A paixão de deus

Porém, jamais ficou claro quem realmente deus queria criar naquele instante da criação. Parecia-lhe, enfim, que tudo não passaria de um mal entendido ou o que fosse: Quem, então, vingaria? Quem traria frutos doces e amargos para aquela terra deserta, infértil, um reles buraco no meio do universo fervilhante? Deus queria saber. Olhou em volta, viu o nada, estava só consigo mesmo, buscara o início quando se achou um fim. Contudo, deus, o fim em si e o início nos outros, insistindo em procriar sua imagem e semelhança, fez de companheira sua, a terra. A terra chamada lilite, mulher jovial de olhos grandes e seios fartos, cabelos negros como a noite lhe surgia de um lado e os olhos claros como o dia que lhe cobre o outro lado. Lilite não saberia o que é amar até que deus a ensinasse. E deus a ensinou. Deus, de certa forma, queria saber o que é o amor também e resolveu experimentar todas as suas teorias na sua bela lilite. E ela, andando naquele deserto inóspito, recheado de vácuo de vida, andava nua, mostrando-se ao sol com seu torso bem torneado, sua pele branca, alva como o leite. O sol lhe tocava os seios e os mamilos rosados, o sexo ainda não deflorado, seu olhar ainda não reflexo de amor. E deus a olhava de dia, quando vagueava pelo deserto e de noite, quando ela dormia coberta de um manto de estrela na noite fresca do deserto eterno. Deus não dormia. Via sua criança respirar, o tórax em seu movimento repentino de subir e descer. Tirou um pouco a manta de estrela e viu sua barriga, seu ventre, seu umbigo: prova final de que fora alimentada no útero da terra, ligada a terra pelos anos de caos. Tirou o manto de estrelas até a imagem nua de lilite surgi-lhe diante dos olhos; ele a se despir, tirou o manto branco de tempos. Deitou-se ao seu lado, ambos nus sob os olhos brilhantes de um universo de vidas no vácuo. Amaram-se tendo como única testemunha a noite e o suor daquele amor regou o deserto. O suor de deus e o suor da filha da terra deram de beber a areia infértil daquele deserto. Eram pequenas linhas d'águas que iam dando vida às flores, às gramíneas que se tornavam arbustos, depois árvores. Os rios do útero da terra foram regados pelo suor e afloraram à superfície, correram pelas terras irrigando vales, correram aos oceanos, moldaram as pedras. As flores nasciam pelas margens, orquídeas brotavam, narcíseas, margaridas, rosas vermelhas. Nasciam flores onde só havia pedras, areia e vida nenhuma. E deus amou lilite enquanto mundo surgia fecundado pelo amor de ambos.

Amanhecera e deus estava só. Sentia o calor do sol, mas não sentia o calor do corpo de lilite. Na grama que se deitara, que outrora era só areia fina, via-se as gramíneas amassadas por causa de corpo que deitara ali. Deus beijou aquele chão e sentiu o cheiro de lilite. O cheiro de primaveras que o mundo nunca teve; as primaveras que o mundo terá. Levantou-se, então, deus e olhou em volta. Ouviu os pássaros onde antes só havia o eco de sua voz perdida no espaço. Ouvia as quedas d'águas, onde só havia o silêncio morto das pedras e da areia. Ouvia o balançar dos galhos onde só ouvia o vento soprar para o balé da areia do redemoinho. Mas não ouvia o riso de lilite, não via os olhos do dia claro nem os cabelos da noite escura. Perdera-se seu aroma no meio de tantas novas flores que se separaram dela em seu suor, que vagou o mundo dando a vida. Lilite foi-se com o suor, juntou-se a terra novamente. Ela era laranjeira, a bromélia, o vento na amendoeira e o canto do bem-te-vi. Ela era terra, voltara ao útero que a gerou. E deus chorou. Amou-a como jamais amara alguém. Chorou todo amor e correu desesperado pelo jardim. Foi dar na beira do rio onde caiu de joelhos no barros, afundou as mãos na terra e deixou as lágrimas caírem e se untarem a lama do início dos tempos. Deus juntou todo o barro, sujou o manto, e mergulhou a face na terra da beira do rio. Sussurrou que lilite voltasse para ele, mas lilite não voltaria: ficaria no âmago da terra esperando, vivendo, presa ao cordão umbilical do caos eterno; longe do etéreo amor de deus. E deus chorou. Contemplou-se dentro de si como alguém que, apesar de criar, não poderia impedir. Até ele próprio, confessou para si, deveria aceitar a dor de sofrer. Nisso, lilite tocou a superfície da terra, sentiu as lágrimas de deus invadirem as veias do subterrâneo. No fundo da terra lilite, moldou um feto, filho de deus e da terra. Jogou-lhe para a superfície e, no meio do barro, uma mão surgiu. Deus ajudou aquele ser sair da lama e cair por terra sufocando, suas narinas estavam cheias de barro, cheias da placenta da terra, de lilite. Ele tinha que respirar, mas deus o privou do sofrimento que é o de chorar para viver. Chegou bem perto e soprou-lhe nas narinas. O homem parou de lutar em busca de ar e adormeceu. Deus o olhou, tocou-lhe a face com a mão direita e sua própria com a mão esquerda, pensou que este era seu filho o fruto do seu amor, o presente lilite para ele. Tocou-lhe os cabelos pretos e o torso sujo de barro. Deus rasgou uma parte de seu manto de tempos e lavou o homem e sua cor foi surgindo. Ele era moreno, bonito, com a barba curta. Deus tocou-lhe o peito. Chamou-lhe de adão.

Adão era quieto, distante, não falava mais do que o essencial com deus. Este, porém, ainda imaginava dentro de si se ele sabia que era seu filho, seu primogênito: filho de lilite, a do seio da terra. Ambos andavam pelo jardim calado, apenas observando os pássaros, o murmurejar dos animais silvestres e aqui e ali, deus tocava-lhe o ombro e lhe falava sobre as coisas que ele não sabia: nomes de animais, plantas, as estrelas dos céus. Deus nunca lhe falou do amor, nunca lhe falou sobre a paixão e nunca fez com que adão tomasse por si mesmo solitário, vagante por aquele imenso jardim. Adão era um virgem de retinas e de amor. E deus o queria manter longe disso, esquecia-se por vezes do que ele teve com lilite; contudo, sabia que, para onde olhasse, para cada flor, árvore, pássaro, bicho, sabia que lilite estava ali e logo entristecia. Ele contemplava adão. Ele era seu elo com lilite, mas, ao mesmo tempo, era seu abismo para com ela. O tempo que tinha junto dele servia para apreciar a criação ao redor. Detinha-se, deus, o maior tempo possível com as explicações para que não fugisse para outro lugar, no âmago da terra, onde lilite repousava. Mas um dia, anadaram muito, e adão se cansou e foi cochilar numa raiz de um grande carvalho no pé de um monte. Deus o deixou ir, viu seu filho descer o morro e se aconchegar ao pé da grande árvore e, lá de cima, deus o olhou dormir; mas não o viu: viu lilite dormir sob as cobertas da noite, o lençol de estrelas; viu-a nua com o ventre amostra e o umbigo que a alimentava no seio da terra. Deus chorou, mas não quis lágrima banhar a terra: pegou um velho cajado e o fincou naquele chão verde e com a unha cortou um pouco o pulso e deixou escorrer seu sangue poro todo o cajado. Quando o líquido vermelho atingiu a terra começou então a brotar uma videira, uma videira carregada de uvas roxas. E esta foi crescendo até se enrolar e cobrir todo o cajado e, quando terminado, deus via a videira e ficou ali a contemplando. Naquelas uvas grandes e roxas estava toda sua paixão, todo seu amor e sofrimento. Estava ali o conhecer, o sofrer, a lágrima, a dor da partida e a morte. Tudo ele conhecera, sentira na pele. Tudo que ele não queria que adão, seu filho querido, soubesse. Deus olhou o céu, fechou os olhos e deixou aqueles raios matutinos lhe banharem. Então, ouviu um barulho de passos logo atrás de si, olhou assustado e viu o rosto brilhante de dionísio, um dos anjos mais belos de sua criação. Deus suava, pois sabia que dionísio estava a par de sua fraqueza. Ele se aproxima de pés descalços, vestindo um manto dourado, com pulseiras de ouro e uma coroa de sátiro. Ele observa deus, ali, parado, estático. Deus sabe o que dionísio pretende. O anjo indaga deus; os motivos - quais? - por que estaria suando? E o que significa aquela videira. Dionísio pegou algumas uvas e espremeu com sua mão. O sumo desceu, roxo, avermelhando-se ao se aproximar do solo. O sangue de deus? Olhou nos olhos do criador dionísio, por que? Deus abaixou os olhos e dionísio chegou perto de seu ouvido. Pai querido, deus... Deus que sofre e o anjo sabe por quê. Sugere um descanso, aponta a imensidão do paraíso. Precisa descansar, deus. Descansar perto do seio da terra, assim como ele descansara na sua coxa antes de nascer. Antes de trazer a luz. Deus, então, retira-lhe a mão do ombro com um tapa e seus olhos rasos d'água de cor cinza encaram dionísio. Deus sabe: dionísio, malfeitor, o adversário, o paganismo existente, a embriaguez que revela a verdade do mundo de forma pútrida. A mais imperfeita das criações. Deus segura-o pelo manto, ergue-o para o céu e o joga para o abismo, para o resquício de caos primeiro: para o tempo antes do tempo. Dionísio, de Nisa, da embriaguez, brotara da estrela brilhante que morrera na imensidão do nada e deus o abrigou na coxa esquerda. Dionísio corta os universos num voo vertiginoso e cai no abismo com seu séquito.

Adão desperta com o olhar paternal de deus sobre ele. Este o olha inquisidor, pois sabia que seu filho estava sonhando. Mas, sonhara o quê? Adão sonhara com lilite acariciando seus cabelos negros e seu rosto barbado. Lilite que cantava para ele e que velava seu sono no útero da terra. Lilite, sua mãe. Deus o olha, contempla o filho primeiro do mundo, filho seu. Adão indaga deus, pois de todos os seres que existem só ele - o bicho homem - é solitário. Deus emudece e sai andando. O que faria? Não poderia privar seu filho para sempre. Algum dia ele não poderia ficar mais solitário. Mas, o amor? A paixão que dando ele, deus, tem lutado para afastar de seu filho adão? Deus teme. Ajoelha-se no mesmo lugar em que viu seu filho nascer. Daria uma fêmea ao seu filho? Mas, se ele a privasse do amor? Se ambos fossem privados da paixão terrena, que traz sofrimento: o amor aos outros e o amor a si mesmo. O amor malévolo que constitui a paixão avassaladora. Paixão que destrói com a distância, com a morte. Só deus sabe o que é a morte. Sua lilite hoje é o pó, o suor, o vento. Lilite é parte da terra e nem ele poderia mudar isso. Ouve passos e sabe que são de filho, adão. Deus levanta-se para receber o seu filho, abraça-o. Já sabe qual será sua decisão. Olha bem nos olhos negros como a noite de adão. Ele o ama, um amor paternal. Então, beija-lhe a boca e seu filho cai num sono profundo. Desmaia em seus braços. Deus o deita sobre a terra fria da beira do rio, passa sua mão pelo peito do filho e toca-lhe na última costela do lado direito; ele enfia os dedos nesse ponto e arranca-lhe uma costela. Não há sangue, não há dor e a ferida se fecha. Depois, deus se arrasta pelo barro da beira do rio, beija a costela do filho e a enterra na lama. Ele afunda suas mãos na terra úmida, suas unhas estão pretas, suas mãos sujas. Enfia a mão na terra até os cotovelos quando sente alguma coisa lhe agarrar a mão. Ele puxa até ver que o saíram mãos femininas. Mãos finas, delicadas e limpas, e, como se ascendesse aoa céus, sai uma mulher jovial, bela de cabelos pretos e olhos grandes. Deus contempla aquela visão moldada da própria lilite, mas não era lilite. A moça entrou no rio e banhou-se diante de deus. Seu nome estava gravado na pedra dos tempos e soava como um eco na eternidade: eva... O seu nome era eva e ao ouvir o soar desse nome, adão despertou. Viu-a banhar-se nas águas daquele rio e acabou por fazer-lhe companhia. Deus ficou só. Os cabelos grisalhos eram soprados pelo vento e os olhos sorriam por ver a felicidade do filho. Filho e filha, um nascido da terra e a outra nascida do filho da terra. E em tudo que deus via, sabia que os olhos de lilite o vigiavam.

E um grito foi ouvido do caos da terra. Os cabelos emaranhados, as roupas sujas, os cordões e pulseiras de ouro jogadas na lama primeira do mundo. Eis dionísio perdido, sem luz, sem a luz do sol a brilhar sobre suas vestes douradas. A dor da ferida mortal de deus em seu peito aberto e sem coração. A dor primeira do mundo veio do anjo da luz e com ela, este trará mais dores ao mundo. Grita dionísio no seu lar obscuro. Três dias, três noites, eternidades que se vão pelas retinas sem que o tempo realmente seja palpável. Grita dionísio aos céus. Ao reles céu longíquo, de onde pequenas estrelas brilham. Dionísio sem mãe. Sêmele morrera quando nasceu. Sêmele estrela etérea de vidas mais do que vividas. Grita dionísio do fundo da dor insana e pede aos céus o socorro mestre de quem ainda lhe é fiel. E vem que desce as erínias com seus exércitos de fúria e dor. São os daimonai rejeitados pelo deus sujo de barro do paraíso terreno. Descem as vingadoras com as boas-novas do paraíso, com a companheira de adão feita da costela deste. Falam de deus, a repugnância do próprio dionísio, este, o vômito das eras agora surge em meio ao caos. Grita? Não, dionísio. Este ressurge com suas peças de ouro nos pulsos, no bíceps, no pescoço. Surge com sua coroa de louros douradas e sua veste dourada brilhante. Eleva-se do mundo inferior ao superno terreno, o paraíso feito da paixão de deus. Surge aos olhos do mundo, dionísio, saindo da fenda do que chamou de inferno. E o sol o banhou do alto da cabeça aos tornozelos enfeitados. Brilhou dionísio, e levou a luz da manhã que nascia aos lados do mundo esquecidos. Ele trouxe a luz e a embriaguez. Ele tornou-se lúcifero. Vagou pelos montes, mares, terras distantes, Trouxe consigo a legião dos daimonai esquecidos por deus desde o início da criação. Levou-os consigo no ventre. No vácuo da ferida mortal outrora curada, pisou o jardim com as serpentes das fúrias e as flores morreram, os pássaros não cantaram e lilite, no seio da terra, sabia que era chegada a hora de ela morrer.

Deus era uníssono. Deus era alguém longe das coisas, mas perto dos ouvidos, das retinas. Deus vagava por aquela imensa selva. Grandes árvores ele contemplava: altas, copas onde fervilhava a vida. Deus andara por onde nunca andou. Partes de seu jardim. Jardim de lilite. O éden, um lugar comum para o mundo. A vida que veio do suor que regou o deserto. As flores que nunca existiram, agora brotam do solo como que paridas da própria lilite, aquela que se esconde por entre raízes e lama da terra. Aquela cujo cordão umbilical, que outrora a alimentava, hoje alimenta a terra. Aquela quem deus amou. Deus pára e se senta numa enorme raiz. O manto ainda sujo do barro, as unhas sujas, os cabelos grisalhos, lisos, a testa suada; o cansaço. Deus ouve o barulho de águas, era um rio que estava próximo e ele caminha para onde estaria o rio. Era grande, com uma correnteza leve. Deus então retira o manto e, nu, entra nas águas boas daquele rio. Lava-se do barro da criação. Lava-se da lágrima que caía ao lembrar o seu amor. Banha-se e se limpa de todo o que passou. Mas, quando abre os olhos, ele vê uma água cor de sangue. Um rio que mais parece uma veia aberta no meio da selva. O frio, o medo, a embriaguez, sentimentos que tomam conta de deus e, quando este olha para trás, surge, como que ressuscitado, dionísio. Não! Agora o vagante da luz, lúcifero. Caminha sobre as águas o anjo da embriaguez com seu séquito de daimonai e, onde ele pisa, a vida desaparece. Deus abre os braços e joga os ventos contra o anjo revolto. Mas dionísio continua seu andar pelo rio e se aproxima de deus, que está com água até a cintura. Dionísio se agacha e o encara. O olhar do criador, um olhar cinzento contra os olhos verdes de dionísio. Deus, o único ser que não se curva perante o brilho daquela dourada túnica, ergue-se da água e o olha. O torso nu, musculoso, um deus forte se apresenta a dionísio. Mas este não se reprime e toca o peito de deus. Ali havia um coração que sabia os segredos do mundo, ali havia um coração que privara, por amor, de seus filhos saberem a verdade. Dionísio agora era um senhor, não temia deus, não temia suas vontades. Vingar-se-á do abismo, dos três de perdição. Vingar-se-á da cegueira atribuída aos homens. Homens a animais equiparear-se-ão, e ambos lutarão pela própria sobrevivência. Adão e eva provarão o gosto da paixão, da dor e do arrependimento e arrancará do antro da terra lilite. Deus, que não mostrava receio, o seguro pelo pescoço e joga sobre a superfície da água, o anjo cai dentro do rio que tingira de sangue. Cai de braços abertos para o céu. Cai com os olhos abertos para o céu. Cai como se lembrasse da vastidão do abismo. A queda, o voo pelo espaço-tempo do universo. Dionísio se tornara uma estrela cadente ao atingir o abismo. A fome, a dor, a sujeira de seu corpo. As jóias arremessadas na lama do antro da terra. Dionísio perdera a pedra angular de sua coroa. As mãos sujas. O grito de dor chamando a mãe - Sêmele! - e ódio crescendo-lhe no peito. No antro da terra fez seu lar, o reino subterrâneo, o inferno. Seu reino na terra. Dionísio levanta-se do rio as águas secam. O dia escurece e deus cai por terra. A escuridão mata deus, ele cai no leito do rio seco. Cai cataléptico, cai quase morto. Não se levanta, apenas os olhos se movem; dionísio se aproxima de deus, o conforta e depois o deixa naquele rio seco. A última imagem viva do jardim se reflete no olhar de deus: seu anjo, dionísio, vaga entre as árvores e deus nada pode fazer. Deus fecha os olhos.

Eva está sob o sol, sente os raios do astro rei tocarem-lhe a pele. Ela se admira diante das águas dum lago. Ela se admira ao ver seu corpo perfeito feito da mais perfeita mão. Eva está só, ao pé de uma colina que, no topo, guarda uma videira. Uma videira que ela não pode provar, uma videira que lhe traria dor, mas o que seria dor? Seria perder a perfeição? Seria ir de encontro ao finito? A dor seria a manifestação antagônica das virtudes do paraíso? Eva não saberia o que é dor, nunca sentira, nunca a vira, cheirara, tocara. Eva nunca havia estado perto da dor, mas foi a dor que a trouxe ao mundo. Foi alguém feito de dor que a modelou com as costelas de adão. Dor. Uma palavra sem significado dentro da cabeça daquela prima mulher. Mas, ao olhar para videira, eva vê uma grande luminosidade. Uma luz dourada tal forte quanto a do sol. Eva, então, se aproxima. A videira está quase imperceptível devido a luz e uma voz como de várias águas lhe oferece uma taça dourada. Ali carrega o sangue de deus, diz a voz sussurrante e, com outra mão, espreme as uvas até o sumo descer à taça. Provar o delicioso néctar dos deuses. A mão com anéis e pulseiras de brilhante se estende a eva e os olhos daquele estranhos aparecem: dionísio. Mas eva hesita quando ouve a voz de adão a lhe chamar. Adão a vê no cume da colina e vai ao seu encontro. Dionísio oferece a taça para ambos, adão o contempla, ele anda com um bode ao seu lado, um sátiro. Conhecerão a verdade por trás do mundo, diz dionísio. Saberão de onde surgiram e para onde vão. E eva aceita o gole do vinho, adão a segue e ambos provão do sangue de seu pai. Dionísio parece distante, mas se dão conta que estão nus, o belo corpo de eva não era mais virgem aos olhos de adão. Ambos se cobrem, se envergonham. Dionísio esbraveja: eles conhecerão a dor, o frio, a paixão, a morte. Conhecerão o destino que aguardam todos os anjos do céu. Terão de trabalhar para se sustentar, terão de caçar para comer, terão de matar para ficarem vivos. Dionísio abre os braços aos céus. Olhai, anjos, a fúria de quem traz a luz! Olhai a sentença aos humanos! Olhai a verdade! Mas, deus surge entre as nuvens, na neblina matutina. Condenar-se-á dionísio aos infernos por todos os séculos por desvirginar a retina da humanidade. Todavia, deus olha nos fundos dos olhos de seu anjo. Ele só disse a verdade. Ele será a embriaguez que levará luz ao mundo e a razão será plena. Dionísio some no meio dos seus daimonai e deus cai por terra. Ele chora, ele sabe que lilite morrerá agora que os homens estão livres. Adão e eva se cobrem em meio aos arbustos, eles choram, eles não mais reconhecem deus, aquele senhor de cabelos compridos e grisalhos, com o manto sujo de barro. Deus olha as mãos, estão sujas de sangue, do seu sangue. Aquele paraíso não mais seria dos humanos, não mais seria dos animais. Deus olha um leão matar uma gazela, ver o mergulhão pegar o peixe. Não mais há pureza, todos estão bêbados de sobrevivência. As flores morrem, pois o sol está quente; os rios secam, pois não há chuva. O deserto brota do leito seco e quebrantado do rio. Não mais o paraíso de deus, mas dos homens. Deus olha seus filhos escondidos, nada diz, apenas chora. Dois anjos descem do céu como que para ajudá-lo a se levantar, eram ares e febo, o seu comandante e o seu artista. Ares irá caçar dionísio até o fim, queimará as hordas dos daimonai num lago de fogo. Ao dizer isso aos ouvidos de seu anjo, ele empunha sua espada de prata e finca na terra enfrente a videira. Os homens não cruzarão aquele limítrofe, não até merecerem. Eis a passagem para o céu! Adão e eva contemplam a subida de deus seguido pelos seu anjos. O paraíso se torna um deserto infértil. Não mais os rios, não mais árvores floridas, somente a areia e a seca. Adão e eva vagarão até os confins e nutrirão a raça humana com seu pecado original: o pecado da inocência. Eles vagarão a eternidade.

Mas, no meio do deserto, uma flor nasce. Lilite suspira, usara todas as suas forças para faze crescer a flor branca e... depois morre. Adão e eva contemplam a flor que nascera e deus, como um pai cuidadoso, os observa por trás de uma árvore seca: eles trariam frutos doces e amargos para aquela terra deserta, infértil, um reles buraco no meio do universo fervilhante...

Fim

Ipu, 2 - 18 de abril de 2 mil e 10

Valdemar Neto Terceiro

Valdemar Neto
Enviado por Valdemar Neto em 18/04/2010
Reeditado em 01/05/2010
Código do texto: T2204356
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