Querela Divina ou: O Fantástico Poder do Coração Humano

Fato: o cheiro de enxofre enche o saco. Ainda mais quando você o sente todos os dias há mais ou menos alguns milhares de anos. E o Diabo ficava cada vez mais cansado da mesmice do Inferno. A rotina começou a incomodá-lo e a cada milênio que passava ele chegava mais perto da Terra. Com o seu tridente, cutucava o teto do Inferno, para tentar aliviar um pouco o cheiro insuportável de enxofre, e até para se refrescar um pouco com a água de lá de cima, já que após milhares de anos de fogo infinito, o Inferno se tornava um tanto abafado.

Mas ao longo do tempo em que, tentando fugir do Inferno, se aproximava da Terra, o Diabo nunca havia visto com seus próprios olhos o que ele tinha feito no andar de cima, e isso era um fato um tanto mal-visto entre seus ministros, generais e subordinados.

-Onde já se viu, tamanha preguiça! – Diziam os revoltosos. -- Que tipo de manipulador recusa-se a olhar sua própria obra?!

Eles pareciam não compreender que a preguiça era um pecado um tanto atraente, e o Diabo estava convencido de que os vapores de enxofre infinitamente desagradáveis estavam finalmente deteriorando o juízo de seus empregados. Além disso, ele estava consciente de que seu trabalho estava dando certo, afinal de contas o números de novas entradas no Inferno havia aumentado vertiginosamente após a sua última visita à Terra, há incontáveis centenas de anos.

Enfim, o que acabou acontecendo foi que o Diabo, temendo uma revolta desnecessária que poderia tirá-lo de seu trono, resolveu atender às exigências dos seus subordinados e ir à Terra. E além disso, seria algo interessante se livrar, mesmo que por alguns instantes, do maldito cheiro de enxofre que tanto o incomodava.

Após muita deliberação e nervosismo, os detalhes foram decididos: O Diabo encarnaria em um dos seres humanos, passearia pela Terra, veria o resultado de sua obra, daria uns retoques na moral e bons costumes, e então voltaria para o Inferno e relataria o que havia visto. Para que tais objetivos fossem cumpridos, a pessoa em quem o Diabo encarnaria teria que ser um tanto influente e de fácil acesso a tudo. Os subordinados satânicos diziam que o ideal seria um advogado, e o Diabo, após aprender tudo sobre a classe a qual ele logo se incorporaria, aceitou a sugestão.

O Diabo era o único Infernal que poderia ter acesso completo à Terra, e os seus subordinados podiam apenas ver, de quando em quando, detalhes da vida dos humanos, quando eles desciam perto do Inferno o suficiente. Por isso que eles, por saberem tudo sobre advogados, indicaram tais pessoas para a encarnação do Diabo na Terra.

E houve uma grande preocupação com a estética e a grandiosidade da viagem do maior dos Infernais.

- Que tal ás 6:66 da madrugada? No dia 66 de Junho do ano 666? – Sugeriu uma pequena criatura, que foi prontamente vaiada.

A sugestão não foi ruim, era uma data um tanto marcante. Mas era impossível, o ano 666 já havia passado, e naquele mundo as horas iam até vinte e quatro, minutos até cinqüenta e nove, e os dias até trinta e um.

Discussões foram para todos os lados, cada ministro com uma idéia nova. Mas o Diabo olhou para o relógio que marcava o tempo da Terra, e disse, com sua voz poderosa:

- Eles estão em 2004. No final de dezembro, que é o último mês do ano. Vou abrir uma exceção, e usarei o número cinco como minha bandeira. Afinal, não é muito diferente do seis. Viajarei à Terra às 5:55 da manhã do dia 5 de maio de 2005.

O salão cheio tremeu com as vozes misturadas e incrédulas de centenas de subordinados. Alguns se indignaram com a violação da tradição do seis, outros com o fato de que o Diabo havia feito eles perderem tempo em uma decisão que ele mesmo faria, alguns ministros reclamavam das duas coisas, e outros queriam apenas criar confusão e xingavam a mãe dos outros.

O Diabo, prevendo o tumulto generalizado que tomaria conta daquele salão, bateu o seu tridente no chão, fazendo o chão tremer como nunca havia tremido. Tremeu tanto, que ondas gigantes se formaram no andar de cima, e, dizem as más línguas, mais de trezentos mil humanos morreram por causa delas.

- Alguém discorda? – Disse com uma voz infinitamente poderosa, peito estufado, olhos flamejantes.

Todos ficaram paralisados, com os pêlos e cabelos esvoaçando tamanho havia sido o poder da voz do Diabo. Entreolharam-se, e um ministro no fundo do salão começou a levantar o braço. A sua mão mal havia chegado à altura de seu pescoço, uma descarga de calor imenso o transformou em uma nuvem de pó incandescente.

- Muito bem. Fim de reunião. – Disse o Diabo, assoprando a ponta do dedo, da qual saia uma coluna fina de fumaça.

Ninguém ousou dizer mais nada, e o reino do Inferno tornou-se silencioso e pacífico por cinco meses, até que o grande dia chegou.

O dia 5 de maio de 2005 foi um dia como outro qualquer. Nada especial aconteceu com as pessoas normais, mas foi um dia bem estranho para os dois melhores e únicos amigos de Jesus Silva da Silva. Para ele, o dia não foi nada estranho, pois ele estava em uma outra dimensão, de onde memórias não brotam e onde corpos não existem. Jesus não se lembra do que aconteceu no dia 5 de maio, porque ele não estava realmente lá.

Quem estava naquele corpo dolorido, faminto, sujo e trêmulo de frio era uma entidade muito, muito maior. O Diabo olhava perplexo para suas roupas. Esse corpo não era o de um advogado. Pelo menos não o de um advogado como lhe fora descrito pelos seus subordinados.

- Ô Jesus, pega ali aquela maçã, ainda num tá podre.

O Diabo se assustou quando olhou para uma outra criatura que se vestia igual a ele, apontava para uma pilha de lixo na sua frente, e olhava em seus olhos. Era com ele que ela estava falando, mas o Diabo não queria acreditar que havia sido chamado de Jesus.

- Tá surdo, filho da puta? Pega a maçã!

Ele não era um advogado. Não sabia o que era, mas sabia que não estava em uma condição muito boa. Estava absolutamente perplexo, não sabia o que estava acontecendo, o que havia dado errado. O Diabo havia se tornado Jesus, em um corpo digno de pena. Um animal veio e abocanhou a maçã que estava no meio do lixo. No momento seguinte, a pessoa que falava com ele o estapeava e gritava mil obscenidades, que não o ofenderam tanto quanto ser chamado de Jesus.

- Porra, o cachorro comeu a maçã! Tu tá chapado, Jesus?

Ser chamado de Jesus era intolerável, e o Diabo encheu o peito e quis gritar como gritava com seus subordinados no inferno. Mas ao invés de um rugido aterrorizante, que fazia tremer até mesmo a fundação da Terra, o que saiu de sua boca desdentada foi um gemido agudo, com um som de “hããããã”. A agressora, uma mulher mal cuidada, feia, suja e com uns quarenta anos de idade, riu da tentativa frustrada de intimidação. No corpo de Jesus, o Diabo não metia medo em ninguém. A mulher achou engraçada a atitude de seu companheiro, deu um tapinha no seu ombro e, pensando que Jesus ainda não havia acordado direito (Ainda eram 5:55 da manhã do dia 5), disse:

- Oi, Jesus. Tu tá na Terra. Bem vindo. Filho da puta.

Mal sabia ela que essas palavras eram terrivelmente adequadas à situação.

- Pega alguma coisa aí, acho que nem tudo estragou. – Disse uma voz de homem.

- Tinha uma maçã, mas Jesus num viu, o cachorro comeu.

E o Diabo agora dependia do que o lixo rejeitava para se alimentar. Nesse corpo frágil e debilitado, qualquer pedaço de comida velha seria um alívio à fome angustiante que o incomodava. Teria que se adaptar a esse mundo que ele havia criado parcialmente, antes que fosse tarde demais. Não sabia o que poderia acontecer se seu corpo morresse.

- Vamos, Jesus. Não tem mais nada aqui.

Não havia nada a fazer naquele beco senão seguir aquele homem estranho. Deu uns passos em sua direção e algo além de sua imaginação se pôs diante de seus olhos: a grandiosidade de uma cidade humana era algo inesperado, e por um momento o Diabo sentiu-se intimidado, em seu frágil casco de Jesus. Deu mais alguns passos tímidos em direção à rua (ainda deserta), e sentiu um golpe de vento gelado sobre seu corpo. O homem que ele seguia há pouco aparentemente se sensibilizou e jogou um cobertor sobre os ombros de Jesus, que, por sua vez, estranhou um gesto de compaixão, por estar acostumado às traições e enganações do Inferno.

- Obrigado. – disse ele ao homem, sem saber ao certo por quê.

- Vem, vem comigo.

E o Diabo pôs-se a caminhar junto ao seu benfeitor.

Estavam andando lado a lado, com a mulher estranha seguindo-os de perto, parando a cada lixeira, revirando sacos de lixo que achavam pelo chão. Às vezes ela soltava uma exclamação de satisfação, quando achava comida separada do papel higiênico usado.

- Ei, Jesus! Pega! – e jogou uma maçã na direção de Jesus.- essa o cachorro ainda num comeu! – sorriu seu sorriso desdentado.

Novamente era vítima de uma compaixão que ele não conhecia: a mulher havia dado para ele o que comer, em um gesto completamente espontâneo. No Inferno, isso seria algum tipo de compra de favores: umas maçãs por um cargo político, talvez. Na Terra também não era muito diferente, segundo o que havia aprendido, e isso apenas aumentou a surpresa. Quase não conseguiu pegar a maçã. Quando ela parou de rebolar entre seus dedos desajeitados, levou-a a boca e mordeu. Um de seus poucos dentes doeu, parecia que ia cair.

Mesmo assim, com a fome que estava, ignorava qualquer dor de dente, nenhum dente prestes a cair doía tanto quanto seu estômago vazio. Terminou de comer a maçã, mas sentia como se não houvesse comido nada, pois sua fome ainda não havia acabado.

- Ainda estou com fome. – disse ao homem.

- Fique tranqüilo, a gente já vai ter o que comer. – respondeu, num tom confiante.

O Diabo ficou meio perplexo, meio curioso, e continuou em seu caminho paralelo ao do homem misterioso. No caminho, começou a tentar lembrar de sua missão na Terra. As coisas pareciam meio confusas e incertas em seu cérebro novo, mas conseguiu se lembrar de tudo que havia aprendido sobre o mundo dos humanos. Em termos gerais, não era muito diferente do Inferno. Estava aqui para estudar esse mundo, cuja moralidade lhe parecia um tanto familiar.

Achou incrível as caras das poucas pessoas que viu na rua naquela manhã: cada uma delas ia para mais um dia de trabalho, umas contentes, outras resmungando, mas todas com um objetivo comum na cabeça: o Dinheiro.

O Diabo achou um tanto estranho o desenrolar das coisas desde a última vez em que veio à Terra, incontáveis anos antes daquele dia 5. Naquela ocasião, ele havia, por uma querela mais antiga que o próprio tempo, prometido a Deus que mesmo Ele perdoando todos os pecados de todas as suas criaturas dispostas a se redimir, acabaria sendo vencido pelo cansaço no final.

Como tudo no Inferno, essa promessa acabou em uma grande confusão, que envolveu todas as camadas e todos os títulos infernais. Cada um arranjava o motivo que lhe era mais conveniente, mas o Diabo, sentado em seu trono de rochas flamejantes, descansava a cabeça sobre a mão livre. Sua outra mão segurava um tridente enorme que ele balançava lentamente para os lados enquanto fazia uma careta de desprezo quando lhe faziam alguma sugestão idiota (todas eram).

De repente, uma idéia fantástica cruzou sua mente. Bateu seu tridente três vezes contra o chão, que rachou.

- Silêncio! Vocês me insultam com tamanha estupidez! Já chega dessa idiotice, eu sei o que eu vou fazer. E também sei que nenhum de vocês vai ousar discordar! – berrou o Diabo, em uma voz estrondosa que fez todos os infernais presentes tremerem sobre seus pés, tentáculos, patas e garras. – E digo mais! – continuou – Todos se curvarão perante minha vontade suprema!

Uns e outros deram risadas abafadas, viram graça na raiva e na autoridade do Diabo. Viraram cinzas um segundo depois.

- A cada momento que passa, e a cada nova sugestão que me é dada, eu me convenço cada vez mais de que estou no lugar certo, nesse trono. Nenhum de vocês seria inteligente ou sábio o suficiente para sentar-se em meu lugar. Idiotas. Onde já se viu, sugerir que eu mande pragas e maldições à Terra?! Querem aumentar a compaixão de um humano para o outro? Querem que eles, num instante de dor e medo, peçam perdão a Deus? Querem arrependimento, sofrimento e culpa? Não vêem que assim apenas influenciaríamos a humanidade a se afastar cada vez mais de nós? Estúpidos, todos vocês! Estúpidos! Vocês me insultam!

E, levado pela sua própria indignação e ira, o Diabo esqueceu de dizer seu plano. Transformou mais uns infernais em cinzas.

- O que farei, idiotas, será o seguinte: subirei até a Terra. Irei em pessoa até um lugar onde os humanos prosperam. Chegando lá, mudarei a vida deles por completo. Escolherei aleatoriamente uma extensão de terra, uma casa, uma árvore e um animal, e reuni-los-ei, sob uma placa que diz “Propriedade Privada”. Explicarei para os humanos o que isto significa, e voltarei para o Inferno.

Começou uma grande confusão, e os infernais dividiram-se em dois grupos que se opunham quanto à sua opinião sobre a eficácia do plano do Diabo.

Apaziguar todos esses milhares de ânimos seria uma tarefa um tanto cansativa para o Diabo, e ele achou que seria melhor deixar tudo isso de lado e seguir seus planos antes que alguém o impedisse. Desapareceu em uma nuvem de fumaça e chamas, e apareceu instantaneamente na Terra.

O Diabo não falou nada quando voltou ao Inferno, algum tempo depois. Parecia um pouco abalado, talvez até arrependido. Mas sabia que sairia vitorioso na luta contra Deus. Mesmo sob pressão de separatistas paranóicos, que acusavam-no de ter enlouquecido de vez, resistia e repetia as mesmas palavras:

- Aguardem, verão os resultados.

E viram. Poucos anos depois do Diabo ter ensinado aos humanos o que era “Propriedade Privada”, o fluxo de almas entrando no Inferno aumentou vertiginosamente.

E as conseqüências de seu grande plano repercutiam naquele dia 5, em que ele havia encarnado “acidentalmente” em uma pessoa excluída do clube da propriedade privada. Era Deus, punindo de uma forma um tanto irônica o Diabo pela sua insolência, dando a ele uma dose de seu próprio veneno.

O Diabo já ia se perdendo em pensamentos, experimentando um pouco a versatilidade e estranheza do cérebro completamente humano, quando o homem que o conduzia pelas ruas estranhas e frias olhou para os lados com olhos agitados. Eles chegavam a algum tipo de feira, vendia-se várias coisas, de comida a brinquedos.

As cores, formas e estruturas chamaram a atenção do Diabo, cujos olhos humanos brilhavam como os de uma criança, ao ver tantas invenções dos filhos de Deus. Assim como uma criança, quis pegar um dos objetos, e mesmo sem saber como funcionava, queria brincar e mexer com as peças móveis. Quando estendeu timidamente sua mão em direção a um dos brinquedos de madeira, o homem que o acompanhava o empurrou, grosseiramente.

- Que diabos está fazendo, Jesus? – disse. – você quer brincar ou comer, idiota?

Não respondeu. Apenas olhou mais uma vez para todos aqueles bonecos, carros e aviões, e sentiu uma angústia percorrer seu coração: "Eu queria ser humano, eles se divertem com tão pouco". Esse momento de humanidade o tocou tão profundamente, que pensou em nunca mais voltar ao Inferno. Trocaria seu reino infinito por um brinquedo de madeira. "Ah, que linda é a alma humana. Encontra beleza nessas pequenas coisas. E nós, no Inferno, na nossa arrogância, trocamos uma coisinha simples por um trono opulento sem hesitar".

Uma lágrima ameaçou chegar aos seus olhos, mas foi interrompida no meio do caminho por um solavanco, que puxava o trapo que vestia.

- Vem, Jesus! Corre! – as vozes dos seus dois companheiros se misturavam e confundiam, e o Diabo não sabia de quem era a mão que o puxava. Só sabia que tinha que correr.

E correu, não sabia do que fugia, mas uma vontade enorme de fugir de tudo o invadiu, e ao olhar para trás viu dois homens, um velho e um jovem, correndo atrás dele com facas em suas mãos. Mas pôde jurar que havia visto seus ministros do Inferno, correndo com cordas e apetrechos para o aprisionar e levar de volta ao seu trono infernal.

- Peraí, Jesus!

Quando parou de correr, olhou para trás e viu seus companheiros, aliviados, sentados atrás de uma moita. Tinha perdido a noção do tempo, em seu desespero. Não sabia o quanto havia corrido, mas sentia um alívio ao ver que não era mais perseguido.

- O que houve, o quê vocês fizeram? – perguntou.

O homem abriu uma sacola velha e mostrou um punhado de maçãs e outras frutas. A mão da mulher invadiu o pacote e pegou duas frutas ao acaso. Foram direto à boca. O Diabo pegou uma maçã, gostara delas. Mordeu e viu que estava muito melhor do que a que ele havia comido momentos antes. Não sabia ao certo o motivo, e especulou que aquela devia estar velha e estragada. Mas a verdade é que no corpo de Jesus, o Diabo estava começando a aprender a gostar de pequenas coisas, assim como os humanos.

- Fruta roubada é mais gostosa. – disse a mulher, em tom sarcástico.

Inexplicavelmente, o Diabo ficou horrorizado ao saber que ele comia uma fruta roubada. Ficou sem reação por um momento, olhou para a fruta comida pela metade, e achou que não devia terminar de matar sua fome. Não com uma fruta roubada. Jogou-a de volta no saco, e seus dois companheiros o olharam confusos.

- Não vou comer isso.

- Por quê?

- Não vou.

- Pare com isso, Jesus. Cala a boca e come.

- Não acredito que isso tudo foi obra minha. Deus, o que eu fiz? Maldita hora que eu me deixei levar por uma querela idiota.

Os dois se entreolharam. Não sabiam do que Jesus estava falando.

- Querela? Do que você tá falando?

- Do que eu fiz. A culpa é minha, eu condenei vocês às ruas, quando andei sobre a Terra, tantos séculos atrás.

- Cala a boca e come, Jesus. Você tá ficando maluco.

- Não. Como eu me alimentaria do meu próprio veneno? Eu sinto que sou uma serpente vil, não açoitei o mundo, mas dei o chicote. Olhe o que eu fiz. Me desculpe, se não fosse por mim, teus dentes não estariam podres.

Parecia que Jesus estava louco, e os dois resolveram jogar o jogo dele.

- Tudo bem, Jesus. A gente te desculpa. Agora come a maçã, a gente precisa de você inteiro.

Dito isso, a mulher pegou a maçã que o Diabo já havia mordido e a colocou em sua mão. No entanto, o que houve foi um tanto inesperado. Jesus desmaiou ali mesmo, sobre o pacote de frutas roubadas.

E o Diabo viu-se num ambiente familiar, chamas ao seu redor. Estava de volta ao Inferno.

- Vergonha! Vergonha! – gritavam milhares e milhares de criaturas revoltadas. Todos tinham estacas e armas nas mãos, e estavam afastados do Diabo por um cordão de soldados fiéis que protegiam seu grande mestre.

Desorientado, o Diabo se levantou, e sentiu-se forte novamente, no seu corpo imponente e musculoso. Mas voltou um tanto mudado por dentro.

- O que houve? Estou aqui antes do tempo determinado. – murmurou a um de seus ministros.

- Foi uma decisão praticamente unânime, senhor. Todos resolveram o trazer de volta. Desde que foi para a Terra, estivemos monitorando teus movimentos, pensamentos e sentimentos, e vimos que seria arriscado demais permitir que permanecesse lá.

Agora que não tinha mais coração, o Diabo viu que eles estavam certos. Seria arriscado demais dar um coração humano a tão vil criatura. Tão eficientemente vil.

Levantou-se.

- Acalmem-se! Acalmem-se! Estou de volta a meu antigo corpo! Olhem para mim, sou seu mestre! Tive um momento de fraqueza, mas a culpa não é minha.

Todos que estavam prontos para agredi-lo vaiaram, e jogaram pedaços de coisas de todos os tamanhos. Tanto os objetos que voavam na direção do Diabo, quanto as criaturas que os arremessaram tornaram-se poeira incandescente. Mas agora não aprazia tanto ao Diabo desintegrar os revoltados.

- Mostre quem tem o poder, senhor. – repetia fervorosamente um subordinado.

Aos que restaram, o Diabo deu uma justificativa improvisada sobre sua curta permanência na Terra, sobre o acidente que foi. E como nunca tornaria a se repetir.

Quando todos os ânimos se acalmaram, e a paz voltou ao Inferno, o Diabo reuniu-se com seus assessores, para discutir o resultado da missão.

- Senhores, mesmo sendo curto o meu tempo na Terra, cheguei à conclusão de que tivemos sucesso. A Terra ainda é nossa.

Riram e bateram palmas em uníssono.

- Porém, os humanos são difíceis. Eu que o diga. Todos vocês viram o que aconteceu comigo no meu tempo na Terra, como eu me afastei da minha natureza.

Silêncio total.

- Sim, senhores, conseguimos cumprir a tarefa de submeter os humanos uns aos outros, em um ritual digno do Inferno. Tornamos a Terra uma divisão de nosso reino. De lá vêm as almas, mas o humano ainda é um templo de Deus.

Cochichos iam e vinham.

- Vi com a minha alma que, infelizmente, o humano é mais forte do que nós. Um simples humano tem mais força do que eu, e talvez até do que todos nós juntos, senhores. Eles têm coração. E não importa a magnitude do espírito que move o corpo. Sendo ele bom ou mau, sempre está submetido ao desejo do coração. E Deus foi infinitamente sábio ao dar para o homem ao mesmo tempo uma alma fraca e um templo divino e sagrado dentro de seu corpo.

Silêncio total novamente. Os outros demônios inferiores estavam chocados. Seriam mesmo mais fracos que os humanos?

- E o que pode ser feito, senhor? – perguntou alguém perto da parede da grande sala redonda.

-Temo que nada pode ser feito. Fizemos o que pudemos para corromper a obra de Deus. Nos julgamos superiores em intelecto e sabedoria, e esse foi o nosso erro. Nossa arrogância nos custou caro. Criamos o ambiente perfeito na Terra, mas de que adiantou? Deus levou os moradores, e não podemos fazer nada a respeito disso.

- Mataremos todos os humanos, então. E nos seus lugares, criaremos nossa própria versão da humanidade, sem coração, assim como nós! Posso sugerir que… – aqui terminou a frase de um demônio que foi desintegrado por sua insolência.

- Imbecil. Ah, como Deus foi esperto. Ele criou a humanidade com corações, assim nós não podemos trazê-la para nós. Vejam, senhores, que se acabássemos com a humanidade, e no seu lugar colocássemos nossas próprias criaturas, destruiríamos a nós mesmos.

Todos ficaram em silêncio, aguardando a explicação.

- Não vêem? Deus nos prendeu ao Inferno criando o maldito ser humano! Imaginem que nós matamos todos eles e tornamo-nos senhores efetivos da Terra. Quem tem a Terra, pode chegar aos céus, e Deus sabe muito bem disso. Então dominamos os céus. Assassinamos cada um dos anjos, e em uma cerimônia para nunca mais ser esquecida, sacrificamos o próprio Deus. E eu me tornei o líder de tudo. Mas e então? Deus sabe de nossa natureza agressiva, e ele sabe o que aconteceria se ele fosse deposto: não haveriam opostos no Universo, o desequilíbrio que viria faria com que nos tornássemos inimigos uns dos outros, e numa batalha jamais vista, derramaríamos o sangue de todas as criaturas vivas. Todos nós morreríamos, e o Universo tornar-se-ia seco, sem vida, sem bem e sem mal. Apenas um grande mar de sangue já coagulado e seco. É isso que querem, senhores? É um Universo infértil, sem alma, o que querem controlar? Que tipo de líderes são vocês, que querem reinar sobre sangue seco?

Novamente, silêncio geral.

- Pois o que faremos, senhor? Deixaremos a Terra sob o domínio de Deus?

- Não seja tolo, a Terra não está sob domínio divino! Nós temos a Terra, e Deus seus habitantes! Veja! A humanidade é o segredo da paz, inevitável! Deus criou a chave da paz no coração humano, e os seres que trazem essa chave da paz foram a causa da guerra! E esse é o equilíbrio exato, nenhum dos dois lados pode ter mais poder, sem desestabilizar o Universo inteiro! Não faremos absolutamente nada contra Deus! Essa querela termina aqui, pelo bem de todos aqui presentes e pelo bem de todos os habitantes do Inferno!

Bateram palmas. Alguns discordaram, mas ficaram calados, temendo a fúria do Diabo. Além disso, apesar de discordarem, sabiam que era a melhor alternativa.

No mesmo instante, em algum lugar no Céu, Deus sentava-se em seu trono, e orgulhava-se de ter posto um ponto final naquela querela tão chata. Bebeu um copo de água salgada, passou a mão sobre a barba branca e majestosa, e sorriu. Ah, ainda bem que não perdeste o bom senso, meu querido inimigo eterno…

Na Terra, três mendigos procuravam comida. Roubavam sem culpa pois não prestavam atenção no seu coração. Ah, como o estômago fala mais alto nessas horas…

Já no Inferno, o Diabo, sozinho em seu trono ponderava a conseqüência daquele fatídico dia 5 de maio. Colocou a mão sobre seu peito flamejante, e sentiu um oco. Não tinha um coração. Havia aprendido durante seu curto tempo na Terra que com um coração puramente humano, até o Diabo podia se redimir. Ah, como Deus era sábio, tão mais sábio que ele…

Ah, e como ele ainda queria um daqueles brinquedinhos que havia visto na feira…

Luiz Gabriel da Silva Conforto
Enviado por Luiz Gabriel da Silva Conforto em 26/06/2005
Reeditado em 13/10/2005
Código do texto: T27846