Anabelle III - O Segredo dos Pigmeus

Agora...

Zacharias Sppott abriu a porta que dava para a masmorra, acompanhado de um Pigmeu. Lá, Anabelle arfava por ajuda, estirada no chão sujo e grudento de sua cela. Com suas roupas completamente enegrecidas de sujeira e já mais recuperada da queda que tivera há alguns dias, Anabelle, fraca e pálida, acordou, com uma última ponta de esperança viva dentro de seu coração, para ver quem abrira a porta.

O Pigmeu adiantou-se rumo às grades da cela e, escolhendo uma das centenas de chaves do imenso molho destas que carregava, abriu-a. O fio de vida que restava em Anabelle era tão tênue que ela não conseguiu levantar de onde caíra e vinha recebendo remédios para curar seus ferimentos referentes à queda, um pão seco e uma caneca d'água por dia.

Assim que cumpriu sua tarefa, o Pigmeu deu passagem para o temível Zacky, que adentrou a cela pisando firme, como quem tenta intimidar com os passos. Anabelle riu por dentro de seu antigo noivo, mas por fora fingiu medo. Ela conhecia muito bem Zacky Sppott. Bem até demais, para saber que ele era daquele tipo de ser humano que, se não convencia como queria, fazia valer o que queria demonstrar usando de força física ou de qualquer outro artifício que provocasse dor.

— Olá, minha adorada ex-futura-noivinha. — Sppott começou, logo que parou a alguns centímetros do corpo frágil de Anabelle. — Adivinha? Trago novidades. Finalmente decidiram o que fazer com você. Por enquanto, não terei o prazer de obrigá-la a ser minha. Mas espere, amorzinho, porque breve é o tempo que ficará livre de mim.

— Quem me... me seqüestrou? — Anabelle indagou, fraca demais para se mexer. — O que... que decidiram?

— O de sempre, meu docinho. — Zacky agachou-se e pegou o rosto mórbido de Anabelle entre as mãos. — Será usada em uma troca. O Reino em troca da princesinha seqüestrada e desamparada. Algo desse tipo.

— Meu pai mandará servos e servos contra você, contra esse maldito lugar! — Anabelle desesperou-se.

— Primeiro de tudo, maravilhosa princesa, ninguém sabe em que lugar fica a Cidadela Perdida, o próprio nome diz, porque estamos sempre mudando de lugar. — Sppott sorriu maliciosamente. — Aliás, mesmo se soubessem, não sabem em que lugar da Cidadela estamos. Além disso, não teriam como entrar, porque temos os Pigmeus a nosso favor. Claro que tivemos de submeter alguns líderes deles, alguns Mágicos de Primeira e alguns de seus familiares à nossa vontade para os Guerreiros Formigas, como se auto intitulam, servirem a nós, mas isso não foi problema algum. Pelo contrário, foi até divertido. — O Pigmeu ali ao lado, tremeu ligeiramente, incomodado, como quem espera a primeira oportunidade para vingar-se.

— Como conseguiram domar os Mágicos de Primeira deles? — Anabelle fingiu interesse, vendo a reação do baixinho. — Afinal, eles equivalem ao que nós conhecemos como magos...

— Simples. Na verdade, muito simples! — Zacky sorriu maldosamente para o pequeno às suas costas e voltou-se outra vez para Anabelle: — Eles não podem chegar muito perto da luz ou ficam cegos, já que vivem dentro da terra atrás de suas magníficas e belas pedras preciosas — que agora são nossas — para a sua subsistência. Elas é que são sua luz. Eles se guiam por elas. Colocam várias em seus túneis, podendo, assim, guiarem-se por elas. É deveras uma civilização muito bem organizada, até genial, mas muito, muito aproveitável e explorável! Bastou ameaçá-los com algumas tochas de fogo, que se renderam às nossas vontades há muito tempo. Só agora o mundo soube de sua devoção a Ullullah e a nós! Para poderem suportar a luz do Sol, damos a eles uma loção especial — que eles não sabem produzir, obviamente — para passarem nos olhos; sem ela, eles ficariam cegos. Não é fantástico?! Esse Guerreiro Formiga aí é um belo exemplo. Enfiamos uma tocha na casinha minúscula dele e ele se entregou rapidamente. — Mal Zacky terminou de falar, o plano de Anabelle deu certo: o Pigmeu, farto de seu mestre odioso, atirou um Feitiço do Desacordado nele e, dando um líquido rançoso a ela, elevou-a no ar, flutuando seu corpo até a saída.

Antes...

Fazia algum tempo que Anabelle — e consequentemente Lee — fugia do imenso e invejado Castelo de Cristal — que seu pai havia mandado construir especialmente para sua mãe —, durante tardes maravilhosas de sol, deixando sua Marionete Quase Viva como se fosse ela mesma, para ir à Grande Feira de Baskerville apreciar tudo o que o mundo tinha a oferecer com sua preciosa liberdade.

Assim, quando Zacky Sppott, seu noivo, arranjado por seu pai, chegava para vê-la, nunca era ela mesma que estava lá para recebê-lo. Embora fosse realmente muito parecida em seus ínfimos detalhes com Anabelle, esta desconfiava que Zacky sabia que ela o deixava com uma imitação de seu ser, quando o via, afinal, era impossível ficar ausente do castelo, deixando uma marionete ocupar seu lugar e tomar decisões importantíssimas por ela, todo o tempo que Zacharias Sppott viesse encher a paciência, principalmente porque não havia nada que pudesse prender a atenção de Anabelle por todo esse tempo, que parecia infindável, na Grande Feira, embora sempre houvesse algo novo para se ver — a menos, é claro, que fosse depois de ter conhecido um certo ladrãozinho de barracas e um certo templo abandonado em algum lugar ali perto; aí sim, tinha muitas coisas com que se ocupar! Ah, e como o tempo passava rápido ali!

Anabelle Vondervart e Lee Edlund estavam, certa vez, passeando tranquilas entre os mercantes. Anabelle mudou completamente sua aparência, usando uma tal de Poção Barroforme, que transformava o visual de quem tomasse em outro inacreditável, embora, nos detalhes mais precisos, ainda permanecesse a essência original do ser: ela estava, agora, de cabelos, sobrancelhas, cílios etc. loiros, como Lee achou melhor que seria, com olhos castanho-esverdeados, os traços menos singelos, mais agressivos, troncudos.

Lee parecia uma pavoa. Sem seus tradicionais olhinhos puxados, ela tinha agora uma aparência de qualquer ser ocidental comum (a não ser pelas roupas espalhafatosas): cabelos mais curtos do que usava habitualmente, bochechas murchas, sorriso receoso, magreza desnecessária e vestia-se colorida, cheia de penas de pássaros exóticos, porque achava-as muito belas, embora esse não fosse o hábito por quem passava.

Mas nada disso, nem uma pavoa humana ou uma mulher com cabelos loiros demais, chamavam muita atenção na feira onde todo ser do mundo de Eldorra que tivesse um pouco de racionalidade ia quando tinha uma horinha à disposição, nem que morassem no outro lado do mundo.

Numa das barracas de abóboras geme-gemes, mais ou menos com setenta quilos cada uma, Anabelle e Lee observavam-nas, admiradas. O som surdo, oco e lamentoso que elas emitiam podia fazer qualquer espectador mais atento cair em lágrimas. Anabelle não conseguiu disfarçar e desatou a chorar. Já com Lee, a história era outra: ou ela disfarçava muito bem, ou o urro ululante da abóbora sequer fazia-a sentir pena do vegetal que sabia que seria morto e comido.

Quando menos esperavam, um homem alto, com barba por fazer, branco, cabelos castanhos, olhos cor de mel e cara de safado, como Anabelle diria mais tarde, esbarrou nelas, fazendo Anabelle desequilibrar-se e, se não fosse por sua guarda-costas que a segurou firme, teria desabado no chão.

Então, no momento seguinte, quando Lee ajudava Anabelle a recuperar o equilíbrio, um homem negro, de cabelos e olhos pretos, enorme, alto e musculoso, que queria certamente confusão, agarrou as beiradas da barraca e a virou, fazendo todas as abóboras geme-gemes despencarem para o chão e um berreiro insuportável e ensurdecedor, que elas só faziam quando achavam a morte muito perto, iniciou-se.

A grande maioria das criaturas presentes em toda a feira, nos muitos quilômetros que se estendia, desatou a chorar compulsivamente. Anabelle, antes de começar a chorar sem parar e não conseguir ver mais nada por causa de tanta lágrima que vazava de seus olhos, viu o estranho homem que esbarrara nela tentar roubar um senhor. Quando ia protestar, tentando avisar o homem, os dois desapareceram no ar, com toda a certeza, desmaterializando-se.

Lee, ao contrário, ficara interessada no robusto negro que conseguira virar uma barraca com toneladas em cima. Depois de fazer tal artimanha, o musculoso, agilmente, empurrando um aqui e outro lá, chegou até o local que antes estivera o velho e o ladrão, mas ficou desnorteado logo que não avistou qualquer dos dois nas redondezas.

Olhando, abobalhado, para os lados, meio sem saber o que fazer, o negro afastou-se da confusão, fugindo rumo ao Templo Titânico, abandonado há muitos séculos pela população, que o considerava, agora, somente uma lembrança de um passado remoto que devia ser mantida o mais original e conservada possível.

Agora...

Aos poucos, conforme era carregada flutuando pelo baixinho, Anabelle se recuperava. Lentamente, começou a sentir sua costela quebrada arrumar-se e seus arranhões que estavam recém-coagulados começarem a fechar-se definitivamente.

Enquanto a poção esquisita que o Pigmeu dera a ela fazia efeito, uma dor terrível açoitava-a onde os ferimentos se curavam. Isso acontecia, segundo o Pigmeu, porque o tempo dos machucados foram alterados para correrem mais depressa, curando-se, assim, rapidamente. Então, o corpo, despreparado, reagia dolorosamente.

Algum tempo depois, quando já estavam no fim do corredor da masmorra, o Pigmeu parou e estudou Anabelle, tentando entender se ela podia se locomover sem sua ajuda. Constatando que sim, ele a pousou delicadamente no chão e esperou ela respirar fundo, enquanto a dor diminuía, para que pudesse se levantar e andar sozinha.

Calmamente, Anabelle conseguiu pôr-se de pé e caminhou, cambaleante, ao encontro do Pigmeu, tentando compreender o que ele planejava. O pequenino ser deu sinal para ela se afastar e foi o que fez: afastou-se tanto do baixinho, com medo do que ele planejava, que chegou perto demais de uma das celas mais próximas da parede final do corredor e assustou-se com o gemido horrendo que veio da escuridão lá de dentro, uma escuridão a qual já pertencera instantes antes.

O Pigmeu encostou a mão direita na parede de terra e a mesma afastou-se para o lado, revelando uma escada que descia para a imensidão em caracóis pavorosamente circulares...

Tiaggio
Enviado por Tiaggio em 14/07/2010
Reeditado em 20/07/2010
Código do texto: T2377919
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