Vida de Cachorro


Na ecografia, a confirmação: Lana está prenha e são três cachorrinhos.
Agora, era só alegria, cuidar da futura mamãe para garantir-lhe uma gestação saudável e esperar pelos bebês...
“Esperar pelos bebês”... Esta frase não me saía da cabeça... Quanto desejei esperar bebês... O problema é que depois eles nascem, crescem e torram a paciência da gente até o último dia de nossas vidas. Assim, nunca considerei minha condição maternal uma possibilidade. Porém, sempre desejei estar grávida, ver crescer o ventre, os seios, parir, amamentar...
Agora, via isso acontecer em minha linda Beagle e senti uma pontinha de inveja. Afinal, a gestação canina era exatamente o que eu sempre desejei: dois meses grávida, quarenta dias amamentando e depois, os moleques passam a fazer parte do bando, o líder cuida de todos. No nosso bando específico, os líderes éramos eu e o marido, sendo que ele mais manda que cuida. Ou seja, acabei ficando só com a parte chata da estória. Enquanto pensava nisso, via a barriguinha dela crescendo na proporção da minha cobiça.
Um dia, eu e ela estávamos sentadas na grama. Ela olhava-me com aquela devoção que os cães sabem expressar por seus donos... Admirava minhas mãos, os movimentos dos dedos, a articulação da voz... Acho que, no fundo, ela queria ser como eu.
E, assim pensando, uma invejando a outra, ambas tocando a burlesca imagem de São Francisco de Assis anão, algo aconteceu. Fechei os olhos e, quando voltei a abri-los, foi a mim mesma que vi. Um tanto desbotada, eu diria.
– O que houve? – perguntei surpresa.
Fiquei mais assustada ao ouvir o que eu realmente disse:
– Au! Au! Au!
– Mamãezinha? – ouvi minha própria voz dizer, num ritmo estranho, destreinado.
– Lana? – perguntei, num grunhido esganiçado.
– Tudo lindo... – ela murmurou.
Olhei para ela. Estava fascinada com o que via à sua volta. Olhou as próprias mãos, balançou os dedos, lambeu-os. Acarinhou os cabelos.
De repente, ficou de quatro e saiu cheirando tudo. Lati para ela:
– Não!
Ela parou. Estranhamente, ela me entendia, entendia meus latidos.
– Fica em pé! – gritei.
Ela não entendeu.
– Sossó! – insisti.
Este era o comando para que ela se erguesse nas patas traseiras. Ela atendeu e pôs meu corpo numa posição socialmente mais aceitável para um ser humano.
Enquanto eu me preocupava em não deixá-la me colocar em situação vexatória, senti uma coisa se mexendo dentro de mim.
Lembrei-me então, da razão que me fez desejar estar no lugar dela por algum instante na vida.
– Os filhotes! – gritei, extasiada.
Ela sorriu, mas antes que pudesse dizer alguma coisa, meu marido chegou da lateral da casa chutando a bola para mim. Ela saiu desesperada atrás. De quatro!
Por sorte, ele se distraiu com os cachorros do vizinho e não a viu fazer isso. Resolvi ir eu atrás da bola e aproveitar, dar-lhe uma sabão.
Cheguei primeiro, claro. Com controle de tração nas quatro patas é até covardia. Nem a barriga já meio pesadinha atrapalhou. Parei entre ela e a bola e lati:
– Você quer me matar de vergonha!? Você agora sou eu, sua doida! Não pode fazer essas coisas. Sei lá que feitiço foi esse, mas, se algum dia destrocarmos, não quero estar internada num hospício. Trate de se comportar como uma pessoa. Melhor! Trate de se comportar como eu!
Ela me olhou confusa e veio me lamber.
– Para! – gritei. – Senta!
Ela sentou no chão, as duas mãos apoiadas entre as pernas. Tive que rir. Com ternura. Era inacreditável o quanto ela era ela mesma, embora ocupasse meu corpo.
Tentei ser bem clara. Sei que os cães têm o vocabulário e a capacidade de raciocínio compatíveis aos de uma criança de três anos...
– Lana, você agora é a mamãezinha. Você tem que ser igual à mamãezinha. Entendeu?
– Bola?
– Não. Nada de bola!
– Sossó?
– Sossó! E não cheira.
– Não... cheira?
Percebi que ela não entendeu. Cheirei a bola, para mostrar a ela.
– Bola! – ela gritou, feliz!
– Não! Bola, não! Cheirar!! – e cheirei uma flor.
– Cheira... – ela cheirou também.
– Isso! Cheira não!
– Não?
– Não.
Alguma coisa alertou-me de que não estávamos sozinhas. Sexto sentido canino? Olhei para o lado e meu marido nos observava, sorrindo. Ela também olhou para ele, que vinha caminhando em nossa direção:
– Poderia jurar que vocês estavam conversando... – ele disse.
Ela levantou-se e correu para ele. Aos saltos.
“Pronto...”, pensei. “Vai lamber a cara dele toda.”
– Lana! Não! – gritei com todas as minha forças.
Ela parou a menos de um metro dele. Olhou para mim:
– Mamãezinha... braba? – fez um biquinho...
O marido riu:
– É! Não sei o que você disse a ela, mas acho que nossa futura mamãezinha está brava com você...
Ela voltou na minha direção.
– Não lambe! Sossó! Carinho! – implorei.
Felizmente ela entendeu. Parou ao meu lado, abaixou-se e fez um afago na minha cabeça.
– Hum... gostoso! – murmurei.
– Gostoso... – ela repetiu.
Ele já estava ao lado dela:
– Quem? Eu? – perguntou a ela.
– Fala “é”! – disse a ela, que me obedeceu.
Ele a abraçou e tascou-lhe um beijo. Ainda bem que ele foi rápido o bastante para que tivesse o domínio da situação. Ela buscou minha aprovação com o olhar.
– É beijo! É bom. Isso pode!
Ela sorriu.
– Bom... – murmurou.
E tentou beijá-lo novamente. Ele deu-lhe uma palmada no bumbum:
– Deixa de saliência na frente da Laninha! – brincou.
Ela sorriu amarelo. Óbvio que não entendeu nada.
– Depois te explico. – eu disse – Fala “vamos!”.
Ela falou e nos encaminhamos para a churrasqueira.
Passamos o resto da tarde ali, eu sempre dando orientações a ela sobre como agir. Ao anoitecer o marido sugeriu:
– Vamos entrar?
Ela levantou-se:
– Vamos!
“Menina esperta!”, pensei.
Entramos e ele serviu minha ração no pratinho. Vi que ela ia atacar o prato e parei na frente dela.
– Não!
Ela olhou-me, magoada.
– Fome!
– Eu sei. Mas não é isso o que você vai comer. Você pode fazer uma sopinha e... – pensei melhor – Esquece! Peça a ele para encomendar uma pizza!
Antes fugir da dieta do que minha cadela cozinhar.
Eles jantaram, em frente à TV. Ensinei a ela como ligar o notebook e parecer ocupada. Isso explicaria a sua pouca fluência verbal e eu aproveitei para, finalmente, ver como era a vida de cachorro. A ração foi a primeira boa surpresa. Como humana, sempre odiei o cheiro daqueles grãozinhos. Mas, meu olfato canino me permitiu observar nuances bem agradáveis. Percebi que também eu estava com fome e comi aquela gororoba com gosto.
Tive um pouco de dificuldades em beber água. Já havia observado mil vezes o movimento que os cães fazem com a língua, já havia visto em câmera lenta num programa da TV. Mas quem diz que eu conseguia? No final, fiz um biquinho e consegui sugar um pouco. Mais tarde, tentaria de novo.
Por volta da meia-noite, eles foram para o quarto e fecharam a porta. Deitei-me no colchãozinho. Logo encontrei posição. Os feios calos nos cotovelos ajudam bastante.
No escuro, deliciei-me com os movimentos dos filhotes. Era uma sensação magnífica. Agora, conseguia entender essa fixação das mulheres pela maternidade, por essa missão que nunca abracei.
O sono venceu-me rápido e leve. Qualquer ruído, qualquer movimento me despertava. Apesar desse vai e vem, despertei bem, descansada e feliz.
Fui para a porta da quarto, curiosa por detalhes sobre a noite de Lana. Passados alguns instantes, ela apareceu. Parecia agitada...
– Fome... Pizza?
– Não! Você tem que ajeitar o café.
– Café?
Segui-a até a cozinha dando as orientações. Ensinei a torrar o pão com queijo, fazer a vitamina de banana e acomodar tudo na bandeja.
– Como foi a noite? – queria saber se teria acontecido alguma coisa entre eles.
Ela não entendeu.
– Beijo? – perguntei.
– Beijo bom! – ela sorriu.
Percebi a dificuldade dessa conversa. Deixei para lá. É melhor mesmo não saber certas coisas.
Pedi a ela para abrir a porta pra mim e fui esperá-los no quintal, dando graças a Deus por estar de férias. Fico imaginando como seria a Lana numa reunião de trabalho, por exemplo.
“O-ho! E se o marido resolver jogar tênis?”, apavorei-me. Comecei a latir para ela dizer que está com dor no ombro caso ele invente de ir jogar.
Felizmente, deu certo. Passou um pouco e os dois voltaram para a churrasqueira.
Sabia que isso não podia durar muito tempo. As férias acabando, esta situação se tornaria insustentável. Consegui lembrar-me de que estávamos encostadas no São Francisco quando nos transformamos e expliquei a ela que precisávamos repetir o mesmo ritual. Foi em vão. Penso que nenhuma das duas queria realmente reverter a troca ainda. Eu queria viver esta gestação até o fim, ela ainda estava muito extasiada em ser eu.
E assim, os dias foram passando, fui ficando cada vez mais pesada, lenta e sonolenta, as maminhas endurecidas e inchadas. Uma vontade incontrolável de montar um ninho para os filhotes foi me dominando, não podia ver um trapo, que carregava para a minha caminha. Perdi a fome, mas sentia muita sede. Ainda bem que Lana havia me ensinado a beber água. Quando a hora chegou, lati para que ela viesse me ajudar. Estava inquieta, desconfortável com as contrações. Senti quando a bolsa se rompeu e depois, quando o primeiro filhote saiu, seguido da placenta.
– Morde aí! – Lana ensinou, mostrando o cordão umbilical.
Obedeci.
– Corta e come! – ela mandou.
– Comer essa coisa nojenta? – perguntei.
– Come!
Era o jeito. Cortei o cordão e comi a placenta. Até que não era ruim.
Meu marido apareceu:
– Você esqueceu as linhas e o iodo! – avisou, entregando a ela.
Ela olhou para ele, completamente atônita. Ele resolveu assumir a operação. Amarrou o cordão umbilical e desinfetou sua ponta.
O mesmo se deu com os outros filhotes. Todos lindos e saudáveis.
Em seguida, deitei-me para eles mamarem. Que maravilha! Aquelas boquinhas ávidas procurando as tetas, encontrando-as pelo cheiro e tato, uns ganidinhos, murmurinhos lindos chamando mamãe, mamãe...
Depois da primeira vez que os senti mexerem-se dentro de mim, este era o momento mais sublime que eu experimentava.
Quando eles terminaram de mamar, começaram a fazer cocô.
– Lambe! – ela mandou.
– Como é?
– “Limpa eles”!
– Ah! Não. Aí é demais. Pede ao marido para pegar um papel higiênico!
Ela riu e pediu.
Pensei comigo. Minha intenção era sentir a gestação, amamentar os filhotes. Estava satisfeita com minha mágica experiência. Agora, estava na hora de voltar ao normal. Minhas férias acabando, impossível prosseguir assim. Aproveitei que estava sozinha com ela.
– Lana! Você precisa voltar!
– Não!
– Não quer seus filhotes?
– Filhotes...
– Então...
– Não.
– Eu não vou saber cuidar deles. Eles vão morrer.
– Morrer?
E esta agora? Como explicar a morte a ela?
Não precisei. Ela entendeu que isso não era bom. O tom de voz e a energia usadas ainda fazem toda a diferença.
Olhou as mãos, passou-as pelo cabelo.
– Gosto assim. – disse.
– Depois de amanhã volto a trabalhar.
– Trabalhar... Ruim?
– Isso. Perigo.
Perigo ela entendia. Finalmente concordou. Largamos os cagõezinhos lá no ninho, voltamos ao santo, encostamos nele e nos olhamos fixamente. Fechamos os olhos e, ao tornar a abri-los, havíamos destrocado.
Dei-lhe um abraço, feliz, e a mandei cuidar dos bebês.
Fui atrás do marido e o encontrei ainda à procura de papel higiênico.
Olhei para ele, perplexa: vinte dias convivendo com uma cadela e ele simplesmente não percebeu a diferença?
Pedi o divórcio e, claro, a guarda dos cachorros.

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Texto escrito para o 6° Desafio Literário da Câmara dos Deputados - Etapa 4.
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