Armada dos Querubins IV - Salvando Almas

Ricardo olhava para a cerca e pensava no que parecia ser a grande decisão de sua vida. Entrar ou não entrar por aquele buraco que seus colegas haviam acabado de fazer na tela? Esfregou a face cobrindo o queixo e a boca ao mesmo tempo. Já estava suando e o tempo passava. Os outros já o olhavam sabendo que estava para hesitar. Não era para menos. Aquele dia, quase à meia-noite, Ricardo tinha que decidir se demonstrava coragem e espírito de grupo ou se seria chamado de “bichinha” ou coisa pior durante o restante de sua vida. Ao menos o restante de sua vida adolescente.

A escuridão ao redor apenas o deixava mais nervoso. Uma árvore tapava o pouco de luz que vinha do único poste da rua. Podia jurar que só faltavam corvos voando e uma risada macabra. Imaginava as sombras o acusando juntamente com os olhos dos amigos que já pareciam quase transformar em palavras suas acusações e zombarias.

- Vem ou não vem, Ricardo? – perguntou L, o líder do grupo. Fora dele a idéia de todos irem ali, passarem pela cerca e quebrarem todo o artesanato daquele velho maldito que denunciara uma festa deles para a polícia. Ouviram tanto das mães que juraram vingança em conjunto.

- Acho que ele não vem – disse um dos sete garotos, que sempre andavam ao lado de L. Todos ficavam mais fortes ao lado daquele líder, com suas opiniões sempre sólidas e que nunca recuava perante nenhuma advertência, fosse de quem fosse.

L era um garoto alto, daqueles que pareciam ter nascido para nunca mais parar de crescer e ficarem fortes. Tinha cabelos raspados e piercing na orelha. O nariz era grande e quebrado por causa das brigas. Sempre usava roupas pretas e botas de soldado. Naquele dia, estava com uma camisa de uma banda de punk rock que Ricardo odiava, mas que, como todos os outros, baixara todas as músicas da internet e passara a ouvir e cantar nos intervalos das aulas.

- Tudo bem. Fica aí, otário. Mas nem pensa em voltar a andar com a gente. Viadinho...

Ricardo começou a andar até a cerca, quando viu todos olharem em outra direção.

- Tá vindo alguém – gritou um dos garotos, quase se movimentando para esconder. Quando viu que L não se mexeu, ficou parado esperando.

A tensão tomou conta de todos, exceto de L, que olhou na direção da pessoa que agora passava pela árvore e entrava na penumbra. O sujeito vinha assobiando uma música do Oficina G3.

- É aquele carinha que ajuda o carpinteiro aqui... – disse outro dos garotos.

Ricardo olhou em dúvida. A cerca já estava cortada e haviam feito isso justamente para garantir que sua marca estava ali e que não havia mais volta. Agora o garoto chegava mias perto e com certeza os denunciaria. A mãe de Ricardo comentara sobre aquele estranho. Aparecera depois da morte do filho do carpinteiro e passara a ajudá-lo como aprendiz. Era o filho que toda mãe queria ter, como a velha adorava falar na cabeça dele. Já estava cansado daquilo e o que mais queria era encher de pancada aquele maldito perfeitinho.

O aprendiz de carpinteiro andou até avistar o grupo. Estava distraído e se surpreendeu quando viu os nove junto à cerca, com apenas Ricardo de fora.

- O que vocês estão fazendo aí? – perguntou.

- Ah, é o senhor perfeito! – falou outro garoto. L deu um sorriso de lado, sabia que estavam diante do garoto mais odiado do bairro. Ninguém da faixa dos 12 aos 15 anos gostava daquele idiota metido a perfeito.

- Vocês que fizeram isso com a cerca? – perguntou.

Ricardo sentiu o coração parar. Agora estava perdido. A mãe acabaria com ele quando soubesse.

L cruzou os braços e apenas esse gesto deu força para alguém falar.

- Fomos nós sim, cara. Algum problema com isso?

O aprendiz de carpinteiro olhou para todos, para a cerca e depois parou os olhos em Ricardo, como se aqueles do outro lado já não lhe importassem mais.

- Você também está junto com eles? – perguntou, sem acusação, mas com modos paternais que encheriam qualquer um de raiva. Ricardo estava com tanto medo que nem reagiu. Os outros gritaram xingamentos e provocações. O aprendiz de carpinteiro não lhes deu atenção. – Acho que não deveria ir, mas a decisão é sua.

- É dele, se quiser andar conosco ou provar que é alguém na vida – disse L.

- Eu não perderia tempo andando com vocês – falou o aprendiz.

- Nós não perderíamos tempo com você ao nosso lado, mas talvez aproveitaríamos o tempo te espalhando em pedaços no chão.

- A oportunidade se faz no momento – disse o outro, abrindo os braços para mostrar que estava desarmado e sozinho.

L sorriu,andou e atravessou a cerca, sendo seguido pelos outros.

- Tem razão – falou, parando em frente ao aprendiz. O garoto continuou de braços abertos até ser socado no estômago. Curvou-se e foi socado no nariz. Começou a se levantar e então vieram os chutes, mais socos e o mundo se perdeu em gritos, gemidos, estalo de ossos se partindo.

Tudo acabou quinze minutos depois. L e os outros riam, enquanto Ricardo observava horrorizado aquela cena. O corpo do aprendiz estava estirado no chão e os garotos suados riam satisfeitos com o resultado. L olhou para Ricardo, acusando-o e parecendo mirar um próximo alvo.

- O viadinho nem para se mexer – disse um dos colegas.

- Franguinha!

- Filhinho da mamãe...

Preparavam-se para outra sessão de espancamento quando ouviram o barulho milagroso das sirenes. O grupo inteiro correu, menos L que ficou ainda um tempo e depois desapareceu nas sombras. Ricardo ficou e se ajoelhou perto do aprendiz. Tudo aquilo estava errado. Aquele garoto ali caído era um idiota, um otário metido a perfeito, porém não merecia aquilo. Colocou-se de cócoras e tentou ver se ele estava vivo colocando a mão no pescoço como via nos filmes. Caiu de bunda no chão quando o garoto ferido tossiu e tentou se mexer.

- Pensei que cê estivesse morto... – falou Ricardo.

- Graças a Deus, não... Vai embora, Ricardo, antes que a polícia chegue. Não se mete mais com esses caras.

- Mas...

- Apenas vá – disse o aprendiz, em uma cena digna de filme.

Assim Ricardo se levantou tomado por arrependimento e jurando não entrar mais no jogo de L. também jurou não ser tão burro quanto aquele garoto perfeito.

*****

Erlael levantou-se vagarosamente. A cada movimento, um pouco mais de luz surgia em sua imagem. O sangue se limpou de sua face e o roxo desapareceu de sua pele branca. Os olhos verdes se transformaram em globos de luz e o cabelo dourado se transformou em fios brilhantes. O jeans e a camisa pólo muraram para um tom branco, daqueles tão limpos quanto propaganda de sabão em pó. Botas de guerreiro cobriam seus pés, uma cota de malha leve apareceu sobre a camisa, chegando até metade das coxas. Asas brancas iluminadas surgiram aos poucos nas costas.

O Querubim olhou para o lado que Ricardo fora, satisfeito por ter salvado mais uma alma. Sorriu para si mesmo e depois orou ao Senhor, grato por ter a perspicácia por salvar um indivíduo da danação. Não precisara nem recorrer à violência, pois servos de...

A pancada foi tão forte que nem concluiu seus pensamentos. Bateu na cerca com tanta energia que seu rosto ficou marcado pelo arame quadriculado. Tentou se recuperar, mas um outro golpe o derrubou e quando percebeu já tinha um anjo caído com o pé sobre seu peito apontando-lhe um martelo. Tinha asas negras cujas pontas pegavam fogo, cabelos pretos que pareciam pequenos chifres e olhos cheios de fogo escarlate.

- Tudo bem, Erlael? Sabia que você ficaria para tomar mais pancada, seu filho da mãe cretino.

- Eu perdi sangue, mas a vitória de hoje foi minha...

- Mesmo? Deixe de ser cretino... Sete deles já haviam cruzado a cerca e o que você fez foi apenas ter uma vitória em uma batalha, enquanto eu estou vencendo a guerra.

- Deus está comigo e com ele a vitória é certa...

O anjo caído quase virou os olhos de tanto aborrecimento. Colocou a língua para fora como quem faz que vai vomitar. Até quis poder vomitar naquele desgraçado ali caído, mas apenas elevou o martelo para mais um golpe.

Erlael chamou o poder de Deus e deteve o golpe com as mãos. Segurou o martelo e orou para ter mais força divina. Um mero movimento de asas e ele se transformou em uma esfera de luz que projetou o anjo caído para frente, jogando-o no meio da rua. Quando voltou a sua forma atual, encarava o inimigo a uns cinco metros.

Os dois se avaliaram. Erlael viu um anjo caído que aparentava 14 anos de idade, como ele, só que tinha uma versão mais negra. “Laminak”, pensou. Era o nome dado aos Querubins caídos. Aquele, em questão, era Kenzi, que Erlael nomeara seu inimigo número um e a quem dera o apelido de Martelo do Diabo, pois assim seria um rival com títulos mais pomposos.

Aquele era o inimigo mortal, que dilacerava almas, que corrompia corações jovens, destinando-os a uma vida e vícios e à condenação do Inferno. Era o encosto que atormentava as famílias e impedia a felicidade. Era a força do Diabo em ação para acabar com a criação divina. Era a inspiração das más idéias e mais um monte de coisa metafórica com sentido religioso que deixaria qualquer um que não fosse um fanático sem paciência para ouvir.

Kenzi não pensava em si mesmo como o Martelo do Diabo. Tinha pensamentos muito mais simples. Gostava de se apelidar por L, de Laminak, quando estava entre os mortais e não tinha nenhum título particular entre os demônios. Essa coisa toda de título era coisa de anjos, uma frescura pela qual ele tinha deixado a porcaria da Cidade de Prata. Nem o martelo dele tinha aquele nome dado por Erlael. Gostava de chamar a arma apenas de “Puta que pariu! Vamu quebrar tudo, porra!”. Sua inspiração não era o Diabo nem porra nenhuma além das torcidas organizadas.

O Laminak disparou na direção do anjo, quanto já o via retirar uma espada luminosa. Voou e depois deu um rasante, mirando o pescoço do inimigo. Erlael também alçou vôo rapidamente e lançou-se em perseguição. Kenzi parou já no fim da rua e esperou a chegada no Querubim. Pretendia quebrar-lhe o crânio com um golpe que aproveitaria a própria força e a velocidade do anjo. Erlael foi mais rápido, desviando-se do martelo a poucos centímetros e acertando a espada na barriga do Laminak.

Kenzi caiu sangrando um líquido negro flamejante que era um de seus maiores orgulhos. Uma das coisas que mais gostou depois da queda era o fato de sangrar fogo. “Doido demais”, gritou na primeira vez em que se ferira em um combate justamente contra Erlael. E então saíra empolado do combate para “curtir sua nova vida de escuridão numa boa”.

Hoje, porém, Kenzi estava irado com o ferimento. Pousou e esperou que Erlael fizesse o mesmo. O idiota era muito previsível em tudo. Após 100 anos de amizade, o Laminak sabia reconhecer tudo o que o cretino fazia. Voou mais uma vez e deu outro rasante. Erlael tentou a mesma esquiva e escapou mais uma vez, sem contar com a nova estratégia de Kenzi. O anjo caído virou-se assim que viu o inimigo passando sobre ele e arremessou o martelo, acertando as costas do celestial.

Erlael caiu na mesma hora e a arma voltou para o Laminak.

- Ah, martelinho doido! – gritou Kenzi, voando rasteiro enquanto Erlael começava a se levantar. Esse golpe foi no joelho e o fez se dobrar e praticamente desaparecer entre a coxa e a canela.

Pousou perto do anjo e o olhou declarando vitória.

- Perdeu, cara... Perdeu feio, moleque – disse, apontando o martelo.

- Não perdi, pois Jesus está comigo.

- É a segunda surra de hoje e acho que será a última da sua vida.

- Pode ser a última, mas Jesus sabe que venci muitas batalhas em seu nome.

- Puta que pariu... Mas você é chato mesmo.

- Também acho – gritou alguém mais atrás. Era uma voz feminina.

- É, eu também – falou uma voz mais calma e desanimada.

- Que isso, gente!? Nossa Senhora! Coitado do Lael – disse uma voz de criança.

- Pare de falar o nome dela, Irahd – gritou Erlael, mesmo caído e ferido.

- Pára mesmo, cara. Essa puta já encheu o saco.

- Vai falar assim de Nossa Senhora não!

Kenzi olhou para os três recém-chegados. Aquele em forma de criança era Irahd. A anjo gostosa era Chanelein, sempre linda. Nunca se cansava de olhar para ela. O querubim com ares de gótico era Zenbiel. Estavam um com uma espada curta, a segunda com duas espadas e o terceiro com um arco. Iniciaram o ataque com estratégia. Avançaram sobre as proteções de várias flechas de Zenbiel.

O Laminak sentiu duas cravarem-se em seu peito e resistiu. Defendeu-se dos ataques de Irahd e Chanelein, mas o querubim criança saltou para suas costas e a jovem o impedia de defender-se dos ataques que vinham de trás e logo dilaceravam suas asas e rasgavam-lhe a armadura. Quando conseguiu golpear o peito de Chanelein, teve tempo suficiente para saltar e usar as forças para conter a dor e bater s asas feridas. Sangue flamejante se espalhou pela rua. Irahd tentou segui-lo, mas um chute na cabeça o jogou para baixo. Fugiu sabendo que não podia enfrentar todos juntos.

O trio se aproximou de Erlael, exceto Zenbiel que não se deu ao trabalho de sair das sombras. Chanelein ficou observando e procurou por novos demônios. Nenhum deles estava próximo. Irahd ofereceu a mão para o colega. Ele negou e se levantou.

- Não deveria ficar falando o nome dessa mulher. Anuncie o nome do Filho e não...

- Ah, que isso, Lael... Acho que você que não devia ficar enfrentando o Kenzi sozinho. Cê é doido... Ele é mais forte do que qualquer um de nós – interrompedeu Irahd, sorrindo e verificando se o amigo não estava muito ferido. Felizmente, ele já estava se regenerando e voltando a sua voz perfeita.

- Não importa se eu cair. Eu dei o exemplo me sacrificando pelas almas e oferecendo minha face. Só isso já é uma vitória perante essa criatura do Inferno. Apenas isso já me torna superior a essa criatura infernal. Uma alma que siga meu exemplo e veja que a luz é superior à escuridão é o suficiente para que o Céu se...

- Erlael – chamou Chanelein.

O Querubim de face perfeita e luminosa olhou para a garota.

- O quê? – perguntou, chateado com a interrupção.

- Vai te fuder.