Magia Pesada II - Can I play with madness

Ed coçou o queixo começando a lamentar por ter aceitado a proposta de falar com a sibila. Ele sempre se confundia com o caso de sibilas, bruxas, profetisas sagradas, wiccas e sacerdotisas. Cada uma era uma, mas tudo igual.

- Então é aí que vive a bruxa falante? – perguntou com um ar de desinteresse tão grande que nem parecia ser por causa dele que o círculo estava ali.

Estavam diante de uma boate de góticos no centro da cidade, em uma das ruas mais escuras da área. Não havia árvores, mas prédios imensos projetavam suas sombras para a calçada, dando sempre a impressão que estava escuro e úmido o dia todo. À noite, transmitiam uma sensação de paranóia e claustrofobia. Estavam prontos para cair na cabeça dos transeuntes e enquanto não caíam, deveria haver pessoas perigosas observando a partir de suas janelas.

- É uma sibila... – corrigiu Lordy, falando com respeito.

- Ah... sibila... wicca... fada do dente... tudo igual.

- Lógico que não. As sibilas são o poder feminino da profecia, percebendo a vontade divina. As wiccas são o poder feminino junto aos deuses em questão de magia. E...

- Então... tudo mulher mal comida enchendo o saco. Quero dizer. As wiccas não. Elas têm uns rituais legais.

Sol estava rindo de Ed como se as opiniões dele fossem de uma criança. Lua cutucou Lordy para que se preparasse logo para entrarem e terminarem com aquilo. O Semigótico ajeitou o terno e retirou um espelho do bolso para verificar as franjas. Depois voltou ao carro e pegou a bengala. Estilo era o que não faltava nele. Olhando pálido, em meio ao concreto sombrio e opressivo daquela rua, não havia imagem que se encaixasse melhor no sonho de um suicida.

Olhou para a placa da boate. Era negra com escritos púrpuras indicando que estavam na Dancing Death, recinto dominado pela Madame Angústia, a sibila mais poderosa da cidade. Para Lordy, ela era mias do que uma lenda. Era uma inspiração que dominava seu sonhar e seu viver. Ainda mais influente sobre a alma dele do que sua mestra.

- Acho que a Dama de Ferro não vai curtir a gente estar aqui. Ela volta e meia dá uns reclamões dessa Madame Chorona.

Lordy quase se virou, mas Lua encostou em seu ombro e o empurrou para frente. Sol pegou o braço de Ed e o puxou. Entraram como um casal. Ele parou de falar para senti-la roçando em seu braço enquanto falava o quanto aquela decoração a deixava desanimada. Eram gárgulas, teto preto, correntes, luzes de tons escuros e uma quantidade de sombras que não faziam bem a uma mente acostumada com a luz. Lua e Lordy se misturavam ao ambiente como camaleões. O Semigótico os guiava, passando por alguns funcionários que limpavam o lugar para prepará-lo para a noite. No bar, havia alguns góticos bebendo e conversando. Lordy os cumprimentou e recebeu reverências em resposta.

Entraram em um corredor cujas paredes estavam quase que totalmente cobertas por correntes prateadas. O teto tinha teias de aranha que eram quase reais. Ed, o mais alto do grupo, levantou a mão para tocá-las, mas Sol deu-lhe um tapa de leve e sussurrou para não tocar em nada.

Pararam em frente a uma porta de ferro pintada de preto. Parecia a entrada de uma cela medieval. Lordy colocou a mão sobre o metal e começou a falar:

- O Círculo dos Quatro Sentidos vem respeitosamente pedir um encontro com Madame Angústia.

Lordy estava de cabeça baixa, ainda com a mão na porta, esperando a resposta. Ali ficou por mais uns cinco minutos, tempo em que Lua permaneceu imóvel, sol observou tudo com cuidado e admiração e Ed bocejou e ajeitou a cueca debaixo da calça.

- O Círculo D´Aqueles que Não foram Perdoados é bem-vindo. Entrem – disse uma voz feminina de trás do metal.

A porta foi aberta por uma pessoa totalmente vestida de preto. Ed achou que era só um louco com um lençol preto na cabeça, mas bem que poderia ser uma sombra. Ficaram diante da sibila. Ela estava sentada em uma mesa grande, coberta por um pano rubro. O único acessório diante dela era uma bola de cristal a qual a mulher fitava com bastante interesse. Tinha olhos escuros que pareciam aprofundados pela maquiagem pesada. Os cabelos longos eram lisos e brilhavam sob a luz que piscava como se a energia lutasse ara chegar ao ambiente.

- Sejam bem-vindos – disse ela com seus lábios pintados de preto.

Lordy se ajoelhou diante dela. Lua se curvou e Sol deu um sorriso radiante, dando um oi com a mão aberta. Ed ficou olhando para a figura com o lençol porto.

- Tá olhando o que? Tá de palhaçada, é? – perguntou ele para a figura.

- É esse o Blasfemador? – perguntou a sibila, sem desviar os olhos da bola de cristal.

Lordy baixou a cabeça afirmando que sim e manteve os olhos no chão.

- Ele tem sorte de que você suga e controla os espíritos negros que ele atrai com essas blasfêmias.

Aquilo era um elogio e Lordy permitiu que um sorriso leve brotasse no canto de seus lábios.

- Apenas sigo a escuridão que me defende desse mundo hipócrita, Madame.

- Aí, Lordy. Vamos embora porque esse cara aqui tá de palhaçada comigo – chamou Ed, ainda encarando a figura de preto.

- Teme a escuridão, Blasfemador?

- Quem, eu? – perguntou Ed, parecendo finalmente perceber a sibila. Ela não era muito bonita, o que logo o fez perder o interesse totalmente por estar ali. Estava começando a se sentir como Dante na Divina Comédia, só que com um guia irritante e em um lugar bem mais monótono que o Inferno.

- É você sim... Aquele que Blasfema. Voz do Diabo.

Ed olhou para Sol e para Lua.

- A gente veio aqui para ouvir poesia? Droga. Terminem aí.

Retirou os fones de ouvido da mochila e começou a procurar uma música boa no mp3 player. A sibila não demonstrou irritação diante da petulância, mas Lordy ergueu-se irritado e tomou o aparelho da mão de Ed.

- Comporte-se como um homem – exigiu o Semigótico.

Ed franziu o cenho e arrancou o aparelho da mão do colega com violência. A figura de preto tentou intervir, mas o mago virou-se para ela com os olhos brilhando de raiva.

- Saia daqui! – gritou, com uma voz gutural que fez o estranho se afastar. Virou-se para Lordy e o segurou pelo colarinho. – Nunca queira me dar lição de moral só porque está diante de seus amiguinhos que juram que sabem o que é escuridão só porque chafurdam nela.

Afastou o Semigótico, quase o jogando contra a figura de preto, que por sua vez tentou se mover, porém foi parada por um aceno da sibila.

- Lua – disse Ed, abrindo espaço para a feiticeira.

Ela se colocou respeitosamente em frente à sibila. A jovem demonstrava respeito sem ter a subserviência que Lordy exibira.

- Viemos em busca de ajuda.

- Eu sei. Eu sou a sibila.

“Diabo! Então porque não corta essa lenga-lenga e vai direto ao assunto”, pensou Ed, dando uma olhada furiosa para Lordy e a figura de preto.

Lua entregou o papel amassado para Lordy, que era o único que tinha permissão para se aproximar da sibila. O Semigótico amassou o bilhete com um movimento de punho como se isso devesse significar alguma coisa que Ed imaginou ser apenas alguém que achava que estava encenando Entrevista com o Vampiro. Lordy deu dois passos e entregou o papel com as mãos abertas em conjunto como se estendesse uma bandeja.

Madame Angústia não desdobrou o papel, mas apenas tocou-o. Respirou depois levou os dedos às têmporas e olhou para a bola de cristal.

- Quero algo em troca da minha profecia. – passou a mão na bola de cristal em um movimento quase sexual. Seus olhos fitaram Lua e nem precisaram se desviar para Lordy para que ele baixasse a cabeça. A feiticeira continuou encarando a sibila.

- Diga seu desejo e o círculo decidirá se está em nosso poder atendê-lo.

A voz de Lua soou fria e poderosa, mas sem arrogância. A sibila deve ter gostado, pois sorriu. Passou um dedo nos lábios pretos e parou para pensar.

- Não... Vocês fazem a oferta.

“Agora que a gente tá fudido. Temos nada para dar pra ela...”, pensou Ed. O grupo se olhou, cada um tentando imaginar o que poderia ser entregue. A opinião veio de Lordy.

- Uma das profecias do Blasfemador – sugeriu.

Lua soltou uma risada quase imperceptível e cruzou os braços, olhando para Ed. Sol tapou a boca.

- De que elas podem servir para uma sibila? Eu vejo mais do que qualquer homem é capaz de profetizar.

Lordy baixou a cabeça e olhou para o irmão de círculo, esperando sua reação. Lua cedeu espaço e sol se aproximou do mago.

- Ed, não pensa nisso. Não faz isso.

- Tá louca, Sol! Eu que não vou profetizar nada!

- Ofereçam algo que possa me interessar então – falou a sibila, com uma voz de aborrecimento de quem tem o tempo perdido.

Ed deu de ombros e começou a dar as costas. Sol deu-lhe o braço para saírem juntos enquanto Lua balançava a cabeça com o mesmo sorriso furtivo no canto dos lábios.

- Não! – disse Lordy, erguendo a voz como raramente fazia. – Ed... É a você quem interessa isso. E nossa mestra não o enviou esse bilhete à toa. Isso deve envolver a todos nós, não apenas a você. Faça pelo círculo.

Sol segurou o baço do amigo para que ele não se virasse violentamente. Os meros segundos em que ela o conteve serviram para deixar passar o primeiro ímpeto de raiva que surgiu nos olhos dele. O mago fechou as pálpebras e quando abriu estava mais calmo.

Lordy se virou para a sibila.

- Ele enxerga o presente e os ditados – falou. Voltou-se para Lua. – Confirme.

Os dois se encararam. Ela não desviou os olhos dele. No meio daquela frieza, houve um brilho leve, como o sol refletindo no ártico. Se aquilo assustou o Semigótico – muitos diriam que deveria – ele corajosamente não demonstrou nada.

- É verdade. Entregue a profecia e vamos resolver isso, Ed.

O mago soltou-se cuidadosamente de Sol e se adiantou.

- Primeiro me dê o que eu quero.

A sibila riu arrogantemente. Era para demonstrar que quem mandava ali era ela e que só entregaria a informação porque queria. Começou a passar a mão na bola de cristal.

- Pare com isso. Não há visão nenhuma nessa bola!

- Acha mesmo? – perguntou a sibila. - Pois saiba que a escuridão o persegue por causa dos feitos negros que deixou que saísse sua alma através de sua língua.

- Pois você irá pagar por essa trapaça se não fizer logo o que deveria. – O mago tinha vontade de quebrar as paredes e deixar aquele lugar escuro que sussurrava para libertação de seus demônios. Estava aflito para tomar alguma atitude.

- Trapaça? Pois vou lhe mostrar a verdade, aprendiz.

Madame Angústia se levantou e as luzes que piscavam finalmente cederam. A escuridão tomou o ambiente e todo o calor foi desaparecendo, sugado pelo frio que só deveria brotar do coração da sibila. Dava para sentir a corrente de calor seguinte na direção dela. A mulher se alimentava da energia da sala, mas a consumia de um modo que não gerava nem dispersava nada, apenas a enviava para um buraco preenchido pelos sentimentos mais vazios do coração.

- Espere pelos demônios que o encantoam e veja o silêncio profundo o cercando com dedos ardentes que o alcançarão, antes a luz se aproxime... Seu futuro é queimar em um lago de fogo...

As luzes voltaram a piscar e as palavras ecoaram um pouco mais antes que tudo fosse silêncio e penumbra mais uma vez.

- Aí está o que pediu.

- É isso? – perguntou Ed. Já estava tão acostumado a ouvir que queimaria no fogo do Inferno e que havia um encosto nele que só o que lhe interessou foi o ar condicionado ligado no máximo e o efeito da luz apagando bem na hora de a mulher se levantar.

- A expressão de surpresa estará no seu rosto quando tudo se realizar.

Ed não se impressionou ainda. ‘Trapaceira”, pensou. Então olhou para os outros e fez sinal para saírem para que fizesse seu trabalho. O restante do círculo saiu. A figura de preto ficou.

- Tá de palhaçada, é? Sai daí, ô forro de mesa de funeral.

A luz cedeu mais uma vez à escuridão e na próxima pisca já estavam apenas o mago e a sibila se encarando.

- Espero que tenha um pergaminho aí.

*****

Sol caminhava em círculos suspirando preocupada. Olhava para a porta da boate depois andava mais um pouco na calçada. Trombou algumas vezes com algumas pessoas, mas qualquer irritação causada desaparecia quando ela pedia desculpas com aquele sorriso imenso e radiante.

- Pare de andar, Sol – disse Lua, olhando para Lordy. Os dois estavam se encarando desde que saíram da boate.

- Mas é uma profecia do Ed, Lua! Uma profecia! Não acredito que ele topou! A gente não deveria ter deixado. O Lordy não deveria ter proposto isso.

- Mas propôs – comentou Lua.

- É para o bem do círculo. Ed tem que aprender a se sacrificar por nós ao invés de ser apenas um estorvo. Se vai sofrer com isso o problema é dele.

Sol balançou a cabeça preocupada. Pensava no que dizer quando viu Ed ser jogado na calçada. Gritos vinham de dentro da boate como fantasmas tentando escapar de suas âncoras passionais. O mago levantou-se retirando a sujeira que havia ficado presa e arrumando a mochila nas costas. Pegou um pergaminho que havia caído a seu lado e guardou no bolso mais largo que ficava perto dos joelhos.

Lua adotou uma posição de defesa ficando entre a porta da boate e os amigos. Colocou a mão na bolsa, pronta para pegar um talismã ou um componente material de algum feitiço. Sol se aproximou para ver se ele estava bem. Lordy andou para dentro da boate a tempo de ver a sibila com a maquiagem borrada. Voltou-se para os colegas, passando por Lua e segurou Ed pelo colarinho.

- O que você ditou para ela? – perguntou irritado.

- Solta ele, Lordy – pediu Sol, preocupada com o que poderia acontecer. O Semigótico se afastou alguns passos, deixou uma expressão de asco escapar debaixo das franjas e depois começou a andar para longe.

Sol se certificou de que Ed estava bem e saiu para alcançar Lordy, Lua se aproximou do mago.

- O que você profetizou para ela?

Ed não disse nada. Apenas entregou-lhe o pergaminho. Havia letras vermelhas com alguns garranchos que se olhados rapidamente poderiam até ser confundidos com hebraico, mas na verdade era só um português mal escrito.

“Você caminha sozinha na escuridão em uma trilha obscura e quando a luz começa a bruxulear você se sente ansiosa... Quando todas as lendas estiverem na cidade, para garantir um meio de ganhar a vida... traga sua filha para o abate.”

Lua guardou o pergaminho, olhando para os lados para se certificar de que Lordy não estava vendo. Sorriu para Ed.

- Ela é uma trapaceira – falou.

- Você não tinha nada melhor para dizer não?

- Só digo o que me vem na cabeça. E só tenho a própria música do diabo aqui. Por isso digo que ela é uma trapaceira.

- Sei. Ela estava jogando com a loucura... E quem brinca com a loucura...

- ...embriaga-se com a amargura.

E foram procurar os outros membros do Círculo. Começavam aí a mostrar porque eram imperdoáveis.