O DIA DAS BATATAS

Ernani Maller

Era muito estranha a loja do Seu Belarmindo, pois media um metro e meio de frente, por trinta metros de fundo. Na verdade um imenso corredor, no qual, Seu Belarmindo transitava ao meio, tendo os lados entulhados de mercadorias. Ali se encontrava de tudo, mantimentos, roupas, eletrodomésticos, remédios, brinquedos, fumo de rolo, ratos, material para construção, enfim a loja era um verdadeiro tudo em um, tudo em um corredor, para ser mais exato.

Mas a desproporção nas medidas da loja tinha uma explicação, onde hoje está estabelecido o Seu Belarmindo, outrora fora uma servidão que levava a várias casas, que foram desapropriadas para dar lugar a uma estrada de ferro. Seu Belarmindo que sempre foi dado ao comércio, se instalou na entrada da servidão, agora sem serventia, com uma carrocinha de pipocas, pois o local era bastante adequado, por ficar próximo a duas escolas primárias.

O negócio das pipocas ia bem, mas de vez em quando alguém pedia um refrigerante, afinal, pipoca salgada da sede, Seu Berlamindo resolveu o problema com um isopor e algumas pedras de gelo. Uma ou outra criança procurava por doce, então Seu Belarmindo arranjou uma pequena vitrine e passou a oferecer também doces. E por que não salgados? Sim, Seu Belarmindo passou a vender também salgados variados, à freguesia que aumentava dia a dia, e tinha que estar sempre satisfeita.

Em um dia de chuva Seu Belarmindo se viu em dificuldades, porém, Zé Meia Colher, pedreiro conhecido pelos maus serviços prestados à comunidade, lhe emprestou algumas telhas de amianto, sobra da ultima demolição que lhe foi confiada, com as quais Seu Belarmindo cobriu a carrocinha, o isopor e a pequena vitrine dos salgados. Ele, contudo, ficou no desconforto daquela chuva fina e fria, que lhe doía até os ossos. No dia seguinte providenciou mais algumas telhas, afinal, como ele dizia: _ “Não tenho horta nas costas”, portanto, não preciso ficar sendo regado por está garoa dos infernos dia inteiro.

E assim, com a omissão do poder público, que não fiscalizava a invasão do imóvel e nem o comércio que funcionava sem a devida regulamentação, Seu Belarmindo foi expandindo e “melhorando” suas instalações, até tomar conta de toda a servidão.

Apesar do dom para o comércio, Seu Belarmindo não era um nenhum primor em matéria de organização, por exemplo: Mantinha no fundo da extensa loja, os produtos que eram mais vendidos, o que o obrigava a percorrer o longo caminho (trinta metros pra ir e trinta pra voltar) por várias vezes, para atender as solicitações de um mesmo cliente.

Certo dia, em que Seu Belarmindo estava muito nervoso, devido a problemas conjugais, pois a esposa, trinta anos mais nova que ele, havia viajado para visitar a família e já devia estar de volta há vários dias, mas nem notícia deu. Também os problemas financeiros o atormentavam, o número de fiados era cada vez maior e a inadimplência nunca havia sido tão grande. Justamente nesse dia que aconteceu na cidade de Bom Jesus do Sul, “O dia das batatas”.

Seu Belarmindo sempre teve um grande estoque deste produto, pois segundo ele: ¬_ Tendo batata em casa a gente não passa fome, faz-se um purê de batata, batata frita, batata cozida, doce de batata, pão de batata, salada de batata, batata murro, batata recheada, batata sotê, conserva batata,. _ E seguia uma extensa lista, de dar “água na boca de beduíno”.

Naquele fatídico doze de maio, nem bem abriu a loja, chegou seu Baltazar. Senhor de setenta e cinco anos, criou todos os oito filhos vendendo sorvete pelas ruas, praças e praias da cidade, era considerado pelos colegas de classe o maior sorveteiro de Bom Jesus do Sul, realmente, um grande sorveteiro.

_ Bom dia Seu Belarmindo! _ Seu Baltazar com um cachecol enrolado ao pescoço, chegou cumprimentando o comerciante.

_ Bom dia Seu Baltazar._ Respondeu Seu Belarmindo cabisbaixo.

_ Minha velha vai me fazer hoje uma sopinha de batata batida no liquidificador, pois eu estou com uma baita dor de garganta e não posso comer nada sólido.

_ Isso é de tanto chupar sorvete. _ Brincou Seu Belarmindo, não querendo demonstrar sua tristeza.

_ Não, eu não chupo sorvetes, é contra os meus princípios, seria como traficante viciar em cocaína, cafetão apaixonar-se por prostituta; arruína o negócio.

_ Quantos quilos de batatas Seu Baltazar?

_ Somente um quilinho, Seu Berlamindo, é só pra mim mesmo. _ Seu Berlamindo vai até o final da loja, coloca algumas batatas em um pacote que havia levado consigo e volta percorrendo o longo caminho, pesou na presença do cliente, Seu Berlamindo gostava de tudo às claras, dava mais confiabilidade aos negócios, novecentos gramas, Seu Belarmindo voltou ao fundo da loja, percorrendo os sessenta metros de ida e volta, vem trazendo quatro batatas nas mãos, porém três bastaram para completar um quilo.

_ Aqui estão suas batatas Seu Baltazar.

_ Obrigado Seu Belarmindo.

Seu Belarmindo vai até o final da loja e leva a batata que sobrou.

Quando volta ao balcão encontra dona Verônica.

_ Bom dia Seu Belarmindo, o senhor tem batata.

_ É o forte da casa, dona Verônica.

_ Eu vou querer um quilo.

_ Pois não._ E foi Seu Belarmindo até o final da loja.

_ Aqui está freguesa.

_ Pensando bem, eu vou levar mais meio quilo, Seu Belarmindo.

_ A senhora é quem manda. _ mais trinta metros pra ir, trinta pra voltar.

_ Aqui estão senhora, somente as batatas?

_ São sim, hoje me deu vontade louca de comer batata frita, muito obrigada, Seu Belarmindo._ Pagou e se foi.

_ Seu Belarmindo ia senta-se para descansar um pouco, quando chega mais um cliente, Antunes,o guarda noturno. _ Seu Belarmindo, dois quilos de batatas por favor. Logo após chega, João Gordo. _ Seu Belarmindo, um quilo de batatas. Depois vem D. Anália, Seu Pedro padeiro, Zé da Égua, Mario Cebola todos queriam batatas, trinta metros pra ir, trinta pra voltar, as três irmãs língua de trapo, um quilo pra cada, Padre Gabriel, esse levou quarenta quilos, ele coordenava o orfanato da cidade, o que demandou quatro viagens, Antônio do táxi, Zé da Zira, e tome batatas. Até que chegou André Sapato Novo acompanhado de Antônio Cachaça.

_ Seu Belarmindo, um quilo de batatas, por favor. _ Pediu André.

_ E você, não vai querer um quilo de batata também, vai? ¬_ Perguntou Seu Belarmindo a Antônio Cachaça, que na verdade só bebia conhaque. É certo que o autor do apelido percebeu adicionar cachaça ao nome de Antônio, humilhava mais do que conhaque, que é bebida de origem estrangeira. Por isso Antônio sempre relutou em aceitar o apelido, não tendo nenhuma cerimônia para xingar a mãe de quem se atrevesse a se referir a ele pela maldita alcunha, sem perceber que a relutância é o catalisador dos apelidos.

_ Não Seu Belarmindo, eu não vou querer um quilo de batatas não. _Respondeu Antônio Cachaça _ Seu Belarmindo foi até o fundo da loja, mais sessenta metros, trazendo um quilo e meio de batatas para André, que pagou despediu e se foi.

Seu Belarmindo se volta para Antônio Cachaça e pergunta:

_ E você Antônio, o que manda?

_ Eu quero duzentos e cinqüenta gramas de batatas.

A polícia chegou vinte minutos após o ocorrido, Antônio Cachaça caído do lado de fora do comércio, Seu Berlarmindo do lado de dentro. Por testemunha somente Zé do Remédio, o farmacêutico, estabelecido próximo a Seu Belarmindo.

_ Olha Seu delegado quando eu ouvi o primeiro disparo, olhei em direção ao comercio de seu Belarmindo, ele apontava a arma para o Antônio Cachaça, ainda deu mais dois tiros no coitado e depois atirou contra a própria cabeça.

_ Mas ele não falou nada? _ Perguntou o delegado.

_ Falou sim. _ Respondeu Zé do Remédio. _ Eu não sei por que, mais antes de se suicidar, olhou pro Antônio caído no chão e falou bem alto: _ “Vai comprar batatas no inferno”.