Triálogo
- Reconhece-te naquele corpo vagabundo? Naquela cabeça raspada? Naquela boca emudecida? E naqueles olhos encovados? Reconhece-te?
- Não, meu caro Anthonio.
-Se tu soubesses que o segredo seria esse, faria das tuas escolhas as mesmas velhas e desastrosas experiências?
- Caro Anthonio, não sei onde queres chegar...Aliás, fala-te como se soubesses de todos os mistérios da vida.
- Não, não os sei. Nem, tampouco, tenho tamanha soberba.
-Então por que ficas envaidecido ao vê-lo nessa penúria?
- Perdoe minha falta de estima. Mas não posso ter...Não; não consigo ter o menor comprazer por esse corpo degenerado...pelo que tornaste esse homem que buscou o segredo cedo demais.
- Mas tu devias deixar de ser tão cruel. Não o vejo na figura em que se tornou; mas, sim, naquilo que ele representou. Um homem é sua história. Este homem não merece ser julgado por sua mórbida aparência...não, não deve! É imoral! É injusto julgá-lo nessas condições. Olhe para trás e o veja. Lembre-se dos velhos tempos. Os tempos modernos aniquilam toda a beleza do passado. Houve um período muito fértil na vida dele. De um estrondoso processo intelectual. De experimentalismo. Não o despreze, meu caro Anthonio.
- Como és vil!
- Não, não o sou. E bem sabes muito bem o quanto tenho um apreço por ti. Mas julga de maneira tão vulgar esse homem que não posso condescender às suas perspectivas.
- És fraco! Demasiado débil. Incapaz de sentir o dissabor do cheiro da fossa cortando-lhe as vísceras.
- Essa animosidade que não te mata, te fortalece.
- Vejo o que minha vaidade não me nega. Eis tudo.
- E é dela que vossa alma sucumbirá nas trevas da ignorância. Pensa errado quando o julga.
- Este homem não necessita da minha piedade. Vós, que julgas julgar melhor que eu, vós é que o destrata com esse espírito torpe.
- Caro Anthonio, mudaste muito do que foi aquele jovem exuberante. Hoje me estorva com esse seu discurso mordaz.
- Sim, sim mudei. Mudamos sempre. Só não se transformam os medíocres que acreditam na felicidade como única beleza da vida. Vivem sob o véu da vileza dos seus pecados e ainda posam de moralistas. Julgam-se tão imaculados como as imagens que deslumbramos nas catedrais. São sórdidos! Eis tudo que são!
- És indigno de compreender a beleza da vida, posto que só valoriza dela as suas chagas.
- Engana-se. Os homens são amantes crônicos das mazelas da vida. É de onde provém todo o progresso humano que hoje desfrutas. O homem irresoluto não é capaz de enxergar das profundezas epidêmicas um futuro auspicioso, com a valorização das artes, da ciência, da guerra. As novas forças produtivas crescem desse embate com as formas econômicas, sociais e políticas mais arcaicas. Só os homens frívolos não são amantes da destruição. Pois das ruínas ergue-se um novo templo de glórias.
- Não mereces mais minha afeição por ti, caro Anthonio.
-Não julgo, de fato, merecê-la. - Mas voltando ao homem, percebe agora por que não merece, este, qualquer consagração? É demasiado desprezível.
- Desdenha-o por sua imagem decadente. sim; é cruciante vê-lo nesse estado letárgico. Porém, não é o homem aquilo que se definha com os anos de sua existência! Despreza todo seu legado!
- O destrói com vossa piedade! És tão indiferente quanto o cachorro que dobra as mesmas esquinas todos os dias!
Nesse momento, toda cortesia inicial do diálogo já não mais existia. O vociferar de suas vozes rompeu a barreira da sebe que os separava do jardim onde, humilhantemente ajoelhado, um corpo vagabundo jazia debruçado adoravelmente sobre a grama muita bem aparada; sua pele alva contrastava com o matiz primaveril das tulipas que cobriam o jardim.
Foi também nesse momento que os dois homens inclinaram coincidentemente seus olhos na mesma direção. Quando ressoou do jardim uma voz melodiosamente tímida. Quebrava-se o silêncio daqueles anos de ostracismo.
Levantou-se em direção aos dois homens e disse:
- Todo homem merece morrer aos 27 anos.
Dobrou nos calcanhares e voltou a cuidar do seu jardim.