O Boneco

Desde quando era uma tosca tora de madeira, já sabia que se destinava ao estrelato. Sob os cuidados de mãos habilidosas, foi esculpido, montado e pintado, recebendo a estampa de um grande sorriso vago em seu rosto. Olhos e bocas articulados, um casaco vermelho, uma calça verde escura e uma grande cartola sobre a cabeça, tal qual sempre sonhara. Olhos desatentos vacilariam na certeza de que já estava pronto, mas um peculiar detalhe ainda viria para completar a obra: com muito menos destaque, inúmeros fios foram fixados ao longo de todo seu corpo, cada qual se enraizando em um de seus membros, e, a partir dali, seguiam para um lugar qualquer, longe do alcance de qualquer reflexão ou entendimento do boneco.

Sua carreira foi meteórica. Em um mês, saltou da condição de árvore à de estrela principal de um espetáculo na tenda central do circo. Um sucesso estrondoso de bilheteria. Todavia, a despeito do que cobram os rigores do ofício cênico, nunca se preocupou com aulas de interpretação. Tampouco se prolongava a ler ou discorrer sobre a vida, o céu e o inferno. Embora não pareça, essa falha não se dava necessariamente por falta de vontade ou desvio de caráter, muito menos por algum brilhantismo na área, mas sim pela simples e cômoda condição de adaptar-se às facilidades da vida, uma faceta tão humana que não deixaria de manter seu reflexo nem mesmo em uma réplica de madeira. Ocorreu que, perante o nervosismo de sua primeira apresentação, ao confrontar-se com os mil olhos de uma platéia, a pobre marionete paralisou-se. Foi então que, pela primeira vez, os fios vieram ao seu socorro, conduzindo-o conforme sua própria sinfonia. As linhas o estendiam, comprimiam e rodavam, guiando o boneco pelo palco, e tudo que lhe foi cobrado foi a deliberada e completa entrega à estranha força que o conduzia. Essa escolha, de fato, foi muito fácil, e o pagamento, feito de prontidão. Assim, já não carregava mais a responsabilidade do sucesso da apresentação sobre seus ombros, mas os aplausos ainda eram seus por direito, já que não havia quem os reivindicassem, além de si. E em questão de dias, acabou por se acostumar com a presença e os serviços dos misteriosos fios, e como tudo o que é costume, esqueceu-os.

Após o episódio da estréia, subiu ao palco inúmeras vezes, sempre na constância de soltar-se e perder-se na balada das finas cordas. E a rotina seguiu-se até que, certo dia, seu pequeno mundo apagou-se. Enquanto fazia a cena de abertura de seu espetáculo, os olhos estalados do pequeno ator recaíram sobre uma bela boneca de pano que se sentava graciosamente no colo de uma garotinha da platéia. Atônito, perambulou como bêbado por seus longos cabelos dourados e se perdeu nos profundos olhos negros de vidro, para então encerrar a divina jornada rendendo-se a um leve sorriso que o mantinha fatalmente refém. Pela segunda vez em sua curta existência, o boneco experimentou o nervosismo no palco, embora desta vez apenas um par de olhos fora o suficiente para a tarefa. Mas a aflição, desta vez, nem mesmo os cordéis puderam aliviar. Após o show, sua mente apenas buscava a boneca dos cachos cor de ouro. Não sabia o porquê, e muito menos de onde veio isto, mas queria estar ao seu lado.

Dias e dias arrastaram-se, e em cada espetáculos os olhos do boneco corriam pelas arquibancadas procurando esperança. Passadas semanas, em meio a sua costumeira ronda, sentiu seu coração de madeira parar ao reencontrar aquele tenro sorriso estampado entre traços de pano, que já tanto se fazia presente em sua vida. Tomando impulso, partiu em sua direção, mas apenas alcançou a resposta dos fios presos ao corpo, que o puxaram violentamente na direção oposta. Tentou novamente, mas o passo que seguiria para a arquibancada acabou tornando-se uma pirueta seguida por gargalhadas e aplausos da platéia. Durante toda sua vida, foram as linhas as responsáveis por trilhar os seus caminhos. Agora não seria diferente. O boneco já não ouvia nada, apenas sentia o baque surdo que se faz parceiro dos momentos de desespero. Por anos, nunca havia se sentido prisioneiro. Preferiu o comodismo à dura face da realidade, e apenas agora, com essa nova perspectiva, pode perceber que os seus antes salvadores fios eram na verdade seus cárceres. Pensou o melhor que pode com sua mente frustrada, e, sob o olhar caloroso da boneca, elaborou um plano de fuga: usaria a hora do agradecimento, o momento em que os fios mais se afrouxavam, para saltar e fugir do palco. Deveras nada genial, porém certos momentos não cobram brilhantismo. O primeiro fechar de cortina anunciava o fim do espetáculo. Ao se reabrirem, os aplausos eclodiram e, como esperado, as linhas se cederam para dar espaço a uma reverência. No mesmo instante, a marionete tomou toda coragem e fôlego que pode em seu peito envernizado e se arremessou rumo ao nada. Entretanto, as cordas, mesmo frouxas, ainda o prendiam, fazendo com que seu salto se tornasse uma queda livre rumo ao duro chão do picadeiro, longe dos olhos da boneca de pano. Com a queda, o boneco quebrou suas pernas, um braço e o coração.

Naquela noite, sob o céu enluarado, a fogueira do acampamento do circo recebeu mais lenha do que de costume.