MIGRAÇÃO MARCIANA - idealização

Casa modesta e aconchegante, onde se vêem tulipas na varanda e rosas no jardim, móveis de madeira e vime muito simples na sala, fofos acolchoados no quarto de larga cama. A pequena cozinha e uma copa, um pequenino bar em que se destacam os vinhos e a branca cachaça de cana e mandioca. Tiquira esta é chamada, caninha aquela. Sem cerveja e sem uísque, nada de importado.

Veja-se a primeira rua, a partir do espaço reservado ao estacionamento de veículos à entrada da povoação. Um comprido de um quilômetro e meio, separado em distâncias de duzentos e cinqüenta metros formando quarteirões. Entre os quarteirões há um distanciamento de vinte metros. Acaba acontecendo que a rua tem, bem contados, mil e sessenta metros de comprimento. Ao centro da rua, frente para as duas alas de casas em toda a sua extensão (não nas laterais) uma horta e um pomar que vão para a largura de uns duzentos metros e se separam em quarteirões distanciados de vinte metros como a rua. Separam as duas fileiras de casas e o verde enfeitado de frutos e legumes, pistas para tráfego de veículos, de vinte e cinco metros.

Assim, mais três ruas, invariavelmente com a sua área de lavoura e igual separação dos quarteirões entre si, bem como do pomar e a horta com as duas fileiras de casas. A cultura é comum, administrada pelo governo social. Todos trabalham, cada um na tarefa que lhe é indicada. Pessoas de indústria, pessoas de comercio, pessoas de profissão liberal, de função pública – homens e mulheres, todos reservam horário para o trabalho coletivo do pomar. E todos, indistintamente, colhem o fruto ou o legume a seu gosto, mas, exclusivamente para consumo no ato. Só a quantidade de que o consumidor precisa naquele próprio instante. A sobra dessa colheita de uso pessoal é recolhida pelo governo social, para armazenamento e distribuição na entressafra, e, conforme sejam a produção e a estimativa de consumo, para ser levada a comércio fora da comunidade. Frutos e hortaliças de toda diversidade, do mamão ao abacate, da uva à maçã, da laranja ao limão, do abacaxi ao melão e a melancia, o coco, a castanha, tudo, tudo que se pode plantar e colher de raízes, frutos e legumes. Para recolher as cascas e bagos, pequenos depósitos de reciclagem ou de lixo postos em lugares visíveis. Asseio total, a ninguém se permite deixar restos nem sujeira. E tão perfeita é a educação, que raramente e quase só no caso de crianças é preciso reclamar.

Um quilômetro e meio em quadro quase exato, onde só se anda a pé. Não há carros, só se permitindo a entrada em casos de emergência. Nem animal. No correr dos mil e quinhentos metros de cada uma das quatro ruas, dois pequenos lagos para a criação de peixe. Da mesma forma que se dá com a colheita do fruto e o legume, cada pessoa pesca somente o necessário a uma refeição. Significa, por exemplo, que o homem pode pegar uma jaca e sentar-se embaixo da jaqueira com a família ou grupo de pessoas e consumirem o fruto. Não pode colher mais que uma para levar, nem cortará uma para comer só, sem que a possa consumir. Pescará um peixe ou dois para o conjunto da família ou de pessoas agrupadas e levará o pescado à cozinha comunitária, onde será preparado e consumido, sem que isso lhes custe nada. O acompanhamento da refeição, constituído de arroz, farinha, massas, feijão, ou outra coisa que escolham, encontra-se na cozinha para uso comum. De igual modo o tempero, os doces e mais iguarias. Independentemente de pescar seu peixe ou não, as refeições das pessoas, em família ou individualmente, se faz na cozinha comunitária, a um custo simbólico ou zero, se o cidadão, cidadã, não dispõe de recursos. Não se consome carne de nenhuma espécie de animal que viva sobre a terra. A cozinha familiar só é usada para refeições leves ou noturnas ou para o atendimento a pessoas que excepcionalmente não possam sair e para a refeição de crianças, chás, coisas assim. Os alimentos para tal fim não podem ser colhidos individualmente pela família, mas pegados nos armazéns comunitários, onde toda a distribuição é anotada para controle do consumo fora da cozinha da comunidade.

Os consultórios médicos e dentários, laboratórios, bem como os leitos e consultórios no único hospital da povoação (todos públicos), são em número suficiente para o atendimento sem atropelo e dificuldade, sem delonga. E assim as barbearias e todos os serviços de utilidade social. Igualmente as escolas, que alcançam o nível técnico, o superior e o científico.

A administração social se encarrega de tudo, governando e velando, atenta, pelo bem estar e desenvolvimento, pelo progresso da comunidade, pela justiça e a repartição dos bens, serviços e direitos entre as pessoas, fazendo ponto alto da sua educação e da sua cultura, das suas tradições e memória, da pesquisa e ciência.

A distribuição da justiça põe-se no topo governamental. Um cidadão guarda foros de soberano e recebe esse título, presidindo à eleição dos governos social e jurídico. Toma as contas do governo social e as avalia, passa ao governo jurídico para a sua decisão. Só reconhecido como vitalício, e ainda assim sujeito a uma confirmação periódica, o magistrado soberano. Para melhor entender a sobredita confirmação, chega-se ao entendimento de que o termo vitaliciedade é impróprio. Mais correto seria dizer um direito de reeleição, uma vez que a isso corresponde o ato de confirmar. E tão certo é esse entendimento, quanto se sabe que nos governos social e jurídico não há reeleição nem direito a um segundo investimento no governo em qualquer tempo, antes, uma determinação de revezamento das pessoas. De modo que todos os cidadãos e cidadãs estejam habilitados ao governo de sua gente e todos possam ter o ensejo de passar por essa responsabilidade. A orientação legal do revezamento evita a competição individual e suas complicações, a luta pelo poder e com esta a violência e o abuso da autoridade no favorecimento de eventual candidato a cargo governamental. Em todos os setores da atividade humana, as pessoas exercem seu trabalho em termos profissionais, sem disputa pela maior posição, que vem a cada qual no seu tempo e mediante seleção a que todos podem concorrer. O topo da carreira profissional vem a ser alcançado em geral nos longe da idade. Os anciãos têm, na comunidade, uma palavra de luz.

As diversões individuais e coletivas, de grupos e associações são estimuladas e mesmo orientadas pelo governo social. As construções residenciais andam próximas da padronização, ou são mesmo padronizadas, com modificações simples entre umas e outras, alguma coisa assim destinada a quebrar a monotonia da fachada única. Em termos de espaço interno, diferenciam para se ajustarem às necessidades da família, maiores ou menores. Não se precisa dizer que não há privilégios. As pessoas de maior ou menor posição de governo ou mando ou aquelas sem mando nenhum não são diferenciadas.

Os veículos, de transporte coletivo quase todos, alguns de transporte individual ou familiar, estacionam em garagens fora da povoação e até esses locais todos andam a pé, salvo em caso de doença ou algum outro impedimento, quando se permite a entrada do veículo. Os animais de montaria ou de tração são mantidos fora. Igualmente fora da povoação situa-se a área destinada à indústria, ou a agricultura privada. A terra é inteiramente controlada pelo governo, atendida, rigorosamente, a destinação social. Ninguém pode ter mais que a absolutamente necessária à sua atividade, nem terá menos. É a povoação modelo para a migração do povo de Marte. Todas as que vierem em seguida, terão igual padronização.

A gente de marte, após os demorados entendimentos e conversações de anos seguidos, desde quando se iniciara o diálogo daquele planeta com as autoridades terrenas, precisamente as brasileiras, onde se estabeleceu esse primeiro núcleo, começava sua migração para a terra. Nos limites da área destinada à ocupação marciana fixada na lei brasileira que autorizou a migração, o uso comunitário e a reserva individual da terra bem como o espaço destinado ao estado se fazem pela lei interna da nova gente, sem prescindir da fiscalização do governo brasileiro, regulada em convenção entre os dois governos. Ninguém lança mão de nenhuma gleba sem a audiência governamental marciana, ficando, antes, cada qual limitado ao espaço que lhe é destinado.

Há um total controle sobre a entrada de pessoas estranhas, de terrenos precisamente, nas áreas destinadas à ocupação da comunidade social marciana. Todas as visitas são mantidas sob controle. Jamais o impedimento da entrada, antes, o cordial e até festivo acolhimento e a ampla divulgação de seus hábitos, para que os terrenos conheçam os marcianos, visitem-nos muitas vezes, se comuniquem com estes. Mas, o controle de entrada e saída. Aí a vida é pura e simples, limpa de toda a maldade, todo o egoísmo, toda a discriminação, toda a prevalência do homem sobre o homem. A nossa palavra irmão - é verdadeira na comunidade marciana e alcança todas as pessoas. População das povoações limitada. Alcançado o limite populacional do povoado, abre-se novo espaço para os moços, aliás, para os novos casais. Sempre em igual padrão e leis iguais.

Nestes termos uma civilização foi planejada cuidadosamente em marte, nos moldes de vida desse planeta, para implantar-se na terra e aqui está sendo trabalhada com muitas precauções pelos marcianos partindo do Brasil, da Bahia, precisamente do Raso da Catarina, local entendido, após muitas pesquisas, de clima mais próximo do marciano. Aí começou o desembarque há um século atrás. O areião tornou-se úmido e fértil com a ciência marciana que fez cair água das nuvens abundantemente e adubou o solo sem qualquer sinal de poluição ou contaminação do alimento, ciência nova, nossa desconhecida. Os marcianos ignoram a violência, desconhecem a palavra - guerra. Depois de conseguida a autorização para ocupação do solo que na terra tiveram como mais ajustado às condições climáticas de seu planeta começavam a vir. Desciam aos pouco, sem comoção social, sem surpresa. Um a um chegavam, apresentavam a sua mensagem de paz e amor, regressavam e vinham, um, dois, mais dois ou três, mais três ou quatro para serem pacificamente aceitos. Alguma coisa em si, no seu modo de apresentar-se e convencer esperavam que fosse superior à força de reação violenta do terreno, para que este os aceitasse sem protesto, antes, de boa vontade e absorvesse no correr do tempo sua cultura.

Tudo se planejara para que o assentamento marciano na terra se fizesse lentamente e sem trauma, com o que se evitariam comoções de parte a parte. Marte se esgotava, sabiam-no os seus habitantes, por isso agiram com tempo bastante, séculos antes da morte total do planeta. Sua população era reduzida a alguns milhares de pessoas, em razão do esgotamento das condições de vida, da morte lenta do planeta. E isto certamente seria uma razão forte para que o terreno não opusesse obstáculo à sua vinda, sabendo que lá e cá más fadas há, isto é, em futuro distante a terra viria a ter as mesmas dificuldades de hoje em marte e valia a pena ter já cientistas habilitados para solucioná-las, que nos fossem passando seus conhecimentos. Os emissários de marte haviam preparado longamente as gentes da terra para uma nova civilização e uma nova vida. Constantemente iam e vinham entre a terra e marte, consultando, pesquisando, providenciando.

Mais de cem anos se passam desde o início das migrações e os marcianos vêm descendo vagarosamente. Virão todos, transportando sua cultura e sua ciência que serão benéficas à terra. Resta-lhes mais de um século, bem mais, para a morte do planeta e o deslocamento se dará aos poucos, pois não é fácil a adaptação entre as duas civilizações e a aclimatação dos que vêm. Muitos não resistem, definham e morrem.

- Um dia, muito além no futuro, a terra será assim como as pequenas vilas marcianas de hoje em toda sua extensão. Mais espírito do que matéria. Paz definitiva, sem sinal de violência, sem que se conheça a palavra - guerra. Será assim certamente, eu o vi muitas vezes no meu sonho, na imaginação ardente, nos meus devaneios, deixa o registra o interlocutor terreno entre os povos dos dois planetas. Enquanto isso, sem a presença dos seres vivos que o esgotaram no correr do tempo sobre o tempo, milênios sobre milênios, Marte vai readquirindo novas condições de vida, para daqui a milhões de anos recuperar a habitabilidade e servir, quem sabe, a uma migração terrena, quando o nosso planeta chegar ao seu fim.