O Homem que dormiu 14 dias...

Sofro de uma insólita doença cujo principal sintoma constitui-se em um sono extremamente profundo e absurdamente prolongado, do qual a origem é completamente desconhecida pela “ciência”. O que aqui relato é meu último período de manifestação da enfermidade, durante o qual dormi por nada menos que 14 dias, sem a mínima interrupção. Nada, nem ninguém, obteve êxito em me acordar. O mais assombroso é que ao longo das crises de sono, sinto-me desprender do corpo, e minha alma flutua pelo quarto, observando a tudo e a todos. E mais: voando em plena liberdade, posso deslocar-me a qualquer região do planeta, ainda que as visões, seres e fatos que eu contemple sejam, em muitos aspectos, essencialmente diferentes e estranhos à vida comum dos humanos. Muitos dirão que são sonhos fantásticos de uma pessoa doentia e mentalmente perturbada. Não os condeno, pois não têm minha experiência. No entanto, permaneço em plena consciência durante o sono, mental, emocional e espiritualmente.

Não negarei que realmente eu seja uma pessoa doentia, mórbida aliás, vítima da peste negra incurável, fatal do Romantismo, e que seja mentalmente anormal, tendo a alma envenenada por leituras de Goethe, Poe, Blake e outros absurdos, mas isso em momento algum afetou meu estado de consciência, talvez o tenha tornado até mesmo mais profundo, se levarmos em conta que a realidade é uma ilusão, e os homens, marionetes controlados por cordinhas.

Mas o que ocorreu foi o seguinte...Serei extremamente sintético... Sendo eu um indivíduo intensamente sensível, portanto totalmente ultrapassado para nossa miserável e pós-moderna época, nos 14 dias de sono ininterrupto, vivi as mais diversas e arrebatadoras sensações do além-mundo, estando completamente alheio a tudo o que ocorria na humanidade (felizmente, estava livre de tanta mediocridade vulgar). No último dia da longa crise de sono, estando pairando em meu quarto, enquanto o corpo jazia inerte no leito,, percebi que de um quadro magnífico colocado na parede, desprendeu-se uma gigantesca borboleta negra. Esclareço que a borboleta era parte da pintura, não era um ser vivo, era uma imagem, ao menos até o instante de desprender-se. Mas o fato é que o inseto voou por todo o ambiente com uma leveza melíflua de uma elegância mágica. A atmosfera de meus aposentos impregnou-se de densas auras sobrenaturais. A borboleta pousou ao lado de meu corpo adormecido e num piscar de olhos metamorfoseou-se em belíssima mulher de negras asas. Mulher de asas? As mulheres sempre possuem asas. Ou de anjo ou de galinha.

O ente feminino beijou-me com sublime e avassaladora paixão, e senti na alma a chama dos beijos que eram pousados na minha boca, e nunca, jamais, minhas emoções a(s)cenderam-se em tão elevado grau, imaginei-me transportado ao palácio de amor do Anjo Anael. A bela mulher, em seguida, abrindo suas enormes asas sombrias, avançou até meu espírito, trazendo consigo todos os espectros e flamas fantasmagóricas do sentimento exacerbado aos máximos níveis das possibilidades humanas. Do poço de seus olhos transfiguravam-se irradiações de febre, e um vulcão explodiu em meu peito, eu apaixonava-me terrível e catastroficamente. Não era uma mulher, era uma fada. Se boa ou má, ainda não sei dizer.

Em seqüência, através de um infinito carinho enigmático, realizando um gesto misterioso e que não descrevo, disse-me gravemente: “Agora conhecerás o que ocorreu no mundo físico”. Em segundos, tudo ao meu redor transformou-se em uma paisagem desolada, e soube, através da mirífica...deusa? que a 3ª Guerra Mundial principiara, que uma bomba atômica caíra próximo à minha cidade, que tudo fora destruído, e todos estavam mortos, inclusive eu, e que o meu quarto não era meu quarto, e que o meu corpo não era o meu corpo... eram formas psíquicas advindas de um coração inflamado, visões virtuais das efígies de uma imaginação alucinada... Abracei-me à fada de asas negras e, letárgicos, partimos rumo ao Desconhecido...

Meu Blog: www.poemasdoterminoecontosdofim.blogspot.com

Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 14/09/2006
Reeditado em 20/09/2006
Código do texto: T239841