Armada dos Querubins III - Queixas Noturnas

Um pequeno conto sobre um anjo gótico e um suicida.

Queixas Noturnas

Zenbiel acompanhou o adolescente até o alto do prédio. Subiram as escadas juntos, andando com passos pesados. Ele sempre andava daquela maneira, como se estivesse sempre caminhando para a morte. Já o moço, estava o fazendo literalmente. Seguiam cabisbaixos, com ares de que estavam cansados da vida. Era bom realçar que também estavam fartos da solidão, por mais que andassem no meio de tanta gente e vivessem em uma cidade com milhões de habitantes.

O jovem já tinha marcas nos pulsos, de quando tentara se livrar dos problemas da maneira mais rápida. Foram tempos ruins que na verdade nunca acabaram, mas se mantinha sempre ali, no canto dos olhos, preparando-se para atormentá-lo. Ele dormia e sonhava com aquelas dificuldades e odiava o fato de que queria ter alguém para ajudá-lo nisso. Não conseguia conviver com os sentimentos que seu coração criava para rebater as ofensas do mundo. Tudo parecia um mar de desilusão e, no entanto, o maldito coração ainda pedia pelo toque alheio. Ele batia no peito e dizia:

- Pára, seu desgraçado! – Era uma ordem tanto literal quanto uma conversa metafórica com o órgão que cuidaria de seus sentimentos.

Continuou a subida com a decisão certa na mente. Daquela noite não passaria. Estava certo que sim. O anjo a seu lado estava ali justamente para testemunhar o quanto ele odiava qualquer divindade e ver o que os filhos pensavam daquele pai celestial que só lhes oferecia uma mão pesada e uma indiferença assustadora.

- Você vai ver hoje – disse o jovem.

Zenbiel levantou a cabeça, pensando que fosse com ele. Talvez fosse, mas se não fosse também não havia problema. Estava satisfeito com o silêncio da noite o acalmando e as sombras da escadaria o abraçando. De longos cabelos negros e face pálida, o Querubim tinha um ar pesado. O rosto só era capaz de apresentar sorrisos amarelados a partir de lábios pálidos, de tom meio arroxeado. Os olhos azuis quase desapareciam no meio da maquiagem negra. O piercing no nariz estava ligado a um brinco por uma corrente de prata.

Vestia apenas roupas de couro negro. Adorava sobretudos, coturnos lustrados e uma boa blusa de flanela. Bom... A flanela era sem motivo, porém o restante era para combinar com seu baixo astral.

Ao alcançarem o terraço, o som de carros e buzinas tocou seus ouvidos. Zenbiel olhou a cidade iluminada e bem que quis que todas as luzes estivessem apagadas e que o silêncio imperasse. Se algum som escapasse do domínio da Dama Obscura do Silêncio, sua musa, seria apenas o de sussurros carinhosos da escuridão divina. Escuridão divina era com certeza uma heresia que ele tinha que manter em segredo e que estava exposta apenas no desânimo de seu rosto.

Olhou o jovem subir no parapeito e preparar-se para pular. Ele o olhou e Zenbiel fez cara de quem estava esperando as coisas acontecerem. Tinha um tédio tão grande que mordeu o dedo para ver se uma sensação melhor o despertava daquele momento inacabável.

- Não vai tentar me impedir? – perguntou o jovem, olhando lá para baixo.

Zenbiel sabia que ele não perguntava por medo ou para protelar. Podia sentir no coração do garoto que ele realmente pularia. Deu de ombros.

- Eu não...

- Que anjo, você, hein? Vai me deixar retirar minha própria vida...

- Eu? E desde quando eu sou lá seu anjo da guarda para ficar protegendo sua vida? Deixa de ser presunçoso. Eu sou apenas testemunha. Não era isso que você precisava?

O garoto franziu o cenho e encarou o Querubim.

- Então onde está um anjo digno para ver isso?

- Tem um monte aí... – respondeu Zenbiel, olhando para a cidade em volta.

- E meu anjo da guarda?

- Você não tem. Francamente, você deve se achar importante demais... Você não tem anjo da guarda... Meu Deus... Que ilusão... Daqui a pouco vai me dizer que você acredita naqueles horários para que seu anjo cabalístico passe para te fazer uma visita – ironizou Zenbiel, com um tom amargo.

- É assim que Deus ama seus filhos, deixando um deles sofrer e se matar?

O querubim soltou o ar entediado como quem diz: “Que garoto chato!”.

- Francamente – ele adorava começar as frases com francamente – O Cara tem 6 bilhões de filhos. Que que importa perder um ou outro? Além do mais... você não é nem o mais velho nem o caçula. Desde quando alguém se importa com o filho do meio?

O garoto não gostou daquela observação. Era um daqueles preconceitos que ele amargara por muito tempo, mesmo sabendo que seus pais na verdade gostavam dele e ele não contribuía para ver isso.

- Ele deveria amar todos da mesma maneira.

- É mesmo... Talvez ame – falou o anjo.

- Se ama, por que não manda um anjo me impedir?

Zenbiel soltou uma risada irônica e ácida.

- Francamente... O problema é seu se você quer pular. Já ouviu falar de livre arbítrio? Deus te deu isso para você cuidar de si mesmo...

- Você está é fazendo psicologia reversa.

- Não... não estou... Que saco... Já falei que estou aqui só de testemunha. Se quiser pode pular para comprovar... Eu sou a testemunha das desgraças da humanidade.

- Mesmo? Deus realmente cria muitas desgraças na humanidade...

- Olha, não vou defendê-lo nessa não. Ele realmente tem a mão bem pesada na hora de distribuir uns tabefes. Cara, vai ler a Bíblia que você vê isso. Que droga... Lá tem tudo quanto é pancadaria e sangue escorrendo.

- Você é um anjo bem imprestável. Tem certeza de que não Caiu?

- Não... Se caí, ainda não me avisaram. Não sei bem como isso funciona... Sei lá se tem aviso prévio para essa demissão ou se eles te enviam uma carta para avisar que a Inquisição Celestial vai te dar umas pancadas e você via ficar eternamente queimando no Deserto de Dudael... Sei lá – Olhou para a Lua como quem olha para o relógio. – Pelas musas... Você vai pular ou não? Tenho mais uns suicídios para assistir hoje... Uns cemitérios para visitar... E tem um ótimo Tronos cantando no Cemitério essa noite.

- Eu aqui morrendo e os anjos se divertindo.

- Pois é...Acha que o mundo vai parar por sua causa?

Zenbiel se aproximou do parapeito e olhou para a rua lá embaixo. Eram doze andares. Morte na certa. O garoto sem dúvida alcançaria velocidade terminal após uns cinco andares. Esquecera como era a conta. Depois perguntaria a um anjo da morte.

- Mesmo... E esse mundo é uma droga... Acho que essa Bíblia sua ajudou a piorar tudo.

Observou Zenbiel levantar a mão e cumprimentar as sombras do outro lado do prédio.

- Quem você está cumprimentando?

- Um demônio da morte ali do outro lado. Conhecido meu. Também tem uns anjos andando ali.

- Você conhece demônios? E aquele papo de guerra entre o Céu e o Inferno?

O Querubim soltou o ar mais uma vez.

- Que saco... Olha, essa história é muuuuuuito complicada. E a gente num fica se engalfinhando toda hora não. O mundo não é esse preto no branco não, cara. Você por acaso já leu a Bíblia mesmo? Olha, você tira o que quer daquele livro. Se você quer pegar só a parte barra pesada, então pega, mas tem coisa boa, palavras bonitas lá... O povo é que costuma pegar o pior. Bom... e tem gente que só pega coisa boa... Mas é um meio termo. Deus é um pai barra-pesada mesmo. Enche a paciência dele que ele realmente te dá umas pancadas. O problema de vocês mortais é essa maldita psicologia moderna, em que não se pode nem encostar nos filhos que já é uma agressão. Aí vem essa choradeira. Poxa, o cara é da velha guarda.

O jovem ficou olhando para o outro lado do edifício, tentando enxergar o demônio.

- Você não vai conseguir vê-lo. Ele só vai vir aqui para pegar sua alma.

- Por quê?

Zenbiel passou a mão no rosto.

- Por quê?! Você ainda pergunta? Está escrito em letras garrafais que você vai pro Inferno se se suicidar.

- E ninguém vai impedir o demônio?

- Não, demônios e anjos da morte têm passe livre na guerra para pegar as almas devidas a um lugar ou ao outro. Só vão dar umas pancadas nele se ele ousar caçar briga. Lógico que sempre tem umas provocações para ver se a briga surge. Volta e meia aparece um julgamento por causa desses pontos cinzas nas leis.

O Querubim retirou um livro de poesias de Augusto dos Anjos de dentro do bolso. Releria pela octogésima vez o livro. Já agradava do autor simplesmente pelo nome.

- Avisa antes de pular.

- Quê?

- Para eu não perder o testemunho – disse, sem retirar os olhos do livro.

- Esse mundo não é justo...

- E desde quando tem que ser? – perguntou Zenbiel, irritado por nem poder ler o livro em paz.

- Não dizem que seu Deus é a justiça e o amor?

- Não.. bobeira da humanidade. Ele é um ditador. Vive bem no esquema ame-o ou deixei-o. Entendeu? Claro... Tô simplificando, mas é quase assim. Ele te ama também, mas oferece esse caminho de viver nas leis dele e pronto. E até que as leis são legais, não são não?

- O quê? Aquele monte de lei e...

- Não... To falando só das 10. O resto é picuinha da humanidade. Sabe... uma amiga minha com certeza já teria te dado umas pancadas e depois te empurrado. Ainda bem que ela não cuida dessas coisas.

Voltou a ler.

- Anjos podem mentir?

- Não... mas confesso que às vezes enxergam os fatos de maneira diferente.

O jovem olhou para baixo, depois para o outro prédio. Finalmente, desceu do parapeito. O rosto estava frio por causa do vento que batera ostensivamente.

- Não vale a pena.

- Beleza então. Falou... – despediu-se Zenbiel, apenas levantando a mão despreocupadamente. Não retirou os olhos do livro. O sinal indicava que o jovem deveria ir embora logo porque estava incomodando. Fora isso, não faria diferença.

E ele foi. Quando abriu a porta para a escadaria, já não se lembrava mais do Querubim, porém tinha novas decisões a tomar sobre a vida.

Zenbiel ouviu o barulho de asas. Olhou para o lado para ver um menino de uns dez anos rindo. Uma jovem linda sentou-se no parapeito. Estava meio virada, fazendo um sinal obsceno para o demônio da morte do outro lado.

- Esse Crocrum é um idiota... Demônio tosco – comentou Chanelein.

- É um verme bastardo – disse Irahd, ainda sorrindo.

Zenbiel fechou o livro e olhou para cima. Realmente não era naquela noite que releria as poesias. Então recitou para os dois:

“Asa de corvos carniceiros, asa

De mau agouro que, nos doze meses,

Cobre às vezes o espaço e cobre ás vezes

O telhado de nossa própria casa...

Perseguido por todos os reveses,

É meu destino viver junto a essa asa,

Como a cinza que vive junto á brasa”

- Credo.. Que falta de educação, Zen... – comentou Irahd, cruzando os braços. – Mas tá tudo jóia. Vamos?

- Jóia, porra nenhuma! Vai te fuder, Zenbiel. Vai à merda. Vai ver o dia que eu te der umas pancadas... de novo!

Zenbiel virou-se para ela e suspirou irritado de novo. Abriu o par de asas negras e alçou vôo. Os dois o seguiram. Ele tinha mais trabalho a fazer e não era impedir suicídios... apenas presenciá-los por um motivo que ele não entendia. Provavelmente era por isso que ainda estava nessa missão.