Quando anjos morrem...

Em meio ao Nada que surgiu antes da criação uma entidade solitária lamenta a perda da vida de um ser que Ele considera como Sua mais preciosa filha. Apesar de onipotente, onipresente e onisciente, regras que Ele mesmo criou impendem que interfira na vida mortal. A quebra dessas regras culminaria na ira de Seus filhos, os deuses.

O Nada é um plano de existência inacessível para qualquer outro ser sem a permissão Dele. Lá existe apenas Sua essência divina. Não há teto, nem chão, não há céu, nem mar... a não ser que Ele queira que haja quaisquer dessas coisas.

Ele não possui um nome por que possui muitos nomes e não poderia escolher entre qualquer um em específico. Da mesma maneira, não possui forma por poder assumir qualquer forma que desejar. Nesse momento Ele tem a aparência de um homem de longos cabelos ondulados não usando nenhuma roupa por simplesmente não conhecer o significado da vergonha, porém Seu corpo aparentemente masculino não possui sexo. Seus olhos sempre são completamente negros e parecem refletir um céu de infinitas estrelas. Suas pernas estão cruzadas em posição de lótus no meio do Nada. Ele abre uma de Suas mãos com expressão de cansaço no rosto e da palma da mão uma estranha luz vermelha intensa brilha. Ele a admira de tão bela.

“Eu lutei contra os deuses e até contra forças desconhecidas por mim para poder lhe dar uma vida feliz. Uma dessas forças é o destino, a outra um estranho amor mortal que nunca havia presenciado.”; Sua voz ecoa por todo o Nada, mas Seus lábios não se movem em nenhum momento. “Os atos desse mortal distorceram as linhas do destino que tentei modelar para ti...”; Ele abriu a outra mão e dela uma luz azul-marinha um tanto bruxuleante tremeluzia, Seus olhos a admiravam, mas também a odiavam. “Entendo por que o escolheu, é um ser intrigante que possui características raras em mortais, mas o estranho amor obcecado que ele alimentou por você trouxe ambos para minha morada. Agora estão mortos. Que fazer? Ainda quero dar-lhe vida, você ainda não aproveitou o suficiente da mortalidade.”

Ele apenas olhou para frente e um corpo feminino materializou-se. Um ato simples para um criador de mundos. Estendeu os dedos da mão que segurava a essência vermelha intensa liberando-a e essa flutuou indo até o corpo e alojando-se nele. “Sei que você poderia ter vidas humanas masculinas ou até de animais, mas sua essência é tão bela que não consigo pensar em corpo melhor que o de uma mulher para te guardar.”; Ele sorriu e o corpo sumira. “Dessa vez você nascerá em um lugar onde provavelmente nunca mais encontrará com aquele que guardará essa essência fria que tanto cruzou caminhos com a sua essência. Será habitante das tribos nômades do Mar de Areia, o maior deserto existente que ninguém nunca conseguiu cruzar. Apesar de parecer um lugar terrível para se viver descobrirá que o deserto possui belezas desconhecidas por muitos”.

Essa era a última vez que poderia interferir no destino daquela essência rubra que Ele cultivou com tanto carinho. Um último ato de amor paternal. Sabia que agora era tarde, os deuses não tolerariam essa última ofensa e o procurariam para puni-lo por Seus atos irresponsáveis, mas antes de ser punido sentia que deveria punir alguém.

Estendeu dessa vez os dedos da mão que segurava a essência azulada, essa depois de liberta não procurou um corpo, flutuou por segundos no ar e tomou uma tonalidade acinzentada antes de desaparecer por completo.

“Sua obsessão foi tão grande que deu sua vida por ela. Reencarnou em uma nova vida e a terrível inconstância do destino o fez ficar próximo dela sobrepujando o caminho que os deuses traçaram para ti. Por fim morrera com ela em seus braços, mas dessa vez ambos pereceram felizes. Mesmo assim não posso perdoar-te, se você não tivesse retornado ou recobrado sua memória ela poderia ainda estar viva.”; apesar da ira a entidade falava tranquilamente. “Adoraria dar-lhe a punição que merece, mas seu destino já será uma ótima punição. Por ter morrido dando as costas para suas obrigações celestes deverá pagar uma eterna penitência como um ser amaldiçoado que não possui sentimentos e vive para sorver a essência de outros por não possuir essência própria. São devoradores de almas, espectros sem vida, ceifadores... Nunca se lembrará de nada de suas vidas passadas, nem o destino poderá contra isso e nunca amará ninguém, nem mesmo ela.”

Abriu novamente uma de Suas mãos e um grosso cordão com um pingente que possuía três vês cravados se materializou nela. “Esse pequeno objeto ficará comigo. Não quero correr riscos de que pelo simples fato de um de vocês olharem para isso haja a possibilidade de recobrarem as lembranças de suas sôfregas vidas passadas. Tomarei as providências possíveis para que meu precioso anjo não sofra mais.”; suspirou enfim crendo que não havia mais nada a ser feito.

Ele estava cansado, deixaria tudo nas mãos do destino. A força desconhecida que nem mesmo Ele, o mais poderoso dos seres, podia compreender.

Repentinamente sentiu a presença de uma de suas filhas surgir, era a deusa dos ventos. Esta se manifestou tomando a forma de um enorme pássaro de plumagem roxa. Ele se ergueu ficando frente ao pássaro que disse em suaves sussurros femininos: “Pai, cometeu atos que contrariam suas próprias palavras e moveu as cordas do destino abalando forças que todos nós, incluindo você, julgamos serem desconhecidas e possivelmente ameaçadoras para nossa existência, por isso nós seus filhos...”; mas Ele a interrompeu com Sua onipresente voz tranqüila: “Eu já sei. Diga para seus irmãos e irmãs que vou embora. Isolar-me-ei em um local do plano material e lacrarei minha essência divina para que nem vocês possam me encontrar e nem eu possa mais fazer nada prejudicial para qualquer outra vida, mortal ou imortal... Quando for necessário eu retornarei.”.

A grande ave apenas respondeu: “Compreendo, então até mais tarde pai.”; e numa lufada de vento desaparecera O deixando sozinho como sempre foi antes Dele ter criado a existência.

“De que adianta todo esse poder se até nós – deuses – sucumbimos perante as rédeas do destino?”; pensou consigo, mas afugentou os pensamentos e também desaparecera. Agora o Nada era mais uma vez plenamente nada.