar, sentiam que cometeram o maior dos pecados possíveis no mundo. Não conseguiam entender esse misto de culpa e angústia.

“O que fizemos?”; Firiel perguntara para a arqueira, mas esta não soube formular nem ao menos um esboço de resposta, principalmente por ter a mesma dúvida em mente. Um extremo arrependimento começou a corroê-los por todas as vidas que tiraram, toda a dor que causaram, todo o mal provocado. Firiel chegou a pegar o dedo amputado que havia guardado em meio a suas roupas e olhar com escárnio para ele, o jogando em seguida no meio da floresta. Abraçaram-se instintivamente com medo do que estava acontecendo com eles, daquela mudança repentina de personalidade. Ficaram ali parados até o alvorecer seguinte julgando todos os atos de sua vida em silêncio. Quando finalmente saíram daquele estranho transe nunca mais se ouviu falar do casal de sádicos que perturbou e destruiu a vida de incontáveis famílias.

Os bardos ainda contam a história do casal mais apaixonado que já vivera e que fora morto, sem sentir dor, no tronco de uma árvore com uma flechada enquanto se beijavam. Dizem as lendas bárdicas que a flecha continua até hoje cravada na árvore e ninguém consegue removê-la, nem a árvore nunca mais envelheceu. A arma que tirou a vida do casal e a árvore que acolheu a morte do mesmo foram ambos eternizados pelo imenso sentimento que ali havia perecido.

Décadas mais tarde Firiel e Vivien, depois de arrependidos de suas vidas de assassinatos, moraram isolados numa cabana, às vezes ajudando alguns transeuntes numa tentativa de aplacar toda a culpa que os corroia. Um dia qualquer uma mulher de longos cabelos negros cacheados, carregando ódio nos olhos escuros e sem o dedo mínimo direito apareceu invadindo a cabana deles para tirar-lhes a vida como preço por lhe terem tirado a inocência. Os dois aceitaram a morte sem questionar.