OLHOS DE FLORESTA


Através da tela da janela, pelo vidro embaçado, aquele rosto esbranquiçado olhava para o jardim; e seu olhar se perdia entre a grama, plantas, flores e insetos que sobrevoavam todo o verde do lugar. Nesse ínterim alguém entra no seu quarto e ela nem percebe. Nada parecia mais conseguir penetrar ou ser absorvido pelo seu olhar. O que ela via era apenas o imenso vazio de sua própria existência.
O grandioso e voraz vazio que para ela se transformara o mundo desde que soubera que não tinha nem seis meses de vida. Desde então tudo perdera o sentido e ela vagueava pela sua “vida” como um zumbi, um morto vivo, um louco ou um drogado. Nada tinha mais sentido preciso ou conexão com absolutamente nada. Nem a família, o trabalho, o projeto de doutorado, de fazer curso de inglês fora do país, o namorado que não tinha, mas que idealizava, os amigos, os conhecidos e até os desconhecidos. Tudo enfim se esvaíra, se esgotara, se minimizara diante do laudo médico que diagnosticou um câncer ósseo em fase terminal.
Todos que faziam parte de círculo de convivência ficaram deprimidos com aquele olhar perdido, inerte, sem vida, que parecia uma tela em branco, sem forma definida, sem desenhos, sem tinta, sem cor. Era como se um pintor tivesse perdido a inspiração e não conseguisse mais se expressar. De repente ficasse estéril de ideias, de imaginação, de criatividade, de fato até mesmo o sorriso e alegria pareciam ter desaparecido. Era como seu corpo tivesse se solidificado e sua humanidade tivesse sido retirada bruscamente.
Aquele olhar permaneceu, emudeceu, congelou, contaminou, emocionou, despertou, esvaziou, desesperou, enterneceu, escureceu e eternizou: Hercília para quem a conheceu pouco, muito, nem tanto, para quem a amou e principalmente a quem se deteve, mesmo que por segundos, em seu olhar estático. E até mesmo quando a vida se foi daquele corpo jovem, lindo, feliz e na flor de seus 26 anos; nunca, jamais e em tempo nenhum se conseguiu esquecer “o olhar de Hercília”. Olhos profundos. Olhos vagos. Olhos mortos. Olhos de floresta como dizia seu pai. Olhos verdes. Olhos que após a doença assumiram um tom esverdeado que ninguém nunca, jamais vira no mundo.



ESSE CONTO FAZ PARTE DA:

#CELEIRO DE ESCRITORES. ELDORADO: COLETÂNEA DE POEMAS, CRÔNICAS E CONTOS. SANTOS/SP: ED. SUCESSO, 2009.

*DIAS
, Francisco Chagas; Dias, Irene. Encontro com o conto. CBJE: Rio de Janeiro, 2016.
 
Zaymond Zarondy
Enviado por Zaymond Zarondy em 25/05/2010
Reeditado em 04/03/2017
Código do texto: T2279958
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