A um jogo do destino

Mais um dia entediante na Terra.

Gritos. Olhares ansiosos. Sorrisos falsos. Risadas. Buzinas.

As ruas já não eram mais as mesmas de anos atrás, onde as crianças nelas podiam brincar livremente, sem se preocupar com tiros, janelas, ou cintos de segurança. Sem se preocupar com seqüestro, ou assalto. Sem se preocupar com ladrão.

Sem se preocupar com polícia!

E então, simplesmente, tudo parou. Sem gritos, sem risos. Sem movimentos.

Nada.

As nuvens se acenderam e um facho de luz tocou o solo. Imediatamente, o chão foi engolido pelas chamas, partindo do ponto onde a luz o encontrou.

O feixe, então, se expandiu, enquanto um brilho descia por ele.

O fogo começou a voltar, perdendo seu raio de devastação. Conforme voltava, uma coluna flamejante ia se formando, ao mesmo tempo em que a luz afinava.

O feixe formava uma figura humana ao passo que diminuía. Uma mulher de cabelos loiros e cacheados e olhos azuis se mostrou.

A coluna pareceu absorver o fogo, e brilhou intensamente antes de mostrar uma mulher de cabelos cacheados e negros, assim como os olhos.

Uma vestia um vestido amarelo, longo e justo até a cintura, tornando-se folgado nas pernas. A outra usava uma camiseta, calça e botas brancas e justas.

Ambas sorriam. Aproximaram-se e se cumprimentaram com um abraço e um beijo de cada lado da face.

- Você não muda nada, hein, Lú? – disse a loira. – Gosta de um decote. Nunca vi igual.

- Branco sempre combinou comigo, Dê. – respondeu a morena. – E esse vestido amarelo realça seus cabelos lindos. Boa escolha.

As duas andaram até o meio da rua, onde surgia, do chão, duas cadeiras e uma mesa com um tabuleiro com as peças de xadrez prontas em seu lugar.

Elas pararam antes de sentarem.

- Quem é as brancas? – perguntou Éden.

- Bem, você ganhou da ultima vez. – lembrou Lúcifer. – Então você começa.

- Tudo bem.

Ambas se sentaram em seus lugares.

- E então? – começou a loira, movendo um peão. – Como estão as coisas?

- Nada de novo. – respondeu ela, movendo um peão. – De vez em quando aparecem umas figuras lá que eu tenho que visitar. Às vezes sinto pena dos pobres coitados. Sabe, a pior experiência de alguns me dá calafrios. E olha que eu já vi de tudo!

- É... Mas o que eu posso fazer? – ela conversava, sem parar de jogar. – Eles escolheram os caminhos deles. Não venha tentar me convencer do contrário, Lú. Você sabe que é verdade.

- Pode ser... – ela replicava, sem interromper o jogo. – Mas pelo que eu vejo, Dê, aquelas pessoas sofreram muito. E isso acaba influenciando nas escolhas de alguma forma.

- Talvez, mas eles também tiveram boas experiências, que, por sinal, não souberam aproveitar.

- Ou não tiveram a chance...

- Olha, Lú. Não tente macular meu espaço com impuros, ok? Eu sei o que faço.

- Claro que sabe... Tanto é que tem uma mente brilhante lá em cima dizendo que um grupo de bruxos pode trazer o caos mundial. Aqui, olha. Perdeu uma torre.

- Não critique meus representantes, Lúcifer. Eles são mais sábios que os seus.

- Sem dúvida alguma. Eles não erram, não é?

- Erram. Todos erram. Mas nós conseguimos concertar nossos erros.

- Se você diz, quem sou eu para dizer o contrário?

- E além do mais, meu nome é cantado em todo o mundo, das mais diversas formas de culto. E quanto a você? Opa, deixou um cavalo dando sopa.

- Boa... Pelo menos eu não preciso ser fragmentado para ser conhecido... – ela olhou a outra nos olhos. – E meu cavalo não estava dando sopa. – com a rainha, tirou o bispo de Éden do jogo. – Vamos mudar de assunto? Esse está ficando meio perigoso.

- Como quiser.

- O que você acha desse pessoal de hoje?

- Não entendi.

- Eu acho que eles estão ficando mais rápidos.

- Mais burros, você quer dizer?

- Por que “burros”?

- Oras, eles estão perdendo os escrúpulos. Se visualizam um objetivo, não importa quem esteja no caminho, é pisoteado. Onde já se viu isso?

- Isso é a ordem natural das coisas, Dê.

- Natural? – Éden olhou a outra. – Como pode dizer isso? Filhos que matam pais por dinheiro; crianças arrastadas e baleadas por descuido e descaso das autoridades; o bem acima da vida! Como pode chamar isso de natural?

Lúcifer ergueu as mãos.

- Calma, Dê. Limpe o céu. Só estou dizendo que isso, uma hora, ia acontecer. Crescimento descontrolado das pessoas. Diminuição da comida. Muito dela é jogada no lixo, sim, o que ajuda nisso. Os homens substituindo os da mesma espécie por máquinas para fazer seu trabalho, visando nada menos que o lucro. Com mais gente e menos emprego, isso tinha que acontecer.

- Não é bem assim, Lú. – disse, enquanto voltavam ao jogo. E quanto aos princípios? Família, felicidade, união, aprendizado, paz, harmonia? Onde é que eles estão?

- Nem tudo está perdido. O aprendizado ainda continua.

- Mas com que função? A de subir na vida e ser melhor que outro? A de criar algo capaz de destruir o mundo sete vezes para impor respeito? Respeito de quem?

- Bem, o meu eles ganham... Se não usarem.

- Você está ficando sentimental com o tempo, Lú?

- Não diria sentimental... Se eles todos morressem de uma vez... O que eu ganho de novo? Com todo mundo morto, eu não vou ter mais aqueles arrepios de vida miserável, nem a pena prazerosa das almas. Não... Prefiro ficar na ansiedade e expectativa.

Éden riu.

- Você não muda, mesmo.

- Pra quê? Todo mundo me conhece assim, se mudar, acaba com meu charme. – ela piscou para a adversária.

- Bem, se você se acha tão esperta, acha que conseguiria acabar com isso?

- Há! Sem problema nenhum. Agora, já não posso dizer o mesmo de você.

- Não se preocupe. Tudo o que preciso é da TV, e dois meses para conscientizar as pessoas e acabar com isso. – disse Éden, enquanto tirava a rainha da outra do combate. – E você?

- E eu só preciso de um botão e três minutos para acabar com tudo isso. Para sempre. – replicou Lúcifer. – Xeque mate.

- Mas e os arrepios?

- Acho que posso esperar mais alguns bilhões de anos deles para senti-los de novo.

Éden olhou o jogo e sorriu.

- Você me pegou nessa, Lú.

- Você nunca aprende, Dê. Seu bispo fica sempre vulnerável. A torre nunca o protege.

- É, tenho que me lembrar disso na próxima vez.

- Não se preocupe, só farei com que sintam um pouco do próprio veneno. Fazer com que sigam com esse caminho até que tomem consciência de que esse tipo de pensamento só os destruirá. Não vou torturar muito dos pequeninos.

- E nem teria tempo. – sorria Éden. – Nosso próximo jogo é amanhã.

- Das duas últimas vezes que disse isso, tivemos o Idade das Trevas, e o Absolutismo. – Lúcifer também sorria.

- É verdade... Bem, eu ganharei na próxima de qualquer forma. – Éden deu de ombros.

- Bem, eu realmente espero que sim. Para o bem deles.

E, como luz, ambos voltaram às nuvens.

E os gritos, às gargantas.

Jowjow
Enviado por Jowjow em 18/12/2009
Reeditado em 16/01/2010
Código do texto: T1983907
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