A formação do cavaleiro: Perceval ou O Conto do Graal The Formation of the Knight: Perceval or Conte du Graal

Perceval ou o Conto do Graal, a última e mais enigmática novela de Chrétien de Troyes, apresenta importantes inovações com relação às obras anteriores do poeta. Diferentemente dos protagonistas das outras novelas de Chrétien, Perceval não se torna cavaleiro a fim de realizar façanhas militares ou conquistar o amor de damas da corte. Sua missão é mais elevada: encontrar o Graal, que faz nesta obra sua primeira aparição literária.

A morte do autor, ocorrida por volta de 1185, interrompeu a redação do Perceval e deixou sem resposta questões que têm suscitado calorosos debates entre os especialistas: qual era exatamente a forma e o significado do Graal criado por Chrétien? Qual teria sido a intenção do autor ao vincular o ideal cavaleiresco a esse misterioso objeto? Cada um dos continuadores de Chrétien imprimiu uma orientação pessoal à seqüência da novela, porém nenhuma dessas continuações corresponde com certeza ao projeto inicial do autor.

Certo é que o Conto do Graal inaugura uma nova etapa no ciclo das novelas arturianas. Para apresentar a inédita concepção de cavalaria que estava propondo, Chrétien de Troyes julgou necessário descrever detalhadamente como Perceval tornou-se cavaleiro — e não um cavaleiro qualquer, mas o escolhido para encontrar o Graal. Assim, a primeira parte da novela apresenta uma espécie de modelo de educação cavaleiresca; já a segunda parte da obra, onde são narradas as aventuras de Galvão, sobrinho do rei Artur, propõe uma série de exempla das noções ministradas ao protagonista durante sua formação. “Le Perceval c'est la genèse d'un chevalier”, notou Alexandre Micha (1976: 123).

O objetivo deste trabalho é explicitar o método pedagógico proposto por Chrétien de Troyes na primeira parte da obra e o resultado por ele visado.

Etapas do processo educativo

Descendente de uma nobre linhagem de cavaleiros, Perceval foi criado numa floresta, isolado de todo convívio social. Dessa forma, sua mãe pretendia protegê-lo e evitar que ele seguisse o mesmo caminho do pai e dos irmãos mais velhos, todos cavaleiros que haviam sido mortos em combate. Perceval cresce, portanto, como um garoto rústico e ingênuo, inconsciente de sua origem e identidade, em tudo oposto, enfim, ao que se esperaria de um membro da Ordem da Cavalaria, o título mais honroso reservado aos jovens da nobreza no século XII. Verdadeira tábua rasa, pedra bruta que será necessário lapidar para fazer surgir o herói, Perceval é a figura mais adequada para exemplificar cada passo da formação de um cavaleiro.

O aprendizado do protagonista inicia-se quando, ainda na floresta, ele avista alguns cavaleiros de passagem. Maravilhado pela beleza das armaduras, o jovem os toma por anjos e, com espontaneidade infantil, pergunta-lhes quem eram e o que faziam. Os homens, rindo daquele garoto simplório e ignorante que agia “come une beste”, respondem que são cavaleiros do rei Artur.

Ao voltar para casa, o rapaz manifesta o desejo de ir à corte do “rei que faz cavaleiros”. A mãe, percebendo que não conseguiria demovê-lo de seu projeto e temendo pela sorte do filho, decide instruí-lo acerca das primeiras noções do código da cavalaria. O cavaleiro deve socorrer as damas que necessitarem de ajuda, honrando-as. Ao solicitar o amor de uma donzela, deve ser cortês: caso ela lhe conceda um beijo, deve dar-se por satisfeito; se ela lhe oferecer um anel, ele deverá usá-lo como penhor de fidelidade, de acordo com o costume da época. Por fim, a mãe aconselha-o a buscar a companhia de homens sábios e a freqüentar igrejas e mosteiros. Terminados os preparativos da viagem, Perceval parte, ansioso para cumprir seu destino.

O rapaz se esforça por seguir à risca as recomendações da mãe, mas logo fica evidente que ele não as compreendeu bem. Após cavalgar o dia inteiro, Perceval encontra uma rica tenda armada, onde uma donzela descansava. A mulher estremece de medo diante do intruso, que a agarra e beija à força; por fim, arranca o anel que ela trazia no dedo, declarando ter sido instruído pela mãe a proceder dessa forma. Humilhada, a donzela chora, enquanto Perceval despede-se dela dizendo tolices: “Damizela, desejo-vos todos os bens! Agora vou embora, bem pago. Sabeis dar beijos bem melhores que as camareiras da casa de minha mãe, pois não tendes a boca amarga” (1992, p. 35).

“(...) Pucele, bien aiez

Or m'en irai bien paiez,

Et molt meillor baiser vos fait

Que chambriere que il ait

En toute la maison ma mere,

Ca n'avez pas la bouche amere” (1959, v. 723-728).

Chegando à corte de Artur, Perceval dá novas mostras de sua parvoíce: entra no paço montado e sequer cumprimenta o rei. Artur está pesaroso, pois um inimigo seu, o Cavaleiro Vermelho, havia questionado sua autoridade, roubando uma taça de suas mãos e despejando vinho sobre a rainha Genevra. O rapaz não dá importância às queixas do rei; sai do castelo às pressas e, ao alcançar o Cavaleiro Vermelho, ordena arrogantemente que lhe entregue a armadura. O cavaleiro tenta feri-lo, mas é atingido por um golpe fatal de dardo na cabeça. Yvonet, um membro do séquito de Artur, assiste a tudo e é encarregado de devolver a taça roubada ao rei.

Perceval veste a armadura conquistada por cima das roupas dadas por sua mãe: embora já parecesse um cavaleiro, em seu íntimo Perceval continuava a ser um menino, e ainda tinha muito que aprender. Após deixar a corte de Artur, ele chega ao castelo de um nobre cavaleiro chamado Gornemant de Goort. O anfitrião ensina ao jovem a arte da montaria e o manejo da lança e da espada e, ao cabo do treinamento, Perceval é consagrado cavaleiro. Antes que ele partisse, no entanto, o velho dá um último conselho, sábio e cheio de conseqüências: tendo notado a ingenuidade do rapaz, que dizia tudo o que lhe vinha à mente e citava constantemente os conselhos maternos, Gornemant proíbe-o a falar desse modo, para que não o tomassem por louco ou inconveniente.

Buscando o caminho de volta para a casa da mãe, Perceval chega ao castelo do Bom Refúgio, onde conhece a princesa Brancaflor. Ela pede ajuda a Perceval, pois seu castelo estava sendo sitiado por Clamadeu das Ilhas, que pretendia forçá-la a casar-se com ele. O jovem tem, então, oportunidade de empregar pela primeira vez suas habilidades cavaleirescas: desafia e vence os sitiantes, demonstrando força e bravura incomuns. Brancaflor apaixona-se pelo protetor e, aparentemente, Perceval atinge a maturidade, pois provou sua coragem e conquistou o amor de uma nobre donzela.

Entretanto, o herói está ansioso por saber notícias da mãe, e parte novamente. Ao fim de uma jornada longa e cansativa, Perceval avista um magnífico castelo, onde poderia passar a noite. O senhor do palácio — conhecido como Rei Pescador, visto que se tornara paralítico em função de um ferimento, e desde então seu único passatempo era a pescaria — recebe-o muito bem e oferece-lhe uma espada. Em seguida, durante a ceia, Perceval vê um estranho cortejo passar pela sala: primeiramente, um valete que portava uma lança de cuja ponta vertia uma gota de sangue, seguido por mais dois criados com candelabros, abrindo passagem para uma donzela que tinha nas mãos um graal luminoso, feito de ouro fino e ornado com diversas pedras preciosas, seguida por outra donzela que trazia um prato de prata.

O autor não explica o significado da misteriosa procissão: caberia a Perceval descobri-lo, porém a interrupção da novela deixou o enigma inconcluso. A tradição posterior costuma identificar a lança que sangrava com a lança de Longino, soldado que perfurou o flanco de Cristo na Cruz, e o Graal com o cálice utilizado por Cristo na última ceia, mas não é certo que Chrétien de Troyes tivesse esta intenção.

De qualquer modo, Perceval queda mudo diante de todas essas maravilhas. Ele não pergunta por que a lança chora sangue nem para que serve o Graal, pois se lembra dos conselhos de seu mestre de cavalaria e teme fazer papel de ignorante ou grosseiro diante do Rei Pescador. No dia seguinte poderia perguntar a algum criado o que significava aquilo tudo, pensa; ao acordar, entretanto, nota que o castelo está vazio. Resignado, reinicia a viagem de volta para casa.

No caminho, Perceval encontra uma donzela que esclarece em parte o sucedido: se ele tivesse perguntado o que significava o Graal e quem era servido por ele, o Rei Pescador teria sido curado e a paz voltaria a seu reino. Após repreender duramente a falta de curiosidade do cavaleiro, a jovem pergunta como ele se chamava; “e ele”, diz o autor, “que não sabia o próprio nome, subitamente soube, e respondeu que era Perceval, o galês” (p. 71). A donzela revela então que era sua prima e dá notícias sobre a mãe de Perceval, dizendo que ela havia morrido de tristeza logo depois da partida do filho.

O reencontro de Perceval com o séquito de Artur poderia ser considerado o termo do processo educativo do jovem galês, pois ele é recebido pelo rei como um cavaleiro respeitável, que já havia dado mostras de coragem e cortesia. Após o banquete oferecido em sua homenagem, no entanto, chega à corte uma mensageira de aspecto horrível: corcunda, olhos pequenos como os de um rato, barba de bode e dentes amarelados. A mulher condena mais uma vez a falta de Perceval, demonstrando que a formação do cavaleiro ainda estava incompleta, visto que ele falhara na missão para a qual havia sido eleito: colocar a pergunta acerca do Graal e restaurar a saúde do Rei Pescador.

Fica ressaltada assim a importância da última etapa educativa. Fundamental, pois destinada a suprir falhas e omissões anteriores na formação de Perceval, ela ocorre quando o processo educativo do cavaleiro já estava aparentemente terminado. Depois da aparição da mensageira na corte de Artur, os cavaleiros se dispersam em busca de aventuras. O narrador acompanha longamente as peripécias vividas por Galvão (v. 4816-6216) e diz apenas que Perceval vagou sem rumo definido por cinco anos, até que, um dia, quando se encontrava num deserto, avistou um cortejo de cavaleiros e damas penitentes. Era Sexta-Feira Santa e Perceval é tomado pelo arrependimento. Depois de uma verdadeira aula de catecismo, os cavaleiros aconselham-no a procurar um santo ermitão que vivia na floresta.

Após escutar a confissão de Perceval, o eremita afirma que ele não havia sido capaz de fazer a pergunta a respeito do Graal por ter pecado, causando a morte da mãe ao abandoná-la. Em seguida, o santo homem esclarece quem é servido pelo Graal: é o pai do Rei Pescador, que não deixa seus aposentos há doze anos e se alimenta exclusivamente da hóstia que lhe é servida no Graal. Além disso, o rapaz fica sabendo que o ermitão e o pai do Rei Pescador são seus tios, irmãos de sua mãe. Só quando Perceval entra definitivamente no seio da comunhão da Igreja através da confissão, da eucaristia e da penitência, é que o processo educativo do cavaleiro pode ser considerado concluído. A partir de então, Perceval estaria apto a resolver a aventura do Graal — desfecho que Chrétien não chegou a narrar.

Método educativo

Tendo percorrido sinteticamente as etapas da educação do cavaleiro, pode-se verificar agora qual o método educativo proposto por Chrétien de Troyes. Há uma passagem em que Gornemant de Goort revela quais seriam as condições necessárias para o aprendizado:

“Il covient a toz les mestiers

Et cuer et paine et us avoir;

Par ces trois le puet on savoir” (v. 1466-1468).

“São necessários coração, esforço e prática: é através deles que se pode aprender uma profissão” (tradução nossa). Cuer (coração), paine (esforço) e us (prática, hábito) são, portanto, os pré-requisitos exigidos no processo educativo.

Antes de mais nada, é necessária uma predisposição do sujeito: é o que o autor chama cuer. Perceval, descendente de uma linhagem de cavaleiros, possui uma inclinação inata a seguir o mesmo caminho do pai e dos irmãos mais velhos, conforme demonstra o fascínio sentido pelo rapaz no momento em que, quando ainda era inconsciente de sua identidade, encontra pela primeira vez os cavaleiros de Artur na floresta em que cresceu. Deve haver, pois, um sentimento de atração, uma correspondência entre o educando e o que lhe é ensinado; ou seja, a proposta que é feita ao aprendiz deve estar de acordo (do lat. cor: cuer) com sua natureza. Por isso, Perceval aprende tudo muito rápido: “A cousa estava em sua natureza. Quando natureza e coração se juntam, nada é mais difícil” (p. 44).

“Car il li venoit de nature,

Et quant nature li aprent

Et li cuers del tot i entent,

Ne li puet estre rien grevaine

La ou nature et cuers se paine” (v. 1480-1484).

Sobre a base da propensão natural, entretanto, é preciso trabalho: paine. O mesmo Gornemant de Goort diz que “homem pode sempre aprender o que quer, desde que se empenhe” (p. 44):

“Ce qu'en ne set puet on aprendre,

Qui i velt pener et endendre” (v. 1463-1464).

E Perceval se empenha, pois percebe que o que lhe ensinam está de acordo com sua índole mais íntima. Ainda que motivado por essa correspondência, o jovem sabe que sua formação é fruto de uma conquista laboriosa. Sendo que Chrétien de Troyes visava apenas a indicar o percurso, o método e os objetivos da formação de um cavaleiro, sua exposição é esquemática e os passos são dados com grande rapidez. Os erros cometidos por Perceval — retratados nos episódios do roubo do anel da donzela na tenda, da primeira visita do jovem à corte de Artur e da mudez do protagonista durante a procissão do Graal — conferem verossimilhança ao processo educativo, demonstrando que Perceval não se transformou de repente. Embora procurasse obedecer aos conselhos recebidos, o rapaz, que ainda não compreendia o sentido do que lhe havia sido dito, simplesmente termina por realizar o oposto do desejável: “on ne devient pas cortois si vite”, observou Alexandre Micha (1976: 124).

E, finalmente, para aprender algo é necessário prática, us. A fim de ensinar Perceval a montar e a utilizar as armas do cavaleiro, Gornemant primeiramente mostrou como proceder e, em seguida, fez o garoto repetir seus gestos até assimilá-los bem através da prática. O próprio mestre afirma a certa altura que não há vergonha em não saber fazer o que nunca se fez nem se viu algum outro fazer:

“Et quant vos onques nel feïstes

Ne autrui faire nel veïstes,

Se vos faire ne le savez,

Honte ne blasme n'i avez” (v. 1469-1472).

A mãe de Perceval também já havia constatado que, para aprender uma habilidade, é preciso vê-la ser praticada — e também ouvir falar a respeito, acrescenta — repetidas vezes:

“Mais merveille est quant on n'aprent

Ce que on ot et voit sovent” (v. 524-525).

O aprendizado se baseia, portanto, na apresentação de um modelo, e o aluno aprende imitando o exemplo. É por isso que Bonnie Buettner também se refere à imitação em sua análise do episódio da Sexta-Feira Santa: após encontrar os cavaleiros e as damas penitentes, “the hero will imitate their actions exactly” (1980: 418).

Além disso, o processo educativo de Perceval pressupõe a fidelidade do aprendiz aos conselhos recebidos. Essa é uma virtude que Perceval possui: prova disso é que os mestres e suas orientações estão constantemente presentes na memória do rapaz e constituem seu critério de ação diante das circunstâncias que encontra. O fato de Perceval ter cometido erros por seguir cegamente as instruções recebidas não elimina a importância pedagógica da obediência na obra, pois a trajetória do herói pode ser descrita justamente como a lenta percepção do verdadeiro significado dos ensinamentos ministrados.

No primeiro encontro com os cavaleiros de Artur, a reação imediata do rapaz é de fascínio: a beleza das armas e das armaduras o encanta. Mais tarde, ao encontrar o Cavaleiro Vermelho, seu impulso é apoderar-se de sua armadura, e não lhe ocorre a possibilidade de defender a honra do rei. Somente algum tempo depois é que Perceval começa a compreender e a observar o código de conduta da cavalaria, o que demonstra que seu interesse evoluiu da admiração da beleza exterior, meramente sensível, para um envolvimento que exigia a introjeção do sentido de ser cavaleiro. Quando o herói encontrar pela segunda vez a corte de Artur, agirá de forma muito diferente.

A trajetória de Perceval é estruturada em episódios paralelos e complementares, de modo a ilustrar o lento processo de amadurecimento do protagonista. No relacionamento com Brancaflor, apesar de sua inexperiência em matéria amorosa e de sua excessiva timidez, o rapaz já não repete as grosserias e as injúrias cometidas contra a donzela da tenda; do mesmo modo, ao encontrar os cavaleiros penitentes na Sexta-Feira Santa, Perceval não age da forma infantil e inconseqüente com que abordara os cavaleiros no primeiro encontro na floresta. O amadurecimento do herói é melhor ilustrado, contudo, através da comparação entre a sua primeira aventura (o confronto com o Cavaleiro Vermelho) e a definitiva (a busca do Graal). Ambas têm objetivos semelhantes: no primeiro caso, devolver a taça roubada a Artur, restabelecendo assim sua autoridade, que havia sido posta em xeque pelo Cavaleiro Vermelho; no segundo caso, fazer a pergunta sobre o Graal para restituir a saúde ao Rei Pescador e, conseqüentemente, restaurar-lhe a capacidade de governar seu reino. O nível de compreensão do protagonista, contudo, é completamente diferente nas duas situações.

O processo de amadurecimento do herói não permite apenas adquirir familiaridade com as regras do código da cavalaria, mas resulta também na descoberta de sua identidade. É significativo que o nome de Perceval seja mencionado pela primeira vez somente na cena do encontro com sua prima, após o fracasso no castelo do Rei Pescador. Até então, o rapaz é designado apenas como o “filho da viúva”; ele mesmo ignorava o próprio nome. Quando a prima pergunta como ele se chamava, no entanto, Perceval “devine”, ou seja, adivinha seu próprio nome:

“Et cil qui son non ne savoit

Devine et dist que il avoit

Perchevax li Galois a non” (v. 3573-3575).

Esta descoberta, uma verdadeira revelação, significa que o conhecimento de sua missão é o que permite ao jovem tomar consciência da própria identidade. Conclui-se, portanto, que o objetivo da educação de Perceval é duplo: permitir a solução da aventura do Graal, o que significa, ao mesmo tempo, oferecer condições para a aquisição da autoconsciência. Sendo que o processo ocorre de forma aparentemente casual mas seqüenciada, parece haver um plano oculto predeterminado para o percurso do herói: com efeito, a educação de Perceval é fruto de um chamado misterioso, uma vocação.

Conteúdo Ensinado

A formação do cavaleiro não se resume ao aprendizado do manejo das armas e da arte de bem montar. Os ensinamentos transmitidos pela mãe de Perceval e por Gornemant de Goort esclarecem que o código da cavalaria requer a observância de uma série de preceitos bastante exigentes: ao cavaleiro compete socorrer qualquer dama ou donzela em necessidade e servir a Deus; ele deve ser misericordioso e leal no combate e não está autorizado, em hipótese alguma, a recuar diante de um desafio ou faltar à palavra dada; é preciso que seja prudente e não fale demais. Em suma, a educação de Perceval não foi um mero adestramento militar, mas visou à formação integral da personalidade, a fim de preparar o jovem a ingressar na “ordem mais alta que Deus criou no mundo. É a Ordem da Cavalaria, que não admite vilania” (p. 46):

“La plus haute ordene avec l'espee

Que Diex ait faite et comandee:

C'est l'ordre de chevalerie

Qui doit estre sanz vilonnie” (v. 1635-1636).

Chrétien de Troyes apresenta diversos personagens e situações que exemplificam as noções ministradas. Keu, o senescal de Artur, é o protótipo do cavaleiro descortês: falastrão e orgulhoso, zomba de Perceval e não hesita sequer em esbofetear a donzela que o havia saudado por ocasião de sua primeira passagem pela corte de Artur. Galvão, ao contrário, é o modelo de cortesia mundana. Nas aventuras que protagoniza na segunda parte da obra, ele é apresentado como um cavaleiro nobre e gentil, corajoso e audaz. Entre outras façanhas, Galvão desfaz o encanto do Leito da Maravilha, aventura à qual nenhum cavaleiro jamais sobrevivera, e luta para defender a honra da Donzela das Mangas Pequenas, conforme manda o código da cavalaria.

No entanto, embora se refira ao sobrinho de Artur sempre de modo elogioso, o narrador não oculta os sutis indícios de incoerência no comportamento do famoso cavaleiro. Comparado ao herói do Graal, Galvão apresenta um traço de frivolidade: cortejando nobres donzelas com sua palavra fácil ou defendendo sua honra entre os pares nos jogos da corte, ele parece estar em seu elemento. Já Perceval nunca se sente à vontade, nem mesmo quando está em Bom Refúgio junto de Brancaflor ou durante os festejos em sua homenagem na corte de Artur: há sempre que partir ao encalço de algo que ainda falta. Em suma, se Galvão representa o perfeito cavaleiro mundano, Perceval é caracterizado por um chamado misterioso; um sente-se completo na sua limitação, ao passo que o outro é marcado por um impulso que o leva à incessante busca de um objetivo obscuramente intuído.

A diferença entre Perceval e Galvão é patenteada sobretudo pela forma com que ambos vivenciam o amor. A cena do envolvimento com a irmã do rei Escavalon apresenta o sobrinho de Artur como um galanteador hábil, conhecedor das regras do amor cortês, em oposição a Perceval e sua inépcia no trato com as mulheres. Diferentemente de Galvão e dos protagonistas das novelas anteriores de Chrétien de Troyes, o móbil da trajetória de Perceval não é o amor, mas sim a solução do enigma do Graal. Para estar à altura de sua missão, o jovem teve de aprender algo mais que as regras da cortesia e da cavalaria: foi necessário passar por um autêntico processo de conversão.

A experiência religiosa, com efeito, é o elemento mais claramente identificado com a educação no Conto do Graal. Quanto às habilidades cavaleirescas e à educação cortês, pode-se afirmar que a formação de Perceval já estava concluída por ocasião de sua segunda visita à corte de Artur. No âmbito religioso, entretanto, não parece haver termo no processo educativo: o cavaleiro deve sempre procurar igrejas, mosteiros e monges. A fé é entendida, pois, como um vínculo estreito que deve ser renovado cotidianamente, de acordo com as orientações do eremita: “para tua penitência irás à igreja todas as manhãs, e antes de qualquer outra cousa” (p. 111).

“Et va en non de penitance

Al mostier ainz qu'en autre leu

Chascun main, si i avras preu” (v. 6442-6444).

O episódio do encontro com o ermitão na Sexta-Feira Santa, última etapa formativa do protagonista, demonstra que a experiência religiosa é considerada um elemento essencial para a formação da consciência da personalidade — que é, conforme vimos, o objetivo do processo educativo —, uma vez que, perdendo a memória de Deus e esquecendo o conselho materno de cultivar o relacionamento constante com mosteiros e religiosos, Perceval “não tinha a menor idéia do dia, da hora e do tempo, tão vazio estava seu coração” (p. 109):

“ (...) n'avoit nul espans

De jor ne d'heure ne de tans,

Tant avoit en son cuer anui” (v. 6261-6263).

Ou seja, ele passou os cinco anos de alienação sem memória do motivo pelo qual havia se tornado cavaleiro, agindo de forma inconsciente. Tanto é assim, que nesse período ele não voltou a procurar o castelo do Rei Pescador a fim de corrigir seu erro, conforme havia prometido ao deixar a corte de Artur. Para Perceval, sem a fé, a cavalaria perde seu significado: note-se que o autor, ao comentar os cinco anos de esquecimento de Perceval, não deixa de mencionar que ele não havia perdido suas qualidades como cavaleiro, mas negligencia a narração de suas façanhas, limitando-se a declarar que, nesse intervalo, o herói travou 60 combates, tendo saído vitorioso de todos eles. Sem a fidelidade a Deus, em suma, as aventuras cavaleirescas não são objeto de interesse e não são sequer dignas de serem narradas. Quando encontra o tio ermitão, o próprio Perceval resume do seguinte modo tudo que havia feito desde que partira da corte arturiana: “n'onques puis fis se mal non” (v. 6367), ou seja, “nada pratiquei senão o mal” (p. 110). E, para reconquistar a dignidade, Perceval não teve de realizar novas proezas cavaleirescas ou tornar-se mais cortês. Precisou confessar-se.

Erich Köhler acredita que a necessidade da confissão e da reconversão de Perceval depois do período de esquecimento da própria identidade prova o fracasso da pretensão da ética cortês na novela. Enquanto Ivã, protagonista de Le Chevalier au Lion (O Cavaleiro do Leão) passa igualmente por um período de alienação e readquire a consciência exclusivamente através de meios oferecidos pela cortesia e pela cavalaria, o restabelecimento de Perceval pôde realizar-se apenas mediante a intervenção da graça. Por isso, Köhler diz que “Perceval est le sauveur sauvé”. Seria este também o motivo de o amor não constituir mais a base da estrutura narrativa do Conto do Graal: “dans Perceval c'est Dieux qui prend la place de l'amour” (1984: 219-220).

Sendo assim, é natural que a mudez do cavaleiro durante a procissão no castelo do Rei Pescador seja explicada por um pecado cometido anteriormente. A falta — abandonar insensivelmente a mãe, fazendo-a morrer de tristeza — teve por conseqüência, de acordo com o eremita, um entorpecimento da razão, que impediu Perceval de fazer a pergunta devida: “Quando o ferro que ninguém enxuga sangrou diante de teus olhos, teu pecado congelou-te a língua” e “tua razão não despertou” (p. 111).

“Pechiez la langue te trencha,

Quant le fer qui onc n'estancha

De sainier devant toi veïs,

Ne la raison n'en enqueïs” (v. 6409-6412).

Se, como ficou dito acima, o objetivo da educação de Perceval foi prepará-lo para fazer a pergunta acerca do Graal, o eremita esclarece, com toda autoridade, que isso significa ensinar-lhe a usar adequadamente a razão. Com efeito, o amadurecimento do cavaleiro se realiza mediante o lento aprendizado do uso da razão, que permite a Perceval enfrentar as circunstâncias que encontra com crescente discernimento. A diferença de Perceval entre o início e o termo de sua formação é o fato de ele ter se tornado capaz de apreender os dados da realidade avaliando-os com propriedade.

Os erros cometidos ao longo do percurso demonstram precisamente que não adianta obedecer de forma mecânica às instruções recebidas: é necessário antes compreender sua essência. E é preciso acima de tudo ter sempre em mente sua missão, o motivo que alicerça e dá significado às aventuras cavaleirescas. Tal fundamento, que não se limita aos preceitos da ética cortês e do código cavaleiresco, mas os ultrapassa, é representado pelo Graal — misterioso objeto que, mesmo talvez ainda não tendo sido associado por Chrétien de Troyes à paixão de Cristo (ao menos não com a clareza com que mais tarde o será, a partir da Estoire dou Graal de Robert de Boron, composta por volta de 1200), possui, de qualquer forma, propriedades mágico-religiosas que permitem identificá-lo como símbolo da transcendência.

O uso da razão para descobrir a essência da missão cavaleiresca se concretiza, pois, na pergunta que o protagonista deveria fazer acerca do Graal. Os efeitos milagrosos produzidos por uma questão a ser posta pelo herói eleito é um motivo que já se encontrava em antigos contos celtas e continuou a ser aproveitado por diversas novelas de cavalaria posteriores ao Conto do Graal. Em rápida referência a uma delas — o Perceval do Pseudo-Robert de Boron escrito entre 1205 e 1210, uma das numerosas retomadas do tema criado por Chrétien — Mircea Eliade observou que o significado da pergunta que Perceval deveria fazer era chamar a atenção para o fundamento da existência, manifestando interesse pelo “real por excelência, o sagrado, o Centro da vida”. A doença do Rei Pescador e o definhamento de seu reino seriam, portanto, conseqüências de uma “indiferença metafísica” que a pergunta de Perceval vinha justamente suprir (ELIADE, 1991: 52).

É justamente a indiferença pelo maravilhoso que desfilava diante de seus olhos o erro cometido por Perceval no castelo do Rei Pescador. O silêncio e a falta de curiosidade de descobrir o porquê da procissão do Graal representam a negligência com o próprio sentido de ser cavaleiro. De certa forma, a missão de Perceval seria a de, colocando a pergunta diante do mistério e do transcendente, resgatar a própria instituição da cavalaria, preparando-a para novos desafios. Por isso, segundo o narrador, Perceval “cala mais do que deveria. A cada prato servido, via o Graal passar novamente à sua frente, todo descoberto. Mas não sabe a quem o servem. Não tem o menor desejo de o saber” (p. 67):

“Mais plus se taist qu'il ne covient,

Qu'a chascun mes que l'on servoit,

Par devant lui trespasser voit

Le graal trestot descovert,

Ne ne set pas cui l'en en sert

Et si le volroit savoir” (v. 3298-3303).

Conclusão

A fim de explicitar o novo modelo de cavalaria que estava propondo, Chrétien de Troyes descreveu o surgimento do novo cavaleiro e, para fazê-lo, criou um herói cuja formação deveria partir do zero. Perceval encarna as virtudes da simplicidade e da ingenuidade, que se opõem ao orgulho e à certa dose de arrogância que caracterizam Galvão. O contraste entre os dois também serve ao propósito de esclarecer a nova imagem do cavaleiro perfeito, pois Galvão representa o modelo de cavalaria mundana que Perceval deveria não apenas igualar, mas também superar. É por isso que, em síntese, a educação de Perceval ocorreu em duas etapas distintas. Num primeiro momento, Perceval aprendeu as regras da cortesia e da cavalaria, igualando-se aos melhores cavaleiros de Artur; a cena da procissão do Graal, no entanto, esclarece que isso ainda não era suficiente. Em seguida, a iniciação de Perceval foi completada pela experiência religiosa, de forma que o cavaleiro pôde descobrir definitivamente qual era a sua identidade e missão — missão esta que não se resolvia no plano das realizações militares ou amorosas, mas sim numa busca espiritual. Símbolo do esgotamento da ética cortês e de sua incapacidade para desvelar, por si só, o sentido último das aventuras cavaleirescas, o Graal traduz a tentativa de encontrar um novo fundamento ao ideal da cavalaria.

Uma vez que Perceval é apresentado como o eleito destinado a resolver a maior das aventuras do reino de Logres, sua formação deve ser considerada exemplar e, portanto, representativa do nascimento de uma nova concepção de cavalaria, que seria destinada a transformar completamente o gênero da novela arturiana. Aproveitando a riqueza de sugestões e a inconclusão do Conto do Graal, alguns escritores do século XIII retomaram o tema da busca do Graal por um cavaleiro escolhido, espiritualizando-o ainda mais. Na Queste du Saint Graal (c. 1225), bem como na posterior versão portuguesa, A Demanda do Santo Graal, Galvão será condenado por sua incapacidade de elevar-se sobre os interesses mundanos, e Perceval será um dos poucos a ver seus esforços recompensados, juntamente com Galaaz e Boorz.

O Perceval de Chrétien de Troyes ainda está longe, porém, de ser como o Galaaz da Demanda; ele apenas prepara o terreno para este, que será o representante máximo do novo ideal cavaleiresco, verdadeira encarnação do Cristo-cavaleiro.

Raúl Cesar Gouveia Fernandes
Enviado por Poeta Dom Casmurro em 23/08/2010
Reeditado em 07/07/2017
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