Magia Pesada I - The Unforgiven

Acordou com gosto de álcool na boca. Vinho demais na noite passada! “A festa estava boa”, foi a última coisa que pensou antes de fechar os olhos. “Por que que eu fui nessa festa?”, foi o que pensou assim que abriu os olhos de novo com uma dor de cabeça de arrebentar. Por sorte, encontrou apenas a escuridão. Passou a língua pela gengiva e teve certeza de que colhia as últimas gotas de álcool na boca. Começou a se levantar, sentindo a cabeça zunindo.

Estava com a mesma roupa da noite anterior e nem arrumara a cama para se deitar. Olhou para o relógio em forma de zumbi. Quase dez da manhã. Já perdera algumas aulas da faculdade. Nem estava se importando com isso. Só fazia faculdade porque a irmã vivia enchendo a paciência.

Coçou a cabeça e aproximou-se da porta. Abria ou não? A irmã sempre tinha aquela mania excêntrica de abrir todas as cortinas para deixar a luz entrar. “Melhora o ambiente”, ela dizia com aquela cara de quem precisa mesmo é de um quarto escuro para resolver alguns problemas íntimos. Ele odiava. Ficava com dor de cabeça e sabia que ia doer demais assim que toda aquela luz tocasse seus olhos. Tinha a teoria de que o álcool reagia com a luz e provocava pequenas explosões dentro da cabeça dele.

Abriu a porta de olhos fechados e sentiu um pouco da luz sobre o corpo. Imaginou-se queimando e se transformando em cinzas. Riu da idéia e depois saiu andando pelo corredor. Chegou até a sala, olhou para a mesa já arrumada. Nada de café da manhã. Mas também não fora ali para isso. Lembrou-se de que na verdade precisava era de um banho. Então voltou pelo corredor, foi tomar seu banho, só para depois ir para a cozinha preparar um café.

Já estava cortando o pão quando ouviu aquele barulho irritante que volta e meia o acordava:

- Huá... Loro quer biscoito. Huá... Loro quer biscoito.

Olhou para o papagaio, depois para a faca, para o papagaio, outra vez para a faca. Não! Teria que agüentar demais da irmã se matasse o Pedro III. Pedro... Quem coloca o nome de um papagaio de Pedro? E ainda mais terceiro?

- Cala a boca, Pedro.

- Huá... Vai à puta que pariu! – disse o pássaro.

Quase engasgou com o pão. De novo não! Outro papagaio que aprendera um palavrão com ele. Já era o terceiro. A irmã com certeza não o perdoaria. O papagaio xingou mais uma vez e depois uma terceira. Reconheceu aqueles sintomas. Os papagaios só xingavam quando o maldito pombo chegava. Levantou-se e foi para a varanda. Já encontrou o pombo branco lá, apenas esperando. O animal levantou a pata para mostrar o bilhete. Ele pegou a anotação e abriu. O pombo esperou.

- Pode ir, porra.

O pombo deu-lhe as costas e depois levantou vôo como uma criatura nobre deixando um reles plebeu mal educado para trás.

As palavras da anotação o deixaram intrigado. Ele era do tipo que se intrigava com aquelas palavras. Nunca ficava irritado ou assustado. Ficava intrigado. Talvez por isso a mestra o escolhera. Ou por isso ou por causa do Dom. Voltou para o quarto ainda pensando na anotação. Vestiu uma camisa do Iron Maiden, calça preta e tênis. Colocou a mochila nas costas e se olhou no espelho. Aos vinte e dois anos, era um sujeito de pele clara, olhos muito escuros e cabelos pretos longos. Tinha a face brusca, sem delicadezas, no entanto essa masculinidade na expressão atraía as mulheres. Achava melhor ser assim do que parecido com os vocalistas de metal melódico.

*****

A primeira idéia dele foi ir conversar com Lordy o Semigótico, mas ele estaria no trabalho e sempre ficava nervoso quando alguém do círculo aparecia lá. Ele se julgava um anti-herói disfarçado ou algo assim. Uma vez tentara explicar sobre a teoria de na verdade ser um feiticeiro gótico disfarçado entre os humanos, cuja verdadeira identidade não era nem de feiticeiro, nem de humana, nem de gótico, mas algo mais sombrio. Tinha algo a mais na história que era difícil de lembrar porque não estava prestando atenção na fala toda, mas sim nas pessoas com que ele conversaria agora.

Entrou na loja Sol e Lua já com fome. Precisou pegar três ônibus para chegar ali. Era uma droga morar do outro lado da cidade e ter que andar tanto para encontrar os membros do seu Círculo. Mas valia a pena falar com aquelas duas. Nem precisava falar, mas só observá-las já era tudo.

A loja Sol e Lua atendia a toda pessoa com tendência para o esoterismo ou que gostasse de quinquilharias com motivos místicos. Havia muitas plantas para melhorar a energia local, sóis e luas de madeira pendurados no teto e estrelas pintadas nas paredes de um lado, enquanto um azul claro e límpido dominava o outro. Estantes no meio da loja tinham cremes para massagem com propaganda de serem afrodisíacos e relaxantes. Havia perfumes, velas de muitas cores, livros sobre bruxaria que não prestavam para nada e ainda muitos incensos. Ele odiava incensos, mas tentou não dar importância para aquele cheiro irritante, pois sempre havia muita mulher na Loja Sol e Lua.

Encontrou primeiro Sol, sempre com aquele jeito cativante e o belo sorriso para receber as pessoas. Era loira, com cabelos pintados muito claros. Os olhos eram azuis vívidos e brilhantes. O rosto não tinha uma marca que fosse. Era liso, com um queixo pequeno e um nariz delicado. As sobrancelahs eram sempre bem feitas, finas e também claras como os cabelos. Mas de que isso interessava? Com aqueles decotes, Sol não precisava de mais nenhum detalhe.

- Ed! – ela gritou, correndo para abraçá-lo. – Quem bom que você veio!

Deu-lhe um beijo na bochecha. Nada de especial. Sol tratava todo mundo assim. Uma pena não ser só ele. Entretanto, ele não reclamaria por não ter a exclusividade. Os abraços sempre compensavam.

Lua estava atendendo uma cliente e apareceu pouco depois. Era idêntica a irmã em quase tudo, exceto que seus cabelos eram muito mais claros, quase brancos, e não tinha o brilho excessivo nos olhos, mas algo mais apagado e frio.

- Oi, Ed – cumprimentou ela, dando-lhe um beijo leve. – Está precisando de alguma coisa?

Ed olhou para as duas. Sol estava sempre vestida com saia cheia de estampas com flores. Usava roupas claras quase sempre decotadas. Tinha um leve bronzeado, apesar da pele clara. Lua usava roupas pretas com pingentes e brincos prateados. Também adorava um decote. Ed adorava os decotes delas. Todo mundo adorava os decotes delas.

- Recebi um recado da Dama de Ferro.

Lua cruzou os braços e fez um olhar de cansaço para a irmã.

- Você sabe que ela não gosta que a chame assim – falou Lua. Tinha uma voz contida, um jeito calmo, entretanto frio, afastado do mundo.

- Puro stress. Seguinte. Preciso que vocês vejam a mensagem.

Enfiou a mão no bolso e procurou por um tempo. Tirou uma embalagem de chiclete vazia, depois o papel com a lista de compras que deveria ter feito na semana passada, encontrou por acaso o telefone de uma garota que conhecera no sábado anterior e por fim pegou o papel com a anotação. Estava tão amassado que mais parecia dinheiro de bêbado.

Entregou para Lua e esperou que ela lesse. Sol encostou-se à irmã e começou a ler. Colocou a mão na boca surpresa.

- Por Danna, Ed! Quem você acha que é? Tá tudo bem com você? – perguntou a loira.

- O que você fez agora? – inquiriu Lua.

- Fiz nada não. Tô na minha há um tempaço! Queria saber se vocês sabem de algo que eu não sei.

Sol parou, pensou e balançou a cabeça. Lua quase virou os olhos de tédio.

- Quer saber se a gente sabe de algo que você fez enquanto estava bêbado e não se lembra? Que eu me lembre apenas uns mundanos, principalmente mulheres, têm motivo para te matar por causa do último sábado.

- Nem me fale! Meu cotovelo ainda dói.

- Acha que pode ser o pessoal de terno e seus zumbis? – perguntou Sol.

- Num sei. Mas por que eles?

- O quê? Depois do que você fez ainda pergunta – falou Lua.

- Nem me fale! Ainda dói.

- E os caras de saia? – perguntou a loira, com uma vontade genuína de ajudar o amigo.

Ed parou para pensar. Olhou para o teto e tentou se lembrar qual fora a última vez que tivera problemas com o pessoal de saia. Nenhuma vez depois da entalação do crucifixo. E se eles não fizeram nada na ocasião...

- Acho que não.

- Você irritou alguém, com certeza. Você sempre irrita alguém, Ed. Por que não tenta uma de suas profecias? Pode ajudar.

- Não! – negou, estendendo as mãos em sinal para ela parar. – Nem fala que atrai. – Olhou para os lados, como se algo pudesse vir de repente. – Fica falando aí que eu levo um sneak attack de repente.

Um cliente entrou na loja e um barulho de sinos chamou a atenção das duas. Sol correu para atender, deixando Ed e Lua sozinhos. Ela soltou um ar de irritação.

- Vem. Vamos lá dentro que eu te ofereço um chá e a gente conversa.

Ele estendeu o braço.

- As damas primeiro.

Ela passou por ele sabendo que não era cavalheirismo. Sabia que haveria um par de olhos o fitando quase como duas flechas. Passaram pelo balcão, entraram na sala onde elas tomavam café. Havia uma mesa, uma pia e um armário. Ela tocou no armário e de repente uma escada apareceu sob os pés deles. Subiram rumo a um céu estrelado até parar em um quarto com paredes que pareciam o céu noturno. Era coberto de estrelas e nem parecia ter fim. Sentaram em uma roda de almofadas com uma pequena mesa no centro. Lua pegou um bule de onde saía um pouco de vapor. Parecia que o chá estava quase pronto.

Ed nem viu que estava sendo servido. Sua imaginação sempre flutuava naquele quarto. Era um lugar para que as idéias aflorassem e não se sentissem limitadas. As deles estavam bastante afloradas.

- Tente pensar em algo sem invocar uma profecia.

Ele tentou.

- Alguma coisa?

“Várias”, ele pensou.

- Nada – ele disse.

- Foi alguma coisa que você fez. Talvez os espíritos possam ajudar.

- Qual deles? – perguntou Ed, preocupado e olhando para os lados. Aquele era um ótimo lugar para um sneak attack.

- Algum que você ainda não tenha ofendido. Tenho que pensar.

- Melhor deixar para lá. Meu pescoço ainda dói.

Lua soltou outro ar de enfado.

- Pode ser alguém mortal mesmo, não acha? Melhor pararmos de pensar no sobrenatural ou nos caçadores.

- Quem sabe? É tanta gente que te odeia.

- Até você? – perguntou ele, olhando por cima da xícara de chá. Estava quente e gostoso.

- Inclusive eu.

- Então eu tenho esperanças... – falou sem querer.

- O quê?

- Sua irmã está vindo.

De fato, ela estava. Uma parte do quarto se iluminou e um canto de pássaros, daqueles que se houve em finais de semana na fazenda, só durante a manhã, se espalhou. O lado direito do aposento se tornou um céu claro e sem nuvens. Só havia uma sombra e ela surgiu ao lado de Sol, logo passando para o lado escuro, perto de Lua. Ed ficou entre a luz e a escuridão e olhou para a sombra.

- E aí, Lordy?

- Trevas para você, Eduardo o Blasfemador.

- Tá sabendo?

- Sim.

As sombras ao lado de Lua começaram a tomar mais forma revelando um jovem de cerca de vinte anos, vestido em um terno negro com pequenas fitas no lugar da gravata. Os cabelos eram curtos, exceto pela franja que tinha dois longos feixes que o faziam parecer um personagem de desenho animado japonês. Os olhos escuros, com sombras, sempre ficavam meio desaparecidos.

- A Morte sempre vem para quem a procura, Eduardo.

Ed deu de ombros.

- E eu lá procurei ela. Ela é que fica na minha cola. Larga de ser ciumento se ela não dá bola para você.

- Não preciso ter ciúmes da Morte. Ela abraça a todos e...

- É uma vadia promíscua que tá afim de mim.

- Pare com isso. Eu não desrespeito seus deuses.

- E nem pode desrespeitar o Deus Metal.

- Parem logo... os dois – exigiu Lua. Sol já estava servindo chá para todos, sentada com as pernas para o lado e sorrindo, esperando a discussão acabar.

Tomaram o chá calados. Ed começou a ficar preocupado, pois sabia que no fim do chá todos deveriam apresentar suas idéias para então começarem a agir. Sol já devia ter chamado a irmã mais nova delas para cuidar da loja. Era uma menina metida a wicca com os mesmos decotes, só que sem o poder mágico das duas. Droga... Agora é que estava preocupado mesmo.

Lua colocou a xícara na mesa.

- Não fui agraciada com nenhuma idéia.

Sol colocou a xícara na mesa.

- Sugiro recorrer a um espírito da morte.

Ed estava quase colocando a xícara na mesa por impulso. Seria um desastre.

- Sugiro procurarmos Madame Angústia – interrompeu Lordy, coloandoa xícara na mesa primeiro.

A xícara de Ed estava quase tocando a mesa. Então Lua se virou para o Semigótico.

- Realmente, a sibila pode ajudar. Ela só pedirá algo em troca.

Eles se levantaram depressa para se prepararem para ir até a sibila. Saíram correndo do quarto e o ambiente tomou aquela posição típica de Ed, mas ele não viu qual era. Nunca via, pois estava de olhos fechados colocando a xícara na mesa.

-Aacho que deveríamos mandar o Lordy embora para transar com o pessoal do necrotério, vocês deveriam chamar sua irmã aqui para cima e a gente...

- Ed, venha! – chamou a voz de Sol, tão distante tanto no tempo quanto no espaço. Quando ele abriu os olhos de novo, estava na sala de café. A porta estava fechada e as gêmeas estavam arrumando suas bolsas. Lua usava uma bolsa preta a tiracolo e Sol uma bolsa de couro, que mais parecia feita por um hippie.