Armada dos Querubins II - Palavras são espadas e vice-versa!

Chanelein parou e olhou de um lado para o outro. Observou o pátio do colégio arrogantemente, como se fosse dona do lugar. Jovens de todas as idades circulavam pelas quadras esportivas conversando, zombando e se exibindo. Pequenos aglomerados se formavam aqui e ali, porém Chanelein pouca atenção dava às turmas. Ela estava acima disso. Sempre estivera. Jogou os cabelos para trás e começou a andar. Os pequenos saltos da bota batendo contra o chão com a mesma firmeza da vontade dela. Andava decidida, com a posição de quem não temeria nem se o Diabo lhe apontasse um dedo e lhe dissesse que era hoje que ela seria arrastada para o Inferno. Ela provavelmente riria dele, arrancaria uma espada e desceria lá para quebrar de pancada “uma pá” de demônios que mereciam uma sova.

Aquela era uma garota que era a cobiça do colégio, mesmo estando ali há tão pouco tempo. Cabelos negros, com uma ou duas mechas avermelhadas lhe davam um toque um pouco diferente das loiras oxigenadas ou dos cabelos totalmente pintados das outras. A saia curta era para mostrar as pernas bonitas e bem definidas de quem se exercitava muito. Caminhava sem rebolar demais, mas de um modo que ficava evidente que tinha aquele toque especial nos quadris, que faziam qualquer marmanjo lamber os lábios e sonhar com o nome dela.

Andou até parar no meio da quadra, no exato círculo onde começavam as partidas. Colocou uma mão na cintura fina e parou de olho em um grupo que estava sentado nas arquibancadas. Eram outro bando novo no colégio. Haviam entrado todos de uma vez. Os olhos negros da garota, cunhados em seu corpo de 16 anos, impuseram um desafio. Logo os olhares invejosos das patricinhas passaram dela para os cinco rapazes sentados. O desejo dos garotos se transformou em dúvida quando viram Chanelein encarar e logo aquele grupo de bufões que vivia os atormentados. Foi uma decepção para eles que ela se interessasse logo por aqueles idiotas. Mas a vida era assim. Quem não se submetia aos Cinco estava fadado a não ter vida social ou coisa pior.

Os Cinco se levantaram em conjunto e o mais alto deles tomou a dianteira para andar até o meio da quadra. Vieram com um andar tranqüilo e malandro. Se Chanelein agia como se fosse dona do lugar, eles se comportavam como se fossem conquistadores que haviam acabado de usurpar o poder de um bando de índios. O Primeiro parou na frente dela e riu.

- Vai liberar geral hoje? – perguntou, olhando para os colegas e esperando suas risadas. Quando eles riram e percebeu que teria apoio e estaria com o ego sedimentado para uma discussão, continuou. – Tá pronta pra tudo?

- Eu sempre estou pronta. O problema é conseguir alguém que seja homem o suficiente para encarar aqui. Não tenho visto nenhuma desde que cheguei – respondeu ela, em uma conversa padrão de troca de ofensas de cunho sexual.

- A gente pode te mostrar então.

Chanelein verificou as unhas despreocupadamente.

- Talvez valha a pena. Não tem nenhuma comédia boa no cinema.

O restante do colégio já formara uma roda para ver o que aconteceria. As garotas se dividiam entre admirar a ousadia de Chanelein ou repudiar aquelas palavras chulas. Os garotos se excitavam enquanto ela movia o corpo e deixava aqueles lábios vermelhos se moverem.

- E então? Vocês vão brochar como fazem de costume ou vão querer tomar uma sova?

- Sova? – disse o Primeiro, se adiantando. Os outros quatro não se mexeram.

- Ah, você é o burro do grupo. Não tem um mais esperto aí não?

- Tem quem possa te ensinar a se calar. Talvez te dando algum trabalho em casa. Você é do tipo que precisa de uma vassoura mão, não é não? Tem que passar o dia assim – disse o Terceiro, fazendo gestos com a mão. Chanelein abriu a boca para falar, mas ele ainda continuava. – Garotinha descontente que só vendo. Fica aí andando como se fosse dona do lugar, mas no fim das contas quer mesmo é arranjar um namorado. Não conversa com ninguém, só fingindo ser a dona do pedaço. Aí fica se escondendo pelos cantos, com desculpa de quem está no comando. Na verdade tá é sozinha por aí, com medo de encarar as coisas. Aí se mete em confusão para provar para si mesma qualquer coisa...

Chanelein cruzou os braços e começou a bater o pé no chão com ar de impaciência. Resolveu interrompê-lo. Estendeu a mão e bocejou, colocou a língua para fora, olhando para as pessoas como se debochasse do Terceiro. Fez um sinal com o polegar e o indicador, mostrando um tamanho pequeno. As pessoas riram.

- Você fala tanto assim porque não tem peito para mais nada não, hein? Estou esperando. Aceitam o desafio ou não?

- Deixa que eu cuido dela – falou o Segundo, que até o momento estivera com as mãos no bolso, olhando tudo distraidamente. Deu alguns passos para frente. – É para hoje?

- É pra ontem!

O Segundo coçou o nariz. Olhou para o pátio.

- Tudo bem... A gente acerta as contas.

Chanelein se aproximou do Segundo. Sorriu para ele e tocou-o.

- Vocês vão pagar a conta sim, meu bem.

O Segundo se afastou do toque e o quarto se apressou para segurá-la. Quase lhe torceu o pulso. O colégio todo se surpreendeu.

- Deixa ela – disse o Segundo.

- Me solta se não eu arranco suas bolas, desgraçado – xingou Chanelein.

Vários corações pensaram em ser heróis naquele momento. Alguns se adiantaram e exigiram que a garota fosse solta. Os cinco se viraram ameaçadoramente. O Primeiro demonstrou ser o brutamontes que intimidou todos com o olhar. O Terceiro fez troça da covardia de quem falava mas não fazia nada. O Quarto disse vários palavrões como um delinqüente juvenil e mostrou um canivete. O Segundo tocou o braço do Quarto para fazê-lo soltar, porém um dos jovens se adiantou e empurrou os dois. Levou um soco tão forte do Primeiro que caiu desacordado. Outros se acovardaram, mas dois ou três se jogaram contra os Cinco e uma verdadeira balbúrdia começou.

Chanelein chutou o Quarto na virilha e arrancou o canivete da mão dele, depois se afastou. Deixou o sangue escorrer, dentes serem quebrados e narizes deslocados. Tudo acabou apenas quando supervisor chegou e parou a confusão, levando pelo menos uns quinze para a diretoria, entre eles os Cinco e Chanelein. Após advertências e ameaças de expulsão, todos foram liberados.

Ela achou um tédio o restante das aulas, mas fez questão de distribuir uns beijos na bochecha para quem a defendeu. Foi uma recompensa que deixou alguns perdidos de paixão, apesar de parecer pouco para quem não recebeu tal dádiva.

*****

Saiu do colégio calmamente, dando tchau para seus salvadores e recusando companhia para casa. Não olhou para trás por nenhum momento. Caminhou seguindo o mesmo caminho. Passou em frente à igreja e persignou-se. Mexeu na mochila que levava a tiracolo. Nela havia um broche na forma da cruz. Deu a volta na igreja e chegou próxima a um terreno baldio. Ali ela esperou, até o Primeiro aparecer. Ele surgiu mais repentinamente do que Chanelein esperava. Pegara-a de surpresa assim que estava virando a esquina, despreocupada. Um soco a atingiu em cheio a desequilibrou. Quase caiu em um monte de lixo jogado na terreno. Antes que pudesse se sujar, o Quarto apareceu e a acertou com o canivete. A lâmina quase penetrou em sua barriga. Não o fez porque ela conseguiu ser rápida e se desviar. O uniforme da escola se rasgou e um pedaço do tecido ainda ficou preso no canivete.

Chanelein se afastou depressa, xingando e dando um salto para parar sobre o muro. Mais um erro. O Terceiro já estava lá, preparado para a ação dela. Acertou-lhe a barriga em pleno ar, fazendo-a se dobrar e cair levantando poeira e pedaços de capim seco. Nem bem começou a se recuperar da pancada, viu o brilho do sol refletindo em uma lâmina apontada para seu corpo. Rolou para o lado quando o Segundo enfiou a espada no chão. Retirou a arma depressa para preparar outro ataque. Chanelein estava rodando no chão e acabara de receber um chute do estômago vindo do Quarto e o Primeiro a segurou e a ergueu.

Suja e sangrando, ela olhou para seus captores. Os Cinco se apresentaram para ela e finalmente a neblina que cobria sua mente se dispersou e ela conseguiu enxergar o Quinto. Lá estava ele, o menor do grupo, quase encolhido como um jovem indefeso no meio dos marginais.

- Acho que podemos nos aproveitar dela como exemplo – disse o Segundo.

Chanelein cuspiu uma saliva avermelhada no rosto dele. O Quarto a esbofeteou com força, enquanto o Segundo dava uma risada irônica e se limpava. Chegou mais perto, com a espada em punho. Chanelein perdeu a paciência por completo. Estendeu a cabeça para frente e usou toda sua força para jogá-la para trás e acertar o nariz do Primeiro. Aproveitando o movimento, impulsionou as pernas e jogou-se para cima, libertando-se do captor e caindo atrás dele. Abriu a bolsa a tiracolo e retirou duas espadas curtas que não deveriam caber ali. Uma delas atravessou as costas do Primeiro, enquanto a outra o decapitava. As asas da Querubim cresceram com penas alvas se mesclando a um rubro que parecia refletir o pôr-do-sol. Em um impulso, subiu aos céus, invisível à humanidade e com os olhos fitando os Cinco. O Primeiro ainda se debatia sem cabeça, mergulhado na própria poça de sangue quando ela desceu sobre eles. Fingiu que ia na direção do Quinto, justamente como ele temia. Os demônios se prepararam para recebê-la.

Perto do solo, a Querubim recolheu as asas e deixou-se rolar no chão. Mais um movimento em que utilizou as espadas para decepar as pernas do Terceiro. O demônio caiu aleijado, gritando imprecações. Ela usou a força sobrenatural para saltar mais uma vez. O Quarto arremessou um canivete que a anjo não conseguiu evitar. A lâmina fincou-se no ombro dela. O rosto de Chanelein se contorceu, mas ela manteve as espadas preparadas e correu na direção dos inimigos sobreviventes. O Quarto e o Segundo se alteraram em ataques. Precisou de todas as suas habilidades para defender-se dos dois e ainda saiu ferida, com cortes por todo corpo. Quando se livrou da dupla, o Quinto estava diante dela, com os olhos vermelhos brilhando cobertos de ira.

- Você não vai parar minha vingança! – vociferou.

Enfiou as garras na barriga dela. Chanelein sentiu a armadura mágica que vestia sob o uniforme se romper. As armas naturais do demônio penetraram em sua carne angelical. Ela mordeu os lábios para conter um grito. Sabia que o Quarto e o Segundo já preparavam o golpe final, portanto abriu mais uma vez as asas e sentiu as armas deles cortaram suas penas e ossos. Enquanto eles estavam presos na confusão de penas e sangue, ela moveu as espadas para trás. O segundo escapou, mas o Quarto tombou com a lâmina enfiada no peito. Acertou o Quinto com a empunhadura da espada até que fosse solta. Correu para se afastar dos dois que sobraram. Olhou para os caídos e viu que precisava se apressar. Em breve eles estariam de pé.

- Filhos da mãe! Vou capar todos vocês antes e mandá-los para o Inferno. Depois faço a mesma coisa com o Capetão.

De fato, havia tanta fúria nas palavras dela que ela desceria ao Inferno para dar uns tapas no Diabo antes de voltar à Terra para acertar as contas com mais um monte de gente.

- Vem – disse o Segundo, fazendo sinal com a mão e apontando a espada.

Chanelein sabia que precisava esperar seu corpo se regenerar, porém os demônios também estariam de pé se parasse. Então ela avançou. Bateu uma espada contra o Segundo e girou o corpo para um outro golpe. O demônio se defendeu mais uma vez. Outros três golpes falharam e ela foi atingida em dois contra-ataques. Para piorar, o Quinto entrou na disputa e cortou o braço da anjo com as garras. Ela caiu e soltou uma das espadas. O Segundo terminou de desarmá-la. Ficou de joelhos esperando o fim.

- Malditos. Vocês são como todos que sempre me destrataram. Mas vocês vão pagar pelas humilhações que me fizeram – disse ela.

Aquilo fez o Segundo hesitar por um segundo, não porque quisesse, mas por causa de sua ligação com o Quinto, cujo ponto fraco fora atingido pela situação deprimente somada às palavras da anjo. A voz dela tinha um carisma e uma revolta que tocaram o coração do Quinto. Ela baixou a cabeça e uma lágrima caiu para molhar o mato seco. A planta passou do amarelo para o verde instantaneamente. O Segundo olhou para o Quinto, que acabava de se recuperar das palavras da Querubim. Quando se voltou par ao golpe final, já havia uma adaga celestial rasgando seu pescoço verticalmente até atingir o queixo.

- Eu falei que vocês não em agüentavam...

Deixou o corpo do demônio cair e andou até o quinto. Socou-o até que ficasse inconsciente, então os ferimentos dos outros pararam de se recuperar. Puxou o garoto para si depois e beijou na testa.

- Garotinho burro... Não é assim que se resolve as coisas. Precisa de umas pancadas mesmo.

Segurou-o contra si e o iluminou até que o espectro demoníaco deixasse seu corpo. Não se moveu para acabar com aquela sombra irada que a xingava enquanto tentava fugir para o mundo espiritual. Uma lança a atravessou e logo depois uma pequena espada acabou de dispersar o fantasma infernal. Um garoto de uns dez anos pareceu na frente dela, abaixou-se para amarrar o tênis e depois olhou para Chanelein.

- Nossa Senhora! Pensei que a coisa fosse esquentar mais. Eu quase entrei na briga.

Ela soltou o humano e levantou-se. Estava suja e ainda sangrava. As dores tomavam todo o corpo. O olho arroxeado ardia. A boca inchada dificultava a fala.

- Ainda bem que não entrou, Irahd. Eu sei como resolver as coisas, seu pirralho desgraçado.

- Credo! Que descortesia – disse o menino, fazendo bico, mas depois abrindo um grande sorriso.