O Urso

Nesse dia Mihalis andara com o irmão Elenis aos pássaros e encontrara no regresso a mãe e as irmãs vindas de apanharem a lenha. Os cinco caminharam o que faltava caminhar até à casa e lá dentro o pai esperava-os. Sentava-se à mesa esfarrapado e cheio de sangue no rosto e nas barbas, braços e peito. Sobre a mesa de pinho onde a família comia as magras refeições estava o jarro de hidromel por onde o pai bebia, e já ia a meio, e a cabeça inteira e aberta ao meio de um urso.

“Savedris” exclamou a mãe perante o estado deplorável do marido. Largou os toros que trazia nos braços e correu para ele. “Estás morto, homem?”

“Mordido e mastigado” respondeu ele, “mas à mesma vivo e com ganas de vos beber o último jarro de hidromel, se não se importam que o faça.”

“Que se passou, pai?”

Mihalis não tirava os olhos da cabeça decepada, e esta devolvia o olhar com a ferocidade intocada. Talvez, se tanto, um pouco distante. Ajudou o pai a despir as vestes rasgadas e ainda frias da água do rio para que a mãe pudesse cuidar das feridas. Estas eram feias e fundas na história de horror que manifestavam. As meninas estavam assustadas. Ciamis fechou a porta da casa para deixar lá fora frio e ursos. Depois deu a mão à mais nova de todos, Karis, e as duas sentaram-se do outro lado da mesa, o mais longe que puderam do monte peludo, os olhos saltando entre a cabeça de urso e o pai. Elenis, o outro irmão, avivou o fogo com a lenha trazida pelas irmãs e ficou a ouvir e a acirrá-lo. Não era um final de dia diferente dos outros, excepto que havia uma cabeça de urso na mesa onde comiam e o pai estava pálido e trémulo em gestos e em voz.

“Melhor faria o Infante” disse o pai, “em mandar por despacho avisar todas as criaturas daqui até Morgo Rau e daqui até Todor do atraso da Primavera, que este Inverno não dá ares de ter para onde ir nem pressa de lá chegar.” Levantou o jarro com uma mão a tremer. Bebeu parte e parte derramou-se pela barba. “Os ursos estão a sair da terra e não têm o que comer cá fora. Trazem das tocas apetites a que as bagas e os arbustos queimados do gelo não bastam. Um deles vê-me nos meus preparos habituais, de cu alçado a pentear o rio com a peneira no sonho teimoso de encontrar a centelha que me foi prometida em Contrato do Reino e nem mesmo toda a carne que me fugiu dos ossos este Inverno lhe atalhou as ilusões de banquete que a minha pessoa despertou nele. Pobre de mim. Se pareço carnudo é das peles que carrego em cima do pelo para me proteger deste frio que não se vai. Só que o urso não sabe disso. O Inverno não me levou a altura e ainda sou um homem grande.”

“Não para o urso” disse a mãe, limpando a ferida do ombro com água do balde.

“Não, mulher, nunca para o urso” concordou o pai. “Não era para ele ameaça maior que um veado a molhar as goelas no riacho.”

“Talvez mais-te-quisesse pelo sabor” disse a mãe.

“Ou por ser fácil de matar, pelo menos, pensou o urso, água na boca ou não.”

“O pai não é homem fácil” disse Mihalis, e a sua mãe assentiu com um aceno pronunciado, “de matar ou do que quer que seja.”

“Isso não sou, filho, mas o urso não sabe das nossas coisas assim como nós mal sabemos das dele.”

O silêncio tomou conta da conversa enquanto os seis fitavam a cabeça de urso. Pela ferida maior viam-se os miolos do bicho. A mandíbula exibia todos os dentes arreganhados. A língua comprida escapava-se para um canto da boca. Estava negra. O pai bebeu um gole e pousou o jarro. Observou os movimentos suaves da mulher de volta dos ferimentos que o combate lhe deixara. Cada lenho uma futura cicatriz que Savedris traria no corpo dali em diante.

“Nunca fiz segredo” disse ele, “que o rio e eu alguma vez tenhamos andado nos melhores termos.”

“É um avarento” disse Karis sem se conter. Depois levou a mão à boca e olhou o urso com temor.

“Não é culpa do rio se não cumpre o que um homem promete a outro em papel oficial, pequenina” disse o pai com o sorriso escondido nas barbas. “Mas qualquer outra língua de água a norte daqui ou a sul daqui ou a leste daqui ou a oeste daqui de onde me sento e nós seríamos já uma família rica.”

“Sabemos” disse Ciamis com candura.

“Disse-vos vezes sem conta da minha certeza que este rio tem andado a esconder o brilho de mim. Para vivermos, baixamos árvores mas não somos lenhadores. Vendemos as peles mas não somos caçadores. E se as estações o permitissem nesta maldita floresta, cultivávamos a maçaroca mas porventura seríamos agricultores?”

“Não” respondeu Mihalis.

“Nunca” juntou-se Elenis da lapeira sobre a qual se sentava, remexendo as cinzas de véspera.

“Este rio fez de mim pequeno e hoje” o pai apontou a cabeça com o jarro, “este quis fazer de mim almoço. Sentem-se de roda e conto-vos como foi que o vosso pai jurou para nunca mais falar mal do rio.”

“Posso coser-te o ombro, homem? Enquanto contas? Ou preferes esvair-te não vá eu sem querer interromper tamanho relato com as minhas espetadelas?”

“Faz o que tens a fazer, Ranis. Farei por não te dar a importância que mereces.”

“Tenho-te igual amor, marido” respondeu a mulher, escolhendo as suas linhas.

Ciamis e Karis inclinaram o corpo sobre a mesa, Elenis achou que o fogo se desmerdava sem a sua ajuda e sentou-se ao lado delas. Ciamis enlaçou um braço no dele. Mihalis permaneceu sentado ao lado do pai e este, certo que tinha a atenção de todos, bebeu mais um trago e começou.

“Tinha as minhas bochechas ao alto, as mesmas que o urso terá ao engano achado polposas, estava de costas e senti os Deuses tocarem-me no ombro pois quando me virei, vi-o. Duas vezes o meu número tinha ele, vindo por trás de mim para aproveitar o estrondo da corrente. Olhei já não sei porquê e pensei que ia ser comido e digerido e feito em merda de urso e então é que nunca mais partiria desta floresta. Foi nisso que pensei, num monte de merda de urso com a minha parecença, não em vocês, meus filhos, ou em ti, minha esposa, que me pareces demasiado regalada com essa agulha, agora que penso nisso.”

“Cada picada é necessária” garantiu Ranis. Piscou o olho à filha mais nova, que abafou uma risadela com a mão pequena.

“A todos trouxe” continuou o pai, “para este fim do mundo com promessas que também eu não soube cumprir.”

“Merda de urso” invectivou Elenis a cabeça decepada.

“Merda de urso” ecoou Mihalis.

“Merda de urso” tornou o pai, “porque sou profundamente egoísta nos meus processos de pânico. E orgulhoso. Se me comesse o cabrão, a ver se ao menos o fazia comer também o meu machado e a minha picareta, e ainda bem que tive tempo para jogar mão aos dois, ali perto os tinha deixado sobre o tronco da grande árvore tombada feita ponte através da corrente.”

“A grande árvore deitada” disse Ciamis.

“De onde jogamos as canas” acrescentou Elenis. O pai acenou.

“Não sou esperto que chegue para medir a distância em passos de urso. Sei que não era já muita entre ele e eu, e ele, como a maioria dos ursos que vi, tinha quatro patas para correr e levantava uma chuva grossa ao apartar o rio vindo a apanhar-me.” Savedris abriu os braços. “Tentei assustá-lo, vozeando e bracejando e fazendo por me fazer maior do que sou.”

“Tentaste cantar?” A mulher deu mais um nó, fechou mais um trecho de ferida. “Cantei a um, uma vez. Deixou-me estar. Alguns não são avessos a melodias e a poemas.”

O marido olhou-a com falta de modos.

“Se soubesse alguma canção, mulher minha, tê-la-ia cantado” afiançou num tom avinagrado. “Mas não sei de que serviria com este. Vi-o nos seus olhos que vinha devorado pela fome longa do sono e nem mesmo o trovador do Reino, se é que esse sodomita do Infante tem algum lá pelo paço para entreter a maralha que ele chama de corte, acautelaria o que estava para me calhar em sorte.”

“Não fales mal do nosso Senhor” disse a mulher.

“Falo, pois, se me apetecer” resmungou o marido. “O que está no jarro e este aqui em cima da mesa fazem-me sentir capaz de tudo.”

“O nosso Senhor tem espiões por toda a floresta, homem” lembrou Ranis.

“Nesta casa não tem, espero eu” disse Savedris. “E se é o urso que te desassossega, desconfio que não falará.”

“Como então, pai” disse Ciamis, “veio o urso ter à nossa mesa e o pai a essa cadeira, benditos sejam os Deuses?”

“Pois o urso aproximou-se de mim mais depressa do que me está a levar contar-vos, sem dúvida por não se ver interrompido a cada passo pela voz da vossa mãe, que tem um arpoar mais implicante que qualquer agulha das dela, firmei o melhor que pude o tacão das botas ao leito do rio e enquanto esperava pela morte certa apercebi-me do facto de estar numa posição de ligeira vantagem.”

“Benditos sejam os Deuses” disse Karis. O pai ergueu o jarro ao alto e bebeu.

“Quando dei pelo urso, andava a peneirar nas quedas baixas, um pouco acima de onde o rio se aquieta na lagoa funda, junto ao tronco caído. Ele vinha por baixo, o urso, contra a corrente, uma massa de pelo e músculo, embora já os tenha visto mais gordos e rápidos. O degelo ainda não começou com a propriedade devida, mas as neves já se largam dos cimos de Todor Rau e isso talvez me tenha salvo a vida. Este rio que conspirou para manter esta família na penúria fez por atrapalhar os movimentos ao urso à força da sua corrente.”

“Bendito rio” disse a mãe.

“Sim, já não me ouvirás dizer o avesso. Não me traz ouro mas não é tão mau quanto o tenho pintado, o meu rio.”

“Eu gosto de fazer as pedras saltar na correnteza” disse Elenis.

“Eu gosto da sua água, no verão, quando tenho sede” disse Karis.

“Eu gosto de pescar nele” disse Mihalis.

“Eu gosto de nadar nele quando ninguém está a ver” disse Ciamis, e a mãe tapou-lhe a boca com uma mão suja de sangue de homem obstinado.

“Bendito rio” disse ela ao marido antes que as sobrancelhas peludas dele se encavalitassem na direcção da mais velha. “Continua, homem.”

“Por isso…” disse o pai fitando a filha com olhos de conversa prometida sobre outro assunto que não aquele, “na mão esquerda a picareta, lembram-se? E na direita o machado. Mijei as calças a meio mas não fugi. Um homem que foge é o mesmo que morre, neste mundo e no outro. Do mijar pernas abaixo não vem grande mal, desde que não seja prenúncio de correria desvairada. O mijo é quente e lembra-nos a vida. Adoro o mijo! E vocês também deviam adorá-lo.”

“Lindas coisas ensinas aos teus filhos só porque estiveste em combate com um urso e os Deuses te sorriram desta vez” disse Ranis.

“Se me tivesse posto a correr, quem terias agora para espicaçar o juízo ou a carne?”

Savedris soltou um resmungo. A mulher calou-se e foi ver da ferida no pescoço. Invocava o emprego duma agulha mais fina. Havia uma assim no seu cesto que estava no colo da mais nova, Karis. O marido rodou os olhos pelos filhos e continuou, juntando a sua voz ao crepitar do borralho que oferecia calor à casa.

“Não fugi. Nem podia, tinha a árvore tombada atrás de mim e não quis ver se era capaz de saltá-la antes que o cabrão me abocanhasse o nadegueiro que trazia debaixo de olho desde que me tinha visto. O urso dobrava o meu tamanho mas metade dele estava dentro do rio. Acima da água, ele abaixo das quedas e eu por cima, não havia muita diferença entre nós. Se, meus filhos, não falarmos na cabeça.” Voltou a indicar o convidado àquela mesa. “Não parece grande coisa agora aqui em cima, mas imaginem-na coroando ombros como rochedos, essa boca a abrir e a fechar em estalos dentados e a rugir e duas patas enormes de cada lado que também sabiam morder e arranhar sozinhas. Se me apanhasse num abraço, a minha cabeça caberia dentro desta boca e depois era só trincar-ma limpinha.”

“Não” disse Karis, com pavor no rostinho.

O pai enfatizou o que poderia ter acontecido com um aceno silencioso.

“O que seria de vocês?” A sua mão enorme apertou o ombro a Mihalis, deixando-lhe uma mancha escarlate junto ao pescoço que também lhe lambuzou os cabelos louros nas pontas. Se sangue dele, se de urso, difícil asseverar. “Os meus rapazes tornavam-se soldados no exército de um sodomita e as minhas lindas raparigas seriam mulheres de soldados desse referido exército. E que dizer da minha mulher, amada e acarinhada, que peço aos Deuses nunca venha a ser viúva dum vulgar garimpeiro?”

“Há destinos piores” disse a mulher, passando a agulha pela carne do marido.

“Mas a haver melhores que esses, até aqui na floresta funda entre Morgo e Todor, queres-me repreender por ter lutado por eles?” Savedris virou a cabeça para olhar a mulher.

“Visto que também não tenho desejo algum de viuvez” disse ela, “sou forçada a usar dalguma repreensão, homem. Não vires a cabeça desse modo quando estou a coser o teu pescoço ou posso acabar o que o urso te deixou a meio.”

“Lutou, pai?” Perguntou Ciamis, desse modo chamando a atenção do pai de volta ao relato. “Lutou com o urso?”

“Lutei. Sabia que o urso se ia pôr de pé. Tinha de alçar as patas da frente para se chegar a mim, que estava por cima das quedas baixas, junto ao tronco. Quando o fez, assestei-lhe o meu golpe mais certeiro no pescoço.” Savedris exemplificou aos filhos o movimento do braço que agora segurava no jarro de hidromel quase vazio. “Ele sacudiu-se com um urro, levou-me a picareta da mão mas não conseguiu soltá-la do cachaço. O primeiro golpe foi fundo e julgo que eu também não seria capaz de a reaver para um segundo.”

“Aço Istústio” lembrou Elenis.

“Saiu-me barato” concordou o pai, “à vista das coisas.”

“E depois?”

“Depois, filho, se o sangue do urso jorrou primeiramente, o meu jorrou seguidamente, que é como quem diz, logo a seguir. Acertou-me o cabrão, com a pata, e as garras furaram-me as peles, assim de forma como está a vossa mãe agora a fazer-me com a sua agulha, mas com menor pendor para a sevícia.”

“E assim que terminar de o fazer a ti, fá-lo-ei às tuas peles” disse ela. “Não sei qual de entre vocês precisa de maior remendo, mas adivinho qual se queixa mais”

“Peles” prosseguiu o pai, “a minha e as que trago vestidas, verrumadas aqui ao longo do peito pelo urso que a esta altura se zangou. Um pouco acima com aquela sua patorra e estaria a contar-vos esta história pelo olho do cu.”

“Com a dificuldade que lhe é conhecida” disse Ciamis sorrindo, “no que toca a expressar-se correctamente por essa sua extremidade.”

“Coro-te já as bochechas, umas e outras, se me voltas a falar assim, rapariga” disse o pai com um sorriso raro. Os filhos riram-se também e até Ranis piscou o olho a Ciamis, sorridente. Savedris bebeu do jarro, regando as barbas longas para o que faltava contar. “Ainda estava com o machado, que por pouco não me escorregou da mão quando o urso cresceu para mim e me acertou como já contei. Consegui atirar-lhe um bote mas acertei-lhe com a face da lâmina, não com o gume, porque mal conseguia ter o cabo a direito na mão. Mesmo assim, queixava-me mais se não lhe tivesse dado no focinho. Ele sentiu a pancada, o cabrão do urso.”

“Cabrão do urso” disse Karis, e pôs a mão na boca.

“Sim” disse o pai à filha mais pequena, “o cabrão tentou outra vez apanhar-me e ao mesmo tempo subir o rochedo das quedas baixas para me chegar melhor. A corrente empurrava-o e as pedras não são poiso firme, nem para pata de urso nem para a de homem, mas ele estava a pontos de ficar à minha altura e eu a pontos de me tornar merda de urso.”

“Que fez o pai?” disse Milhalis.

“Mijei um pouco mais as calças” respondeu ele, “ou talvez o sangue me tivesse escorrido por baixo das peles até onde as pernas me nascem do corpo e fosse o seu calor que eu senti. Não me perdi a pensar no que seria o quê, congeminei antes um plano.”

“Um plano?” disse Elenis

“Um desses, sim, capaz de ser o meu último se fosse o caso de não prestar para nada. E que passava por me empoleirar no tronco caído antes que o urso trepasse pelas quedas acima no que seria o ponto final desta história, comigo morto e convosco, meus filhos, em lágrimas. Resta saber o que estaria a vossa mãe a fazer.”

“Talvez a cerzir algo que se mexesse menos que tu, homem.”

“Feres-me com as tuas palavras, não só com as tuas agulhas.”

“Se for para o teu bem…” disse ela. “Conta lá o resto que essa ferida no peito precisa de ti deitado para que seja vista.”

“Portanto, quando atirei o corpo para trás as costas deram ao tronco deitado e joguei logo a primeira perna ao focinho do cabrão do urso sempre sabendo que se ele abrisse a boca no instante em que o estava a fazer me comia o pé, bota de garimpar e tudo. Ainda pensei que talvez o urso perdesse o equilíbrio nas pernas por causa da minha patada, mas a sorte que tive já foi em razoável medida e não me deu para esmolar por mais. Foi como pontapear uma rocha, uma coisa muito parva de se fazer, mas que naquela situação fazia todo o sentido. Estivessem lá para ver e logo viam. Com o impulso da minha perna na cara dele, veio-me o corpo para trás, como de acordo com o plano, e eu dei um cambaluz por cima da árvore caída. A minha ideia era cair direito do outro lado, mas o urso, que não me comeu a bota com o pé lá dentro, foi então que aproveitou o ensejo para me abrir nas costas tantos lenhos quantas unhas tinha.”

“Também tens feridas nas costas, homem?”

“Tenho, mas dessas mantém-te arredada com as tuas pinças” disse Savedris. Olhou à vez para Elenis e Mihalis. “Não se dá as costas a mulher alguma, muito menos se ela for de índole costureira.”

“Deste-as ao urso” lembrou Ranis.

“E quase morri por isso, o que só vem demonstrar o rigor do meu pensar. Deixa-me acabar para que possas tu também acabar a tortura à minha pessoa.”

“Acaba, marido.”

“Quando o urso, cabrão que estava a ser naquela circunstância, me arranhou as costas, as unhacas dele desenvolveram um apego sinistro às minhas peles, às que uso por cima do pêlo, e fiquei preso, pendurado do outro lado do tronco tombado. Preso a uma das patas e à mercê da outra passando-me vezes sem conta sobre a cabeça, por pouco não me reduzindo esta narrativa às poucas palavras que eu seja porventura capaz de proferir pela extremidade há pouco referida, e nem uma palavra sobre a eloquência ou falta dela quero ouvir de qualquer uma das vossas bocas. Sob risco de vos reduzir eu à mesma condição.”

Dos filhos, nem pio. Esgotado o hidromel, chegava-se também ao fim da história.

“Por sorte, o urso não me atingiu.”

“És de sortes.”

“Diz isso sem essa malícia toda, Ranis, e talvez me sinta feliz por sê-lo.”

“Digo da maneira que digo, não quero dizer nada com isso, homem.”

“Foi pela sorte, esta tendo-me em melhor conta que a vossa mãe me parece ter, que o cabrão peludo não me atingiu e ainda por cima as minhas peles se libertaram, por sorte, das garras deles e tanto eu como o urso caímos, cada qual por seu lado, atrevo-me a dizer, por efeitos da tal sorte. Eu acima das quedas baixas, ele outra vez lá em baixo. Mas com ódios de voltar a subir. A desavença entre mim e o urso arrastava-se para além do razoável e se fosse uma questão de se ver quem se esvaía primeiro, é certo e sabido que o urso tem mais para dar que um homem. Sempre com o olho em não vir, posteriormente a ser comido, ser cagado pelo urso, surgiu-se-me terminar a dança, e a forma como fazê-lo.”

“De sortes e para mais esperto” tornou a mulher. “Eis o homem que amo.”

“Eis-me aqui, sem dúvida” disse ele, “devido à minha esperteza e às sortes que nunca até este dia tive naquele rio.”

“Bendito rio” disse Karis.

“Tanto mais quanto molhado é” concordou o pai. “O urso viu-me assomar a cabeça ao cimo tronco mas lá de baixo não me chegava a unha. Urrou e fez-se quedas acima, patinhando. Tinha o flanco vermelho do sangue que esguichava em escarradelas da ferida da picareta, o aço Istústio não despega uma vez fincado fundo naquele cachaço ou no que quer que seja que o finquemos. Ainda havia o machado. Tinha-o perdido quando dei a cambalhota por cima do tronco, pensei que tivesse ido no rio. Mas a lâmina é pesada e ele ali estava, sob a árvore, preso nas rochas debaixo da corrente. Joguei a mão a ele, e depois segurei-o com as duas.”

“É um bom machado” disse Mihalis.

“O urso não estava bem das pernas mas estava quase em cima de mim. O que fiz a seguir não foi corajoso. Foi glorioso!” Savedris levantou-se de repente da cadeira erguendo o jarro com ambas as mãos acima da cabeça aos sarrafos do telhado, assustando as meninas e arreliando a mulher que ainda o estava a coser. Os rapazes ficaram suspensos no gesto do pai quando este subiu para cima da cadeira num acto de precário balanço que mimetizava o que tinha acontecido. “Trepei ao tronco com o machado assim ao alto e antes que o urso me pudesse cortar ao meio com as patas, desci-lho sobre a cabeça com as forças que me restavam e o ódio que o medo naquela vicissitude me consagrou.”

O pai arremeteu o jarro que se estilhaçou contra a cabeça decepada e aberta do urso. Cacos soltaram-se para todo o lado. Um deles, pelo menos, deu a Savedris uma nova ferida com que entreter Ranis e as suas agulhas, um corte profundo no pulso. Não lhe deu importância. Sorria e enchia o peito de ar.

“E foi assim, e não de outra forma, que esta cabeça de urso veio dar à nossa mesa.”

Karis largou num aplauso infantil que contagiou a irmã e, estes num tom mais solene, os irmãos. A mãe atirou as agulhas de volta à cesta e começou a apanhar os cacos do jarro, não fosse algum dos filhos magoar-se neles. Exibiu o que restava da pega da peça perdida.

“Espero que o urso tenha valido o nosso último hidromel e o nosso melhor jarro.”

“É minha opinião que sim” disse o marido, "valeu por ambas as coisas."

“E não lhe podias ter cortado um bocado que pudesse cozinhar-se? Esta cabeça, um pouco à semelhança da tua, é demasiado avantajada para as minhas panelas.”

“É um troféu, mulher, não é comida.”

“Mesmo assim, esta noite os nossos filhos verão ser-lhes servida carne de troféu, se é que esta cabeçorra tem alguma para uma sopa ou um guisado. E tu vais tirar partido do nosso leito, antes que afocinhes para aí e me precipites o tal estado de viuvez de que há pouco falavas não me desejar.” A mãe virou-se para os filhos. “Rapazes, ajudem o vosso pai a fazer por merecer a sorte de ainda estar connosco hoje. Atem-no à cama se a oportunidade se apresentar. Daqui a pouco já lhe vou servir um pouco da língua deste urso, para que ele possa dar ao cabrão do bicho o mesmo destino que receava que o cabrão do bicho lhe desse.”

“Quero crer que será uma justa cagada” disse Savedris, amparado por um filho de cada lado a caminho da cama. “Atrevo-me a dizer, épica!”

Nuno Lopes
Enviado por Nuno Lopes em 09/07/2010
Código do texto: T2367383
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