Anabelle I - A Fuga do Castelo de Cristal

Agora...

— ANABELLE! — Roxtom Overstreet saiu da inconsciência, urrando, logo que lembrou-se de que Anabelle Vondervart corria perigo. Estavam a certa distância, no Deserto Inóspito, fugindo dos Cavaleiros Funestos que montavam seus dragões negros oriundos das terras de Ullullah, o ser maléfico por trás das injustiças que acometiam o mundo nos últimos tempos. Eram, os dragões, também conhecidos como Bestas Funestas, por conta de seus usuais cavaleiros, ou por Sombras da Noite, por serem noturnos.

Os dragões sobrevoavam Roxtom, que levantava-se trôpego, e Anabelle, que corria desnorteadamente para a imensidão do deserto, longe, muito longe do alcance das mãos protetoras de Roxtom, expelindo golfadas de fuligem e cinzas, enquanto seus cavaleiros, desvairados em seu ódio, atiravam feitiços imperdoáveis e ocultos às pessoas boas.

Roxtom desviou de um feitiço azul, provavelmente congelador, que desfez-se na areia à frente de seus pés e aproximava-se cada vez mais de sua amada Anabelle, que perdia-se mais e mais nas entranhas daquele deserto impiedoso e assassino.

Por um momento, teve certeza que a alcançaria, mas, então, em sua desatenção pela ânsia da vida da amada, foi atingido por uma feroz baforada que o atirou a quilômetros dali, o que não melhorou em nada sua situação, pois um dos cavaleiros desgarrou da trupe má e voou em sua direção.

Ele recuperou-se em tempo de girar seu corpo para o lado, a fim de livrar-se da gigantesca pata do animal que tentava pisoteá-lo. Ainda tonto, levantou-se e, habilmente, saltou na dobra de uma perna traseira do dragão. Depois, em suas costas, onde a sela e o Cavaleiro Funesto estavam.

Uma luta de força iniciou-se ali, no lombo do dragão desgovernado. O mago maligno e o guerreiro bondoso e apaixonado, degladiando-se pela donzela. Os feitiços não podiam ser completos: os socos de Roxtom desnorteavam o bruxo que tentava revidar com sua quase inexistente força física.

Num soco mais poderoso, Roxtom fez o mago desequilibrar-se perigosamente e ele pendeu, caindo rumo ao chão e esmagado por uma das patas imensuráveis do monstro.

Roxtom tomou as rédeas do dragão, afinal, devia ser como controlar qualquer criatura que pudesse ser domada. Engano seu. Quando menos esperava, o dragão voou ao lado do cavaleiro que estava mais atrás na caça à princesa a fim de partir para sua casa e, num movimento sincronizado, torcendo assustadoramente o pescoço, acertou-o, deixando o guerreiro tonto de dor, quase inconsciente outra vez, caído no chão árido e escaldante, cheio de fraturas e, o que era o menor de seus problemas, cheio de escoriações.

Em sua dor praticamente insuportável, Roxtom, com os olhos quase cerrados, observou, inerte, a princesa Anabelle ser desacordada com um Feitiço Cabeça de Bolha, onde o rosto da vítima fica envolto em uma cápsula semelhante a uma bolha, impossibilitando, assim, a respiração. Em seguida, o Cavaleiro Funesto que parecia ser o líder, cortou o ar, mergulhando à areia, o dragão inclinou-se de lado e o mago pôde agarrar a princesa aparentemente morta.

Sem mais forças para ficar acordado, Roxtom descansou, enfim...

Antes...

Anabelle olhava-se no espelho, admirando-se e odiando-se. Ela era invejada, era considerada a mais bela criatura vivente e racional de todo o reino de Baskerville. Não tinha por que se odiar... Mas era exatamente o que acontecia em seu mais profundo interior: ela odiava-se por jamais poder ser livre! Livre! Liberdade! Era tudo o que queria... Liberdade!

Não podia sair do palácio para nada. Os guardas reais acompanhavam-na sempre que ia a público, numa escolta de “dar nos nervos”, como dizia sua dama-de-honra, Srta. Edlund, que era uma japonesinha treinada especialmente para defendê-la em qualquer situação que representasse perigo. E era quem estava sempre junto da princesa nos vastos cômodos do castelo e no estrondoso jardim real.

Foi numa tarde de verão, logo depois de conhecer Zacharias Sppott, seu futuro marido arranjado por seu pai, filho de um nobre do reino vizinho, Bromsfout, que Anabelle Vondervart decidiu fugir. Apesar de Lee Edlund, sua guarda-costas e dama-de-honra, tentar convencê-la inúmeras vezes a desistir do plano, Anabelle foi mais persistente e, com o argumento de que Lee deveria exclusivamente manter sua segurança (e de que Zacky, como ele próprio disse que gostava de ser chamado, fedia a peixe podre, com bafo de dejetos de dragão e um cabelo longo sem ver água há algumas décadas, além de ser arrogante, machista e sujo), convenceu-a a ir junto com ela, sem contar uma palavra do planejado.

O plano consistia no seguinte: Lee conhecia pessoas na Grande Feira de Baskerville que podiam montar duas Marionetes Quase Vivas; assim, elas poderiam deixar as marionetes nos seus lugares, enquanto passeavam sempre que quisessem por seu reino. E foi o que se sucedeu.

Anabelle, logo que Lee lhe arranjou as marionetes, pode-se olhar no espelho admirando-se, e somente admirando-se: ela tinha cabelos castanhos até os ombros, revoltos, que destacavam seus preciosos olhos verdes como esmeraldas, e os traços do seu rosto eram todos alinhados perfeitamente, encaixando-se, equilibrando-se, balanceando-se, numa inigualável harmonia.

Apesar das Marionetes Quase Vivas, agora a cara de Anabelle e Edlund, movimentarem-se um pouco desengonçadas (o que Lee disse ser causada por elas terem sido confeccionadas por um amigo seu que estava começando sua fábrica), ninguém pareceu reparar na diferença, quando Anabelle as soltou e, com a ajuda das cambalhotas de Lee para chegar até lá, assistiu tudo de cima do telhado.

Enfim, puderam fugir do Castelo de Cristal, como seu pai apelidara carinhosamente o castelo que deu em homenagem à sua mãe. Instantes depois, estavam na agitada e bagunçada Grande Feira de Baskerville.

Agora...

Anabelle foi sacudida. Acordou com muita falta de ar e, por instantes, não prestou atenção ao lugar em que finalmente chegara, somente interessada em respirar o maravilhoso, delicioso oxigênio. Então, voltando a si, viu que estava em um salão central de algum castelo.

Mas esse salão possuía alguma coisa diferente... Alguma coisa ruim, má... Todas as paredes do recinto, inclusive o teto, eram negras e mal esculpidas, vindas de algum cristal negro muito usado naquele reino... E o chão era prata... Tão prata que refletia o que estivesse sobre ele e, caso o sol batesse — se é que o sol chegava até lá —, arderia os olhos de qualquer ser no lugar...

Os dois Cavaleiros Funestos restantes a seguravam e foram eles que tinham-na sacudido. Aparentemente, alguém tinha chegado no lugar, no lado em que suas costas davam, já que os cavaleiros, ladeando-a, impediam-na de se movimentar para qualquer lado que fosse, porque ela fora acordada para que pudesse falar.

— Monyr, onde está Worggott? — Uma voz terrivelmente sibilante ecoou no salão só e mórbido.

— Morto, senhor... — O homenzinho ao seu lado esquerdo tremeu de leve e pressionou seu braço com mais força, quando completou: — Foi pisoteado por seu próprio dragão enquanto lutava...

— Bem, o que importa? — ele continuou. — Achou mesmo, gracinha, que me enganaria com isso? — E os cavaleiros viraram-na de frente ao homem que estava na porta de entrada do salão: Zacharias Sppott estava parado lá, com a cabeça da marionete de Lee nas mãos. — Marionete Quase Viva? Achei que fosse mais criativa... Essa é uma das brincadeiras das pessoas que, como eu, praticam Artes Ocultas desde crianças.

— Deixe-me ir, seu louco! — Anabelle descontrolou-se e tentou se desvencilhar das garras apertadas dos homenzinhos, mas eles eram fortes e resistiram. — O que pretende?! O que quer de mim?!

— Ora, agora eu quero que fique aí até decidirem o que farão a seguir, já que você estragou o plano inicial. — Zacky debochou e Anabelle conseguiu se soltar dos pequenos homens de tanto se debater.

Quando tentaram pegá-la novamente, ela deu um pontapé na cara de um e um soco no estômago de outro: os dois tombaram, gemendo de dor. Zacky acenou com a mão e Anabelle foi atirada contra a parede. Quando se recuperou da batida, Sppott continuou:

— E se comporte, noivinha, não queremos machucar ninguém, não é mesmo? — E ele estourou a cabeça de cera da marionete de Lee. Piscando e antes de partir da sala, completou aos dois Pigmeus que levantavam-se: — Cuidem dela. Joguem-na no calabouço!

Os homenzinhos agarram-na pelos braços de novo, com ela agitando-se loucamente, e jogaram-na para cima. Quando caiu de novo, não havia chão: um buraco abriu-se no local onde aquele deveria estar, assim que um dos Pigmeus estalou os dedos, e tudo o que se viu depois foi escuridão e o grito desesperado, esmoecendo lentamente, de Anabelle, reverberando nas paredes do salão e do túnel, eternamente...

Tiaggio
Enviado por Tiaggio em 04/04/2010
Reeditado em 04/04/2010
Código do texto: T2177327
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